UM FETO “COISA” NUM CORPO “COISA”
A defesa de que o corpo é algo que se tem numa militância pelo seu uso segundo regras próprias revela o sujeito pós-moderno que defende uma liberdade dissociada de responsabilidade. Uma liberdade ancorada no narcisismo, hedonismo, individualismo, materialismo e relativismo. Num grito pelo direito de fazer o que se quer com o corpo que se tem, o sujeito pós-moderno julgando-se cada vez mais livre, de fato encontra-se alienadamente cada vez mais subjugado aos impulsos reptilianos numa dissociação da subjetividade, afetiva e intelectual, do corpo que considera “coisa”.
Um corpo “coisa” pode ser usado, maltratado, mutilado, subjugado, descartado e se nele houver alguma sequela do uso, simplesmente se promove uma “higienização”, uma adequação do processo. Um feto pode ser visto dessa forma, como se fosse uma sujeirinha que se instalou como consequência do uso do corpo “coisa”. Metaforicamente se poderia relacionar com algo que se comeu, que causou uma indigestão e que se resolve numa indução ao vômito.
O liberalismo sexual do uso irrestrito do corpo “coisa” vai instalando novas possibilidades que deveriam desconfortar ao invés de fomentar liberações abortivas considerando o feto indesejado como “coisa” descartável presente num outro corpo “coisa”.
Ao invés de um endurecimento dogmático na visão corpo “coisa” não seria necessário um resgate do corpo em sua ligação intrínseca com a subjetividade numa visão holística do ser? Numa visão holística o corpo faz parte da composição do todo que envolve uma pessoa e não um objeto no qual habita e perambula pelo mundo. Sendo assim, não basta promover uma “higienização” do corpo abortando um feto indesejado, como se não afetasse a subjetividade do ser humano em seu âmago. O que se faz com o corpo, ou nele, atinge o todo que se é, independentemente das regras sociais ou crenças religiosas ou ideológicas vigentes.
Portanto, ainda vale lembrar o óbvio que sexo livre sem responsabilidade pode engravidar. Que esperma não serve apenas para um descarrego de uma necessidade fisiológica do corpo “coisa” que se semeia sem responsabilidade em um outro corpo “coisa”. Que o útero está preparado para gestar, bastando para isso o coito, mesmo que seja sem prazer e inconsentido. Se existe um direito às próprias regras para o corpo deveria ser o direito de impor os limites necessários atrelados à responsabilidade na relação humana, independente do gênero dos envolvidos. Essa deveria ser a militância, ou seja, um chamado à responsabilidade, ao respeito, à ética, à empatia nas relações humanas. Uma sexualidade vivida com responsabilidade em que novos seres indesejados, ao invés de abortados, preventivamente nem sejam gerados.
Talvez alguém poderá defender a causa do aborto dizendo que os problemas sociais são endêmicos e que muitas gestações indesejadas ocorrem por condições culturais mal estruturadas ou por situações de estupro, entre outras dificuldades. O que ocorre de fato. No entanto, tentar sanar situações de gestações indesejadas com a liberação do aborto provavelmente não contribuirá efetivamente para a resolução dos tais problemas sociais, nem mesmo irá diminuir as estatísticas de estupro. Provavelmente nem é esse mesmo o foco, sendo a busca real por uma autorização moral legalizada para se fazer aquela “higienização” do corpo para se livrar do mal-estar do engravidamento, sem se propor resoluções para questões realmente profundas atreladas à questão.
Parece ser indigesto um discurso que tenta levantar a bandeira da responsabilidade para uma sociedade pós-moderna que busca justamente pelo oposto, ou seja, busca por uma liberdade sexual dissociada da responsabilidade. Uma liberdade que promova, cada vez mais, altas cotas de prazer sem impeditivos, sem cercas morais nem éticas. Nessa busca, parece que aceitar um corpo como “coisa” poderia diminuir a sensação de culpa diante do uso/descarte que se faz do outro “coisa”. Num reverberar da visão do corpo como “coisa” favorece-se também a percepção do feto como “coisa”. Por esse viés, caso o feto “coisa” não servir para a felicidade, surgindo num momento indesejado ou desfavorável, tem-se a saída do aborto para resolver a situação. Sua legalização é mais uma das ações da sociedade pós-moderna que alienadamente segue nas fragmentações da inteireza do ser.
Artigo escrito por Clarice Ebert.