SER CRISTÃO E SER PSICÓLOGO, por Karin Wondracek
Ser cristão e ser psicólogo – Reflexões sobre nossa identidade1
Karin H. Kepler Wondracek2
Para começo de conversa….
Uma pergunta que tem chegado ao Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos, vindo de dentro e de fora, é sobre como conjugar o ser profissional e viver o cristianismo.
Entre extremismos e alienações, dissociações e atalhos, temos nos perguntado de que forma é possível articular a vivência do cristianismo com a prática psicológica e psiquiátrica, dentro do respeito aos códigos profissionais.
Na história da nossa profissão, a relação de terapeutas que professam a fé cristã com as entidades e associações profissionais nem sempre tem sido pacífica; preconceitos, incompreensões, radicalismos de ambos os lados têm dificultado as relações.
Trazemos aqui nossa colaboração no sentido de compreender as diferentes variáveis que estão envolvidas, para aperfeiçoar nosso diálogo com colegas de profissão quando o assunto é nossa fé. Fazemos isso numa abordagem interdisciplinar: partimos da observação, agregamos a compreensão psicanalítica, a psicologia da religião e a teologia. Nosso intuito é colaborar para a compreensão das diferentes posições e com isso para o aprofundamento do diálogo entre os órgãos de classe e os psicólogos e psiquiatras que professam a fé cristã.
1. OBSERVAÇÃO E ABORDAGEM PSICODINÂMICA
Iniciamos pelo esboço das relações entre profissões psi e cristianismo que mais são encontradas em nosso meio. Baseamo-nos em observações no campo profissional.
Corremos o risco de sermos reducionistas, por isso advertimos que esta observação não contempla todas as variáveis, apenas os modos que mais encontramos em mais de 30 anos de atuação profissional.
Para que a escrita seja mais fluida, englobaremos a todos na categoria ‘psicólogos’, mas compreendendo também os psiquiatras, bem como as diferenças de gênero.
1.1 Atalhos perigosos de junção
CRISTÃO psicólogo: – Observamos colegas que, em sua apresentação profissional, valorizam mais a religião e menos a técnica: se refere a profissionais que transitam bem no ambiente religioso, mas não se sentem à vontade em ambientes profissionais e acadêmicos, muitas vezes porque no decorrer da profissão se afastaram desse meio,
1
Conferência apresentada no Congresso Nacional do CPPC – Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos, em Florianópolis, abril de 2013.
2
Psicóloga pela PUCRS e Psicanalista pela Sigmund Freud Associação Psicanalítica de Porto Alegre.
Mestre e Doutora em Teologia pela Escola Superior de Teologia, São Leopoldo.
Membro pleno da Sigmund Freud Associação Psicanalítica e do CPPC. Contato: karinkw@gmail.com
2
já não dominando os códigos de linguagem utilizados. Ousando interpretar
psicanaliticamente essa situação, arrisco dizer que esses colegas sentem-se
inferiorizados perante a academia, mas, ao invés de trabalhar seu sentimento de
insuficiência, projetam o desconforto e o tomam como hostilidade à sua pessoa ou à
sua religiosidade.
Sem contato freqüente com o meio profissional e seus avanços científicos e sentindo-se
hostilizado nele, corre-se o risco de deturpar seu trabalho clínico, enfatizando mais
a propagação de verdades da fé do que o trabalho terapêutico com os instrumentos da
psicologia. Nesse caso, deveria-se perguntar se ainda é lícito receber pagamento como
psicólogo, já que não se trata mais de serviço profissional. De graça recebestes, de
graça dai, diz a Bíblia.
Transformar seu consultório num púlpito, usar sua categoria
profissional para doutrinar, muitas vezes à revelia da busca do paciente/cliente deve
ser condenado, pois aqui há falta de ética profissional.
1.2 Barreiras perigosas de dissociação
PSICÓLOGO cristão: Na outra ponta, observamos colegas em quem a trajetória
pessoal cristã já não transparece em seu pensar e agir. Isso acontece porque a crença
foi confinada à esfera privada, e desta forma ela não se torna tema de seus estudos e
nem de seu ofício terapêutico.
Assim, não consideram esse tema como digno de ser investigado ou trabalhado, remetendo a questão para a vontade e cultura de cada um.
PSICÓLOGO [indiferente ao religioso]Esta é a versão secular da posição anterior,
muito comum nos meios profissionais das últimas décadas. Uma indiferença em
relação ao religioso, muitas vezes aliada à pouca formação teórica para lidar com ele.
Ambas as posições refletem o movimento característico do século XX, que tentou se
eximir de qualquer discussão sobre religião dizendo que isso não era questão pública,
apenas tema do privado. Em decorrência, a religiosidade foi retirada dos currículos
acadêmicos e também das terapias.
A dimensão espiritual, tão constitutiva do humano, do imaginário e da cultura, foi deixada de lado. Sob uma aparente neutralidade e liberdade, esconde-se uma postura que retira do humano uma dimensão fundamental e com isso não instrumenta os profissionais psi a lidarem com
essa dimensão, presente tanto nos sadios como nos doentes.
PSICÓLOGO [hostil ao religioso]Diferentemente do grupo anterior, que trata este
tema com indiferença, observamos profissionais e docentes muito atentos ao tema da
religião, mas na forma de hostilidade. Refletem a postura iluminista do século XIX e
início do XX, que considerava a religião um estado primitivo a ser abolido pelo espírito
científico.
Se para alguns a hostilidade ao religioso é pequena, para outros é muito grande,
exacerbada. Justamente o empenho com que se ocupam de erradicar o religioso indica
que há fortes elementos emocionais envolvidos.
Ousando uma interpretação psicanalítica e correndo o risco de generalizar, pode-se dizer que aqui está funcionando o mecanismo de formação reativa, ou seja, há uma atração pela 3
dimensão espiritual que foi reprimida, mas esta atração ou amor recalcado foi
transformado em ódio, e por isso precisa ser descarregado sobre um objeto externo 3
Pode ser que, ao investigarmos a história pregressa encontraremos experiências
traumáticas com religião, talvez em ambientes familiares ou escolares extremamente
rígidos. Mais tarde, na vida adulta, a profissão de psicólogo ou psiquiatra se torna lugar
de libertação dessas amarras, oferecendo ao mesmo tempo um campo simbólico emocional
que toca a vida em profundidade.
Também encontramos experiências de saturação de ambientes religiosos com suas
neuroses eclesiásticas4. Ao abandonar esses grupos que os atrofiavam transformam
sua antiga sede de Deus em engajamentos comunitários, lutas de classe e busca de
justiça social para libertação dos oprimidos de todos os tipos. Projetos sociais
marcantes nascem e crescem dessa forma, ajudando a muitas pessoas em contextos
desfavorecidos.
Na versão mais aguerrida, ainda segundo Freud, a perseguição do religioso pode estar
tentando lidar ativamente com o traumático sofrido na voz passiva. Por isso seu zelo
em condenar quem, a seu ver, continua oprimindo a vida com religião. Muitas vezes,
as teorias psicológicas são usadas como armamento para essa ‘guerra’, e o tom
fortemente emocional só confirma que o assunto é de grande interesse daquele que
persegue toda menção à religiosidade.
Anna Maria Rizzuto expressa que toda forma de crença ou descrença tem um
substrato ancorado na história pessoal, inclusive o ateísmo. Ou seja, sempre há o
componente pessoal que se serve do teórico, e deve ser trazido à luz.5
Uma sinalização: importante não classificar apenas, mas compreender a dinâmica dos
movimentos, especialmente se há dores por trás das atitudes, e assim se alertar para
que não haja um movimento “contratransferencial” que possa fazer repetir o
traumático, ao invés de tentar lidar com ele no diálogo sábio.
Infelizmente, essa atitude contratransferencial pode ser despertada especialmente nos
colegas psicólogos do primeiro tipo, que sentem sua fé ser atacada por essa atitude
hostil, e ao responder defensivamente, alimentam as críticas dos que já são contrários
ao religioso.
Em outras palavras, nesses embates temos o encontro do primeiro grupo com o
último. Isso corrobora a tese de que os opostos estão relacionados: há religiosidade
defensive e religiosidade reprimida transformada no contrário, e há hostilidade pronta
para ser lançada contra quem ousar se contrapor.
2 UMA CONTRIBUIÇÃO DA PSICOLOGIA DA RELIGIÃO
3
FREUD, Os instintos e suas vicissitudes. (1915). Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, vol. XIV, p.
137-167.
4
KEPLER, Karl. Neuroses eclesiásticas: o evangelho para crentes. São Paulo: Arte Editorial, 2010.
5
RIZZUTO, Anna Maria. O nascimento do Deus vivo: um estudo psicanalítico. São Leopoldo: Sinodal,
2005.
4
Se até aqui relatamos nossas observações e fizemos algumas incursões
psicodinâmicas, gostaríamos de trazer a contribuição da psicologia da religião para
ampliar a compreensão do fenômeno. Encontramos no artigo da Prof. Dra. Marília
Ancona-Lopez a escala de atitudes perante a religião de David M. Wulff6
. Em termos psicológicos, este quadro de atitudes perante o religioso pode nos ajudar a perceber as diferentes formas do psicólogo lidar com a religião7
:
Wulff construiu um esquema bidimensional que define quatro atitudes básicas em
termos de duas variáveis fundamentais. Ele as usa tanto para averiguar os sentimentos
religiosos dos pacientes como as posturas de profissionais psi. Nesses últimos, inclui a
análise do conteúdo acadêmico acerca da religião.
Os dois eixos de Wulff são Exclusão-inclusão da transcendência (vertical), e Afirmação
literal- simbólica (horizontal), e formam quatro quadrantes, “a partir dos quais o
indivíduo se relaciona com a religiosidade e os conteúdos religiosos.”8
1 Negação literal: (quadrante que combina exclusão da transcendência com afirmação
literal): estas pessoas “assumem que a linguagem religiosa deve ser entendida de
forma literal, mas rejeitam por princípio tudo o que é nela apresentado. Elas
dessacralizam todos os conteúdos religiosos.
6
Apud ANCONA LOPES in MAHFOUD, MASSIMI. Diante do mistério: Psicologia e senso religioso. São
Paulo: Loyola, 1999. A autora, bem como os organizadores e autores do livro são membros do Grupo de
Trabalho “Psicologia e Religião” da ANPEPP, que a cada dois anos realiza colóquios para divulgar seus
estudos sobre o tema, sendo atualmente uma referência confiável para a abordagem científica da
religião no meio psi. (O livro encontra-se disponível no Googlebooks).
7
ANCONA LOPEZ, 1999, p. 78.
8
ANCONA-LOPEZ, 1999, p. 79.
5
Características dos profissionais psi: Ancona-Lopez afirma que “Os profissionais que
apresentam essa atitude reduzem a religião a um conjunto de afirmações irracionais a
serem extirpadas ou apropriadas pelas ciências e esclarecidas racionalmente.”9
Para Wulff, o pior efeito recai sobre aqueles que a defendem, pois eles bloqueiam a si
mesmos de entrar em contato com as metáforas religiosas. E, na posição de
terapeutas e docentes, impedem seus pacientes e alunos de aprofundar a riqueza
dessas experiências, considerando-as como “sintoma a ser ultrapassado ou sinal de
irracionalidade e imaturidade psicossocial”10. Dessa forma negam a dimensão da
transcendência, constitutiva do humano, e buscam explicá-la apenas pela dimensão
racional.
2 Afirmação literal: Nesse quadrante, o inferior esquerdo, encontram-se expressões
que “afirmam a existência literal do objeto religioso”. Esta é a atitude dos
fundamentalistas e dos ortodoxos, que apenas aceitam as contribuições das ciências
quando estas estão em total acordo com suas convicções, e assim minimizam os
condicionamentos históricos e sociológicos que influenciam as doutrinas.
Características dos profissionais psi que habitam este quadrante: Agem a partir da
religião e da visão de ser humano nela contida, o que redunda em generalizações
idealizadas e regras de comportamento.
O comportamento profissional que aparece como o mais adequado para aqueles psicólogos
clínicos que se sentem numa posição próxima à da afirmação literal é o de procurar apoio em
teorias que não entrem em choque com suas crenças e desenvolver uma imagem profissional
associada à denominação religiosa que defendem, de modo a possibilitar a seus clientes a
escolha, ou não, pela orientação religiosa que será predominante no atendimento enquanto
conjunto de valores, visão de ser humano e de sentido de vida.11
Em outras palavras, não há aceitação incondicional do paciente, não há abertura ao
diferente e a ressignificações promovidas no espaço do consultório. Tudo deve ser
enquadrado no esquema referencial defendido pelo terapeuta.
3 Interpretação redutiva: Esta atitude, colocada no quadrante 3, aproxima-se da
negação literal, pois também exclui a transcendência da linguagem e práticas
religiosas. “Vê a religião como um fenômeno social ingênuo e ultrapassado e busca
perspectivas científicas, consideradas competentes para interpretar, a partir delas, os
conteúdos religiosos.”
12
Características dos profissionais psi: Seus trabalhos têm cunhos explicativos, buscando
identificar causas da experiência religiosa nos campos biológicos, psicológicos,
históricos, ambientais. “O objetivo implícito é transformar ou eliminar o campo
religioso, reduzindo-o a outras áreas”.
13 Ancona-Lopez agrega que grande parte dos psicólogos se situa nesse quadrante. Esta atitude reducionista em terapeutas, líderes de órgãos de classe ou docentes das faculdades de psicologia não contempla a
9
ANCONA-LOPEZ, 1999, p. 79.
10 ANCONA-LOPEZ, 1999, p. 79.
11 ANCONA-LOPEZ, 1999, p. 80.
12 ANCONA-LOPEZ, 1999, p. 80.
13 ANCONA-LOPEZ, 1999, p. 80.
6
profundidade com que uma pessoa religiosa vivencia sua fé, o que obstaculiza o
diálogo e o avanço nos pontos de vista debatidos.
4 Interpretação restauradora: Esta atitude, tal como a do quadrante 2, afirma a
realidade da transcendência, com uma diferença significativa da atitude
fundamentalista:
Evita julgar as ideias ou objetos religiosos. Sua tarefa é reorganizar os objetos da fé religiosa de modo a restaurar a ligação com a realidade transcendente para a qual apontam.
Eles não são reduzidos a termos puramente cognitivos, mas se engajam na vida interna e expressam sentimentos, valores e esperanças que organizam e regulam o fluxo das interações dos
sujeitos.14
A autora expressa que corresponde à dupla posição anunciada por Paul Ricoeur a
respeito das duas tarefas que aguardam a hermenêutica moderna, opostas e
complementares: desmistificar os símbolos religiosos para tirar deles a idolatria e
ilusão e ao mesmo tempo restaurar e retomar os símbolos, para que se tornem
novamente “uma fonte de significados e de fé”.
Atitudes dos profissionais psi: esta dupla tarefa permeia a atividade clínica e
acadêmica dos profissionais psi com os conteúdos religiosos, requer humildade
epistemológica, reconhecendo que não se sabe tudo:
As realidades da religião, rituais, símbolos e metáforas são reconhecidos em sua
multidimensionalidade e a pessoa vivencia o poder iluminativo e a densidade dos símbolos.
Cliente e psicólogo abrem-se aos mitos, rituais e pensamentos metafóricos abordando a
religião por seus referenciais experienciais: sentimentos profundos e estados internos que vão
desde vivências cotidianas a estados transcendentais, sutis ou claramente reconhecidos como
místicos.15
Esta posição de Wulff, para a autora, é a que denota maior maturidade psicológica,
pois é crítica e flexível, implicando um bom conhecimento de si e do outro, bem como
responsabilidade para a escuta e trabalho clínico.16
No CPPC temos procurado adotar esta última atitude. Como expressa nosso estatuto,
buscamos ser um “fórum permanente de debates”. Produzimos estudos e publicações
ao mesmo tempo em que cultivamos a dimensão vivencial, sempre em respeito às
suas diferentes formas de manifestação. Ao mesmo tempo, buscamos respaldo
científico para compreendê-las, realizando a dupla tarefa de remover aspectos
doentios e restaurar valores de vida.
Atualmente já é mais aceito pela academia que espiritualidade é constitutiva do
humano e que toda pessoa que quer lidar com a humanidade no seu sentido pleno
deve considerar a dimensão espiritual. Grupos de pesquisa em faculdades de
psicologia estão cada vez mais presentes no cenário brasileiro, e já não se pode dizer
14 ANCONA-LOPEZ, 1999, p. 91.
15 ANCONA-LOPEZ, 1999, p. 92.
16 Um dos melhores exemplos de inclusão da dimensão transcendente no trabalho psicológico está na pesquisa sobre “Experiência Elementar”, em desenvolvimento pelo Prof. Dr. Miguel Mahfoud da UFMB, baseado em conceitos do teólogo italiano Guiussani. Vide: MAHFOUD, Miguel. Experiência elementar em psicologia: aprendendo a reconhecer. Brasília/Belo Horizonte: Universa/ Artesã, 2012.
7
que a academia é totalmente hostil ao religioso. Mas continua a pergunta por um
modelo de integração e diálogo dessas dimensões. Por mais estranho que pareça, é a
própria teologia que nos fornece um paradigma de como manter essas luzes em
sintonia, o que abordaremos a seguir.
3. CONTRIBUIÇÃO TEOLÓGICA: James Loder e o modelo calcedoniano de
interdisciplinaridade
Para James E. Loder17, o grande debate ocorrido no V Século, que ficou conhecido
como Concílio da Calcedônia a respeito da natureza de Jesus Cristo, não apenas
conceitua uma verdade a respeito da natureza de Cristo, mas apresenta um paradigma
para relacionar campos diferentes de saberes, e para nosso estudo, sobre como
relacionar o fato de ser psicólogo e cristão.
Ao enunciar a dupla natureza de Cristo, o Concílio da Calcedônia não apenas expressa
uma verdade sobre o Filho de Deus, mas também mostra como é possível articular
duas naturezas diversas, e, para Loder, como unir dois saberes diversos, sem que cada
um perca sua validade e propriedades.
A partir do Concílio da Calcedônia os cristãos crêem que Jesus Cristo é
simultaneamente divino e humano e mantém ambas as naturezas em integridade. Ele
não era um deus humanizado ou um humano divinizado, era Deus e Homem.
Loder aponta que a natureza de Cristo, constituída por dois polos inteiros e simultâneos,
expressa uma lógica binária que pode ser usada para relacionar nossas diferentes
dimensões e também as diferentes áreas do saber.
Isto é, o Concílio de Calcedônia expressa uma verdade teológica e também um padrão de
pensamento que considera a integridade de duas naturezas diversas em um só corpo. Este
padrão constitui uma forma de relacionalidade e racionalidade que aparece numa variedade de
outros contextos, de modo a superar numerosos problemas surgidos nos estudos
interdisciplinares. 18
Loder explicita que esta unidade aparece na epistemologia, como a inevitável
dualidade da relação Eu-mim, sempre experimentada como a unidade do self.
Na física, esta mesma estrutura embasa a teoria quântica de Niels Bohr para explicar a
relacionalidade bipolar entre onda e partícula na natureza da luz.19 E no diálogo
interdisciplinar fornece um paradigma que considera ambos os saberes em toda sua
validade. Baseado no paradigma calcedoniano como padrão de racionalidade e
relacionalidade, queremos propor essa abordagem para nossa dupla condição de
psicólogos e cristãos.
4 NOSSA DUPLA CONDIÇÃO – ASPECTOS TEOLÓGICOS:
17 JAMES E. LODER (1931-2002) foi professor no Seminário de Princeton, com formação teológica,
filosófica, psicanalítica, educacional e das ciências físicas. Foi um dos pioneiros na abordagem interdisciplinar dos fenômenos humanos.
18 WONDRACEK, K. ; REHBEIN; CARTELL, 2012. Desenvolvimento humano na lógica do espírito. Joinville:
Grafar, 2012.
19 Em The knights move: the relational logic of the spirit in Theology and Science os autores mostram a relação profunda entre a teologia cristã e várias descobertas científicas. LODER, J.; NEIDHARDT, W. J.
Colorado: Helmers & Howard, 1992.
8
Em termos teológicos, queremos afirmar três aspectos sobre a relação psicologia-fé
para o psicólogo que se professa cristão:
1. Nossa identidade é de dupla cidadania: somos completamente humanos e em Cristo
somos completamente filhos de Deus. Dois substantivos, sem adjetivar nenhum termo.
Vivemos as tensões dessa dupla natureza, e isso também permeia nosso modo de
cultuar, trabalhar, viver.
2. Somos estudiosos de dois saberes: Psicologia e Teologia – a Psico-teologia tal como
proposta pelo CPPC como base para o diálogo – na qual ambas mantém o status de
substantivo, sem amalgamentos nem compressões.
3. Aplicado à condição de psicólogos: Não precisamos ir para uma psicologia cristã
(este como adjetivo), ou um cristianismo psicológico (agora este é adjetivo).
Somos simultaneamente cristãos e psicólogos – estudamos a Bíblia, a Teologia, e
simultaneamente fazemos nossa formação psicológica, reconhecendo as contribuições
da ciência, que também é luz de revelação sobre o universo criado por Deus.20
Há uma assimetria, no sentido de que Jesus Cristo, Senhor e Criador, mantém tudo
unido e ordenado, logo Ele tem a prioridade sobre todas as coisas. Mas para que Jesus
Cristo seja Senhor de todo pensamento e ciência, também é necessário ampliar em
muito a compreensão de Sua natureza e seu agir, que sempre privilegiou o amor e o
serviço.
21
Autores como Loder, Pannenberg, Torrance, Tillich, Ellens, Lake, entre outros, nos
ajudam a compreender a profundidade das afirmações teológicas e então convidam à
profundidade da relação com a ciência. Explicações reducionistas que opõe um ao
outro apenas confundem e não possibilitam diálogo sério e nem atitude terapêutica
empática com o sofrimento humano.
5. CAMINHOS DE DIÁLOGO COM AS CIÊNCIAS PSI
Dentre as articulações possíveis entre psicologia e cristianismo indicamos:
5.1 Desvelar a religiosidade escondida nas teorias psi
Em primeiro lugar, cabe reconhecer o pensamento religioso judaico-cristão que já está
inserido nas teorizações dos autores: Por exemplo, a psicanalista Betty Fuks pesquisou
em seu doutorado que elementos da teologia judaica fecundaram a psicanálise22
.
Marie Hoffman mostra o cristianismo em Winnicott e Ferenczi marcando sua teoria e
técnica.23
Assim como na psicanálise, também há nas outras teorias a presença do religioso
escondido ou reprimido24, pois são formadas na visão de mundo hebraico-cristã.
20 ELLENS, Harold. Graça de Deus e Saúde Humana. São Leopoldo: Sinodal, 1994.
21 Tal como Paulo apresenta Jesus Cristo, “em quem tudo subsiste”. Cf. Colossenses 1.17.
22 FUKS, Betty. Freud e a judeidade: a vocação do exílio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
23 HOFFMAN, Marie. Toward mutual recognition: Christian narratives and relational psychoanalysis.
Nova Iorque: Routledge, 2011. Ver um resumo em nosso artigo: Mediação e uso de objeto: contribuição das narrativas cristãs em Pfister e Winnicott. Psicoteologia 51, ano XXI, 2° semestre 2012.
24 Ferenczi, Françoise Dolto, Marie Balmary, Denis Vasse, Donald Winnicott, todos reconhecidos por sua preciosa contribuição para o saber Psi e para o saber cristão.
9
Novamente, este é um caminho a ser percorrido academicamente para se tornar sério.
Não apologeticamente, mas com embasamento científico, com pesquisa séria.
Seguindo o modelo de Wulff, algo a ser feito no quarto quadrante, da interpretação
restauradora.
5.2 Defender a legitimidade de diálogos sobre a antropologia de base.
Nosso acento não deveria ser a discussão da ciência psicológica em si, mas sim a
discussão antropológica. Ali temos legitimidade científica em sustentar que queremos
uma antropologia com base em concepções judaico-cristãs para falar da condição
humana.
Não precisamos aceitar a antropologia embasada no materialismo como
paradigma do humano.25 E novamente, numa atitude do quarto quadrante de Wulff e
do paradigma calcedônico de Loder, fazê-lo numa atitude de diálogo com as
contribuições das outras visões de mundo, que inclua críticas ao reducionismo, de
onde quer que este venha.
Desta forma, não concordamos que o ser humano seja reduzido ao que diz dele o
materialismo-darwinista – embora aceitemos que ali também há verdades, mas que
não perfazem o todo. Na lógica calcedônica, essas contribuições são trazidas e
mantidas em unidade bipolar com a teologia, sinalizando as diferentes dimensões que
fazem parte do humano.
Nesse diálogo, também aceitamos as contribuições da antropologia humanista que
embasou muitas teorias psicológicas, mas na lógica calcedônica relativizamos suas
afirmações sobre a bondade do humano, pois pela teologia temos de manter presente
a sua dimensão alienada ou pecaminosa.
Assim mantemos a abertura ao transcendente e imanente, procurando fazer valer
ambas as dimensões. Especialmente importante é estudar mais a fundo as
contribuições dos teólogos que se ocuparam do humano, no diálogo com as ciências, e
dos filósofos e antropólogos que se ocuparam do judeo-cristianismo.
26 Ali encontramos pérolas e tesouros escondidos!
Uma pergunta para os associados do CPPC: Temos aproveitado a vasta produção que
está reunida no site do CPPC, as dissertações e teses produzidas pelos seus membros?
Temos aproveitado a caminhada no CPPC como uma segunda formação, que justamente nos oferece o lado complementar da lógica calcedônica? Fazemos grupos de estudos, supervisões e participamos de eventos para aprender sobre quem é o ser humano aos olhos de Deus?
A partir desse paradigma calcedônico – simultaneamente na academia e na teologia –
temos estabelecido diálogo com nossos pares que zelam pelas nossas profissões? Este
o tema que segue:
25 Cf. capítulo de nosso colega Almir Linhares de Faria “O materialismo na psicologia e na psicanálise –
Opção metodológica ou doutrinária? In Wondracek, K (org.) O futuro e a ilusão: um embate com Freud sobre psicanálise e religião. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 94-109.
26 A lista é imensa, mas apenas como primeira lembrança: Martin Buber, André Chouraqui, André
Wénin, Edith Stein, Michel Henry, Jean Luc Marion, Levinaz, Ricoeur, e entre nós Carlos J. Hernández e Gilberto Safra.
10
6 RELAÇÃO COM ASSOCIAÇÕES DE CLASSE: conselhos de Davi e Pedro
A pergunta que permanece para alguns talvez seja: o que fazer se os órgãos de classe
não reconhecem nossa dupla cidadania, ou, baseados em paradigmas reducionistas,
acham-na incompatível com uma boa atuação profissional?
A escala de atitudes de Wulff pode nos ajudar a entender e lidar com estas situações.
Sem desconsiderar situações concretas que realmente perseguiram colegas pelo
simples fato de serem cristãos, gostaria de começar por uma autoanálise, a partir de
conselhos de dois personagens da Biblia:
– A oração autoexaminadora de Davi no final do Salmo 139, justamente o poema no
qual detalha a relação entre o humano e o divino.
– As recomendações de Pedro nas suas cartas, quando prepara os cristãos a viverem
sabiamente a realidade divina na dimensão humana.
Sonda-me ó Deus… A pergunta primeira é: será que estamos sendo sábios na vivência
do paradoxo de ser simultaneamente cristãos e profissionais psi?
“Quando virem vossos bons frutos, darão glórias a Deus”: Será que temos feito jus a
essa recomendação? Algumas perguntas práticas:
– Como cristãos e psicólogos, seres de dupla cidadania, temos sido atuantes nesses
dois âmbitos?
– Quantos de nós temos participado de comissões nos Conselhos e Sindicatos, por
exemplo, de Direitos Humanos?
– As recomendações bíblicas de cuidar do órfão, da viúva e do migrante (por exemplo
em Deut. 24; Mt 25) continuam válidas, e podem se materializar junto aos colegas de
classe nessas comissões. Ou nossos olhos só conseguem olhar para dentro dos redutos
igrejeiros, como defesa perante a interpelação de colegas sobre nosso modo de crer e
trabalhar?
Baseados em I Pedro, podemos perguntar: onde está a “sabedoria com os de fora”?
Sabedoria que deve impregnar o modo como falamos, escrevemos, ensinamos?
Onde está o respeito para com as autoridades constituídas?
Onde está a produção acadêmica para falar das questões de religião?
Quem de nós tem pesquisado seriamente sobre coping religioso e mostrado seus trabalhos em congressos profissionais? Ou queremos que nos aceitem pela via da autoridade, como é comum
no meio religioso?
Vê se há em mim algum caminho mau…. antes de levantar bandeiras de protesto e de
perseguição, vamos fazer a “tarefa de casa” – nos tornarmos melhores psicólogos, psiquiatras
e melhores cristãos.
Estudar, participar, orar pelas autoridades, engajarmonos nas questões profissionais. Sair do nicho religioso que nos parece confortável, e aprender a ‘falar grego’, a linguagem da academia, como diz o Doutor em Psiquiatria Carlos J. Hernández.
Baseados no Evangelho, lembrar que:
11
– A única crítica contundente de Jesus foi contra os fariseus e suas deturpações e
sobrecargas em nome da religião. Nesse sentido, deveríamos fazer coro aos críticos psi
da religião neurótica– eles denunciam essas sobrecargas, tanto quanto Jesus!
– A maior demonstração de força de Cristo foi contra vendilhões no templo, aqueles
que profanavam os lugares sagrados.
Novamente, um tema que pode nos unir com os colegas de profissão, nesses tempos de mercantilização da fé. Para com os de fora ele procurava reconhecer toda abertura manifesta ou latente a Ele.
Conseguimos ver essa abertura nos colegas?
E guia-me pelo caminho eterno: Corremos o risco de tropeçar na reação e cultivar
precocemente o sentimento de perseguição e vitimização. Isso sem o frescor do
Evangelho, que considerava uma ventura ser perseguido, como Cristo…
Se houver discriminação a reclamar, que o façamos no modo próprio do meio
profissional: em relacionalidade cordial, com respaldo científico, ético e jurídico
(segundo a Biblia, este deve ser o último e não o primeiro recurso). E que nos
antecedam as boas obras que testemunhem do amor de Deus.
7 PARA TERMINAR: NOSSO PANO DE FUNDO: I PEDRO
Deixem o Senhor orgulhoso de vocês, sendo bons cidadãos. Respeitem as autoridades,
qualquer que seja o nível delas. Elas são emissárias de Deus, responsáveis por manter a
ordem.
É vontade de Deus que ao fazer o bem, vocês possam curar a ignorância dos
tolos que os consideram um perigo para a sociedade. Usem a liberdade para servir a
Deus não para quebrar as regras. Tratem todos com dignidade. Amem sua família
espiritual. Temam a Deus. Respeitem o governo. (I Pe 2.13-17)
Resumindo: sejam agradáveis, simpáticos, amáveis, compassivos, humildes. Isso vale
para todos sem exceção. Nada de retaliação. Nada de língua afiada para o sarcasmo.
Em vez disso, abençoem, que é a obrigação de vocês. Assim, serão uma bênção e
também receberão bênçãos. (I Pe. 3, 8,9)
Agradeço o debate no Núcleo CPPC Belo Horizonte em agosto 2012, inspirador dessas ideias,
e pelo relato elaborado pela colega Vanessa Torres que serviu de base para a construção
desse texto
REFERÊNCIAS
ANCONA-LOPEZ, Marília. Religião e psicologia clínica: quatro atitudes básicas. In: MAHFOUD,
M.; MASSIMI, M.. Diante do mistério: Psicologia e senso religioso. São Paulo: Loyola, 1999.
ELLENS, Harold. Graça de Deus e Saúde Humana. São Leopoldo: Sinodal, 1994.
FARIA, Almir Linhares de “O materialismo na psicologia e na psicanálise – Opção metodológica
ou doutrinária? In Wondracek, K (org.) O futuro e a ilusão: um embate com Freud sobre
psicanálise e religião. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 94-109.
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