secretaria@cppc.org.br 51 9-8191-0407

ATEÍSMO E RELIGIÃO

Teses

1 – INTRODUÇÃO

Chamar o ateísmo de religião, pode em princípio parecer algo contraditório, entretanto, é possível notar em alguns aspectos, semelhanças psicológicas, antropológicas e filosóficas entre o ateísmo e uma religião deísta. Não seria o ateísmo uma religião? Outra questão pertinente é a possibilidade da exclusão da figura de Deus em uma religião atéia. Seria realmente possível extirpar totalmente a idéia de Deus do pensamento humano, ou na concepção ateísta estaria inconsciente uma crença na existência de Deus? Para uma negação de Deus não admite-se, coexistentemente, uma concepção de Deus ? Pesquisas e trabalhos variados têm ressaltado a importância do estudo da religiosidade no ser humano. A relação do homem com o transcendente poderia ser enfocada sob várias vertentes da psicologia.

Pode-se analisar os processos conscientes através da Teoria dos Papéis, de Sudém, a Teoria da Atribuição, de Spilka e colaboradores, Teoria Piagetiana no estudo do desenvolvimento moral e religioso, Teoria Comportamental Skinneriana, dentre outras. Na análise dos processos pré-conscientes ou inconscientes, poderíamos fazer uso da psicanálise de Sigmund Freud, neofreudianos como Antoine Vergote, Lovaina, William Weissner (apoiado em Hartmann e Winnicott), Yale e Anna Maria Rizzuto (também apoiada em Winnicott), James Jones, Victor Frankl, dentre outros. Sobre a questão do ateísmo, podemos citar contribuições do teólogo Paul Tillich, o recente levantamento da história do ateísmo por Denis Lecompt, a sociologia de Peter Berger e também as análises de religiosidade formuladas por Carl Gustav Jung, além de muitos outros autores contemporâneos.

Para a reflexão neste trabalho, resolvemos adotar a orientação teórica da Psicologia Analítica, estruturada por Carl Gustav Jung. Entretanto, a hipótese de que o ateísmo seria também psicologicamente uma religião, e de que estaria impresso no próprio ateísmo uma concepção inconsciente de Deus, não encontrou-se em documento científico conhecido. É portanto ainda, tema inédito à pesquisa. Em sua Psicologia Analítica, Jung, a partir de sua experiência clínica , postulou que é intrínseco que em algum momento da vida, o homem passe por uma “crise religiosa” para continuar a se desenvolver psiquicamente, para que possa sentir-se como parte do grande cosmo (analiticamente, o processo de individuação).

Essa “crise religiosa” ( que Jung chama de função transcendente), extrapola os limites da religião institucional, como igrejas ou seitas. É uma crise psicológica. No exercício dessa função, o homem conseguiria equilibar seu consciente e inconsciente, sentindo-se participante do universo, e regido não por seu eu consciente (ego), mas por uma instância maior, consciente e inconsciente, atemporal à sua história individual – o que Jung chamou de Self, ou Si-mesmo , simbolizado religiosamente pela representação da entidade “Deus”, por exemplo . Nesse concepção, o homem encontraria “respostas” às perguntas do tipo “por que existo?”, “o que há depois da morte?” , quem é maior que eu?”, dentre outras. Respondendo não de maneira lógico-racional, mas transcendendo-as. É através do símbolo que o homem entra em contato com sua profundidade, com seu Self. Os índios Naskapis falam de um “grande companheiro” dentro de seus corpos; os budistas no estado do Nirvana; o discípulo fala na interiorização do ensino do mestre; o crente fala em Deus, Espírito santo que habita o corpo, que é templo. Um sujeito ateu teria também seus símbolos para funcionar sua transcendência?

O presente ensaio não tem a pretensão de servir como um proselitismo ateu ou questionar a existência ou inexistência de Deus, mas sim de provocar algumas reflexões sobre a possibilidade ou impossibilidade de existência de uma doutrina filosofo/religiosa onde a figura de Deus seja totalmente inexistente.

2 – CONCEITOS DE RELIGIÃO

2.1 – CONCEITO DE RELIGIÃO NA SOCIOLOGIA A partir das idéias de Weber e Durkheim, o sociólogo Peter Berger pressupõe o caráter inerentemente dialético do fenômeno social: a sociedade é construída pelo homem, que por sua vez, é construído pela sociedade. Esse processo dialético, ocorreria em três momentos: Exteriorização: uma efusão do ser humano sobre o mundo, produzindo a sociedade; Objetivação: a sociedade que se torna realidade sui generis e Interiorização: formação do homem pela sociedade. Justamente por ser produto da dinâmica atividade do homem, as estruturas da sociedade são passíveis de mudanças. Nas palavras de Berger (1995): “A participação individual numa cultura não só acontece num processo social, mas a continuação de sua existência cultural depende da manutenção de dispositivos sociais específicos. A sociedade é não só o resultado da cultura, mas uma condição necessária dela.” (Berger,1995,p. 21). Nesse processo, o mundo exterior, produzido pelo homem, toma um grau de distinção que sugere sua independência em relação ao homem. Torna-se “alguma coisa lá fora”. Como é reconhecido coletivamente, é assegurada sua realidade. A sociedade seria, na sociologia, um produto da atividade humana que atingiu o status de realidade objetiva. O homem passa pela interiorização quando reabsorve as estruturas sociais, que vão construir as estruturas subjetivas de sua própria consciência. É neste enfoque que a Psicologia Social conceitua identidade: quando o indivíduo torna-se aquilo que os outros o consideram quando tratam com ele. O mundo social não é passivamente absorvido pelo indivíduo, mas apropriado ativamente por ele. Viver em sociedade é partilhar da mesma ordem de significados comuns, é o que Berger chama de “co-habitar o seu nomos”, sujeitar-se às regras vigentes. Por esse motivo, as instituições são cristalizadoras da cultura, produzida pelo próprio homem. Ir contra as instituições seria então, ameaça à própria identidade. Berger (1995) explica que “os programas institucionais são dotados de um status ontológico a tal ponto que negá-los equivale a negar o próprio ser – o ser da ordem universal das coisas e, consequentemente, o que se é nessa ordem.” (Berger, 1995, p.37). Sociologicamente, entende-se por sagrado, algo distinto do homem, mas que se relaciona com ele de um modo diferente dos outros fenômenos não humanos, transcendendo e incluindo o homem. É a religião o empreendimento humano que estabelece um cosmos sagrado. A partir da modernidade, foi possível observar um caráter sagrado de caráter secular, ou seja, tentativas inteiramente seculares de se cosmificar o sagrado, porém, sem o conceito explícito de instituição religiosa: como o é a ciência moderna, por exemplo. É possível então sugerir até uma sacralização do ateísmo Para que a ordem social, com suas instituições seja explicada e justificada, é necessário haver aquilo que a sociologia chama de Legitimação, processo que dá as respostas aos porquês dos dispositivos institucionais. Há várias maneiras de se legitimizar, de afirmar os paradigmas: mitos, lendas, contos populares, ou mesmo setores especificos do saber . A maneira da religião institucional legitimizar a ordem social é a de relacionar o microcosmo com o macrocosmo. Relaciona as construções humanas com a realidade suprema. Dessa maneira, as instituições são reais na medida em que tomam parte na objetividade do mundo social. A psicologia Social reconhece que para um indivíduo (fora a patologia psicótica) se identificar com um papel, necessita que os outros o identifiquem com ele. Os seres supra-humanos da religião fortalecem essa auto-identificação, de maneira até mais profunda e estável. Afim de lembrar o homem da legitimação, existe o ritual religioso. O exercício do ritual nas comunidades específicas mantém a plausibilidade da tradição religiosa A migração dos indivíduos entre as diferentes comunidades específicas ( a conversão religiosa de um credo/denominação para outro) são migrações entre as diferentes estruturas de plausibilidade que mantém a legitimação da ordem social. O indivíduo ateu, por exemplo, seria passivo de uma estrutura de plausibilidade para a legitimação de sua fé ateísta tanto quanto um crente que legitima sua fé teísta. A diferença estaria no conteúdo dessas estruturas fundamentadoras, apesar da forma de legitimação ser a mesma. Entretanto, em alguns casos, a relação dialética entre o indivíduo e o seu mundo, se perde a consciência, dando início ao processo de alienação – um fenômeno de falsa consciência. Não se pode confundir a alienação com a anomia. A primeira serve para manter as estruturas nômicas. Sobre isso, Berger (1995) comenta: “A religião tem sido uma força de nomização tão poderosa, exatamente porque também tem sido uma poderosa, talvez a mais poderosa, força de alienação. Além disso, e no mesmo sentido acima indicado, a religião tem sido uma forma de falsa consciência muito importante.” (Berger, 1995, p. 99). É postulando a existência de seres e forças alheios ao mundo humano que a religião institucional tende a alienar o indivíduo de si mesmo, protegendo-os da anomia. Sob outra ótica, ainda numa visão sociológica, há também a possibilidade de que a desalienação possa ser legitimada pela religião. Uma religião mística que questione os valores e status da realidade do mundo empírico, tende também a relativizar as práticas religiosas . Exemplo citado por Berger em seu texto é quando o profeta Natã, da tradição bíblica, em nome de Deus, despe a santidade dos atos do rei Davi, admoestando-o como um homem qualquer, mesmo sendo ele o ungido por Deus, uma realeza sagrada, comparada às instituições das culturas contemporâneas vizinhas. Temos aqui a religião como desalienação. Tanto as religiões que alienam, quanto as que desalienam, têm segundo Bleger, o mesmo objetivo: buscar um universo humanamente significativo.

2.2 – CONCEITO DE RELIGIÃO NA TEOLOGIA Afim de estabelecermos algumas definições de religião na teologia, traremos à reflexão, o pensamento de alguns teólogos, comparando-os com a psicologia usada como base para este ensaio: a psicologia analítica. Um teólogo contemporâneo de Jung: Paul Tillich. Ele combate a idéia de um Deus externo – o completamente outro, mas defende um Deus dentro do homem. Segundo o autor, é o conceito de um Deus completamente externo a causa dos dogmas religiosos se tornarem sem sentidos ou difíceis, quando o homem é forçado a escolher entre a humanidade ou religião (Deus externo). Essa teologia sistemática de Tillich prega a promoção da vida de “dentro para fora”. O Deus dentro do homem que o levaria a uma experiência com Deus além do homem. “A percepção da imanência divina é a base para o homem, de sua percepção de um Deus transcendente.” (Tillich, 1974, p. 66). Diz Tillich (1974): “A religião é a substância da cultura, e a cultura é a forma da religião.” (Tillich, 1974, p.165 ). A religião se expressa e se atualiza em formas culturais. Deus discutido, vira um objeto (pois estaria submetido à estrutura da realidade).Deus é prius do sujeito (homem) e do objeto. Existir denota um caráter de dependência. Deus não é ser entre outros, nem mesmo o mais elevado, mas o poder de ser, o ser-em-si (bein it self). Deus não existe, Deus é. Diz Tillich (1972): ” A religião não é uma função especial da vida espiritual, mas a dimensão de profundidade em todas as suas funções”. (Tillich, 1972, p.264). Religião não é cultus deorum, não é moral, mas ” auto-transcendência da vida na dimensão do espírito”, é profundidade (no sentido de incondicional, infinito, supremo, sentido último da existência) sempre presente nas funções da vida espiritual do homem. “Deus se acha na profundidade e não no alto, pois se não estiver na realidade, também é supérfluo.” (Tillich, 1974, p. 165). Deus é a profundidade da vida, a base do ser. Não é panteísmo, mas Deus presente na criação. “… o estado de quem está possuído por uma preocupação de caráter último, preocupação que confere a todas as restantes um caráter preliminar e que contém em si mesma a resposta pelo sentido da vida.” (Tillich, 1974,p.165). A preocupação suprema (ultimate concern), é aquilo que determina nosso ser ou não ser, entendendo ser como o “conjunto da realidade humana, a estrutura, a significação e a finalidade da existência” (Tillich, 1972, p.264). Aquilo que é o objeto de preocupação suprema de um homem é seu deus. Elevação de algo finito à categoria de supremacia é demoníaco, idólatra. Duvidar séria e incondicionalmente é estar possuído pela fé ou religião, no sentido amplo. Não existe um ateísmo possível então. Ser ateu para Tillich não seria negar a existência de Deus, mas negar a profundidade da vida. Porém, agir assim, seria retornar à vida animal, que se limita ao princípio do prazer. Até o ateu confesso, Sartre, disse: ” não se é homem enquanto não se encontra alguma coisa pela qual se está disposto a morrer”. Esse “algo” é, na visão tillichiana, o objeto da religião, o conteúdo da preocupação suprema. Mesmo a religião em seu sentido restrito (institucional, comportamento moral e litúrgico) fundamenta-se no conceito amplo de religião como preocupação suprema. Nietzsche, quando dizia-se contra à crença em Deus, falava do Deus numa consciência heterônoma (hetero=diferente, nomo=lei). Onde o homem é fantoche, manipulado por um tirano celestial. Um “legislador supremo, consciente e onipotente, que exige reconhecimento e obediência absoluta por parte de suas criaturas” . Na visão de Tillich, o divino, presente na experiência humana que leva o homem pessoa e coletividade a configurações de consciência, cada vez mais cheias de sentido e mais amplamente relacionadas. Nessa visão teológica, dispõe-se que não se pode existir sem a suprema preocupação. Comparada à psicologia de Jung, lemos que a “suprema preocupação” da Teologia Sistemática tem respaldo na idéia do “senso inato de Deus no homem”, descrita por Jung. Quando Tillich fala do “Deus interno”, que promove à transcendência, nos remete ao conceito de arquétipo do numinoso: Self. O processo de individuação do homem, sua interação com o Cosmo, é semelhante a idéia do panenteísmo ( e não panteísmo). No panteísmo, tudo é Deus, as pedras, as plantas, os animais, o escarro, formam a única realidade existente e sem distinção: Deus. A concepção de Tillich se baseia em doutrina diferente, o panenteísmo, que afirma a coexistência e a interpenetração de Deus e de suas criaturas. Literalmente significa: tudo em Deus e Deus em tudo. Entretanto, a transcendência de Deus é conservada, porque esta é mais que a soma total do ser criado e sua fonte e base. Uma diferença conceitual entre Jung e Tillich, aparece na natureza do sentido que o homem tem de Deus; Jung remete ao inconsciente coletivo, Tillich à profundidade da razão, a “coragem de ser ele mesmo” em face das tensões envolvidas em morte, culpa, a falta de sentido na vida. Os dois teóricos reconhecem a importância do símbolo como expressão do sagrado (uma vez que o símbolo tem sentido de mistério, excedência de significados, diferente do símbolo freudiano). A idéia do sentimento religioso conceituadas analogamente por Jung, Otto e Tillich, são também paralelas à definição de Rubem Alves, que pontua explicações à dúvida existencial, símbolo como instrumento para transcendência, vivência pela experiência ( e não apenas teorização) e sentimento do numinoso. Aqui também a religião é compreendida num conceito muito maior do que o da instituição religiosa (objeto da sociologia). Conceitua Alves (1984): “A religião não se liquida com a abstinência dos atos sacramentais e a ausência dos lugares sagrados, da mesma forma como o desejo sexual não se elimina com os votos de castidade (…) surgem as perguntas sobre o sentido da vida e o sentido da morte, perguntas das horas de insônia e diante do espelho… o que ocorre com freqüência é que as mesmas perguntas religiosas do passado se articulam agora, travestidas, por meio de símbolos secularizados. Metamorfoseiam-se os nomes. Persiste a mesma função religiosa. Promessas terapêuticas de paz individual, de harmonia íntima, de liberação de angústia, esperanças de ordens sociais fraternas e justas, de resolução das lutas entre os homens e de harmonia com a natureza, por mais disfarçadas que estejam nas máscaras do jargão psicanalítico/psicológico, ou da linguagem da sociologia, da política e da economia. Os deuses e esperanças religiosas ganharam novos nomes”. (Alves, 1984, p. 12). Semelhante linha concebendo religião num universo além instituição, numa imagem de Deus maior do que o deus pregado pela igreja, temos o teólogo Leonardo Boff (1999): ” A espiritualidade, já o dissemos, significa o encontro vivo com a suprema Realidade (…) Deus aqui somente possui significado existencial e concreto se for a resposta à abertura infinita do ser humano. Não se trata de um Deus qualquer, Deus ex machina, já construído uma vez por todas e feito objeto de credos, dogmas e ritos, gerenciados pelas instituições religiosas. Mas trata-se de um Deus vivo, encontrado na experiência humana mais radical, na espiritualidade: na vontade de trabalhar, de criar, de responsabilizar-se por este planeta, de escutar a si mesmo e de manter-se sempre aberto para aprender e para deixar-se tomar pelo novo e pelo ainda não ensaiado (…) A religião quer transcender este mundo, até o universo, para poder descansar naquela instância que é adequada à abertura humana. O buraco dentro do ser humano é do tamanho de Deus.” (Boff, 1999, p. 155). Boff e Alves, relacionam o exercício da Religião com saúde para a vida humana pessoal e social, da mesma maneira como concebia Jung.

2.3 – CONCEITO DE RELIGIÃO PARA A PSICOLOGIA ANALÍTICA Diferente da relação de oposição entre os instintos Eros (pulsão de vida) e Tânatos (pulsão de morte), proposta por Freud, Jung afirmou em suas obras , que no processo de individuação, obrigatoriamente, o homem passaria por um exercício da Função Transcendente (além da Função Temporal, Espacial e da Linguagem). Jung propõe um instinto religioso intrínseco na psique. Entende-se por Individuação um processo através do qual um ser torna-se um “individuum” psicológico, isto é, uma unidade autônoma e indivisível, uma totalidade. Nas palavras do próprio Jung (1951): “A individuação significa tender a tornar-se um ser realmente individual; na medida em que entendemos por individualidade a forma de nossa unicidade última e irrevogável; trata-se da realização de seu si-mesmo, no que tem de mais pessoal e de mais rebelde a toda comparação. Poder-se-ia, pois, traduzir a palavra ‘individuação’ por ‘realização de si-mesmo’, ‘realização do si-mesmo’ ” (Jung, 1951, p. 20). O processo de individuação não permitiria que o indivíduo se sentisse um deus, um egocêntrico, mas incluiria o universo (inclusive a representação de Deus) à existência do indivíduo. Conceitua Jung (1951): “Constato continuamente que o processo de individuação é confundido com a tomada de consciência do eu, identificando-se portanto, este último com o si-mesmo, e daí resultando uma desesperadora confusão de conceitos (…) o si mesmo, no entanto, compreende infinitamente mais do que um simples eu… a individuação não exclui o universo, ela o inclui. ” (Jung,1951,p.136). Ao transcender se opõe ao empírico e ao material. Transcendência seria então a capacidade de superar a tensão entre os opostos de uma forma simbólica que transcende o nível da tensão. Alguns pensamentos não vêm da parte integrada da esfera pessoal e pode entrar em conflito no ego. O ego então retém a tensão dos opostos e manifesta a Função Transcendente, propondo uma solução simbólica onde uma solução lógica não foi possível. Jung a chamou de tertium non datur, o ‘terceiro não dado logicamente”. O conflito não é resolvido logicamente, mas transcendido. Algumas questões como “quem criou o universo?”, “porque existo?”, “o que há depois da morte?”, dentre outras que não podem ser respondidas de maneira lógico-racional, seriam “respondidas” pelo símbolo, acontecendo então a Função Transcendente. Bastante diferente do positivismo e determinismo freudiano. A psicanálise freudiana, interpreta a religião com o seu positivismo filosófico. A compreensão se dá sobre o modelo do funcionamento da patologia. Em última instância, Freud propõe uma exclusão do espaço religioso no futuro da civilização, mas numa permuta com as certezas fornecidas pela Ciência, e não pela religião. Podemos analisar, compreendendo num conceito mais amplo de fé e religião (do que a igreja instituição), que Freud apenas desloca a segurança e proteção da instituição religiosa para a instituição científica, como se fosse uma igreja de dogmas empiricamente científicos. Não deixa de ser uma fé, uma religião, mesmo que antiteísta. Uma postura de religio

2.4 – O CONCEITO DE TRANSCENDÊNCIA NA PSICOLOGIA ANALÍTICA É através da função transcendente que o homem se compreende como parte do Cosmos, como parte de um sistema maior que sua vida cronológica. A transcendência não é, na Psicologia Analítica, algo misterioso, metafísico ou supra-sensível, mas a união equilibrada (homeostase) dos conteúdos conscientes e inconscientes. Nos explica Jung: “O inconsciente se comporta de maneira compensatória, ou complementar, em relação à consciência. Podemos inverter a formulação e dizer que a consciência se comporta de maneira compensatória com relação ao inconsciente.” (Jung,1971 , p. 1). Quando o homem começa a conceber-se como finito, frente ao Cosmos (infinito), numa racionalização ( função do consciente), irrompe à consciência um aspecto não racional, mas arquetípico, inconsciente: o numinoso.

O numinoso é uma expressão do arquétipo do Self. O adjetivo arquetípico é referente a uma forma preexistente e inconsciente, que parece fazer parte da estrutura psíquica herdada, e pode, portanto, manifestar-se espontaneamente sempre e por toda parte. Os arquétipos no entanto, não têm conteúdo determinado, a não ser a partir do momento em que se tornam conscientes e são “enformados” no material da experiência consciente. Instintos. Como conceitua Jung (1954): “Provavelmente, a verdadeira essência do arquétipo, não pode tornar-se consciente, ela é transcendente, ou, como a chamei, psicóide.” (Jung, 1954, p. 576). Nos contos de fadas, nos mitos, nos dogmas e ritos das religiões, nas artes, na filosofia, nas produções do inconsciente de modo geral, em diferentes tempos e lugares, aparecem temas idênticos. São imagens que compõem uma base psíquica comum a todos os humanos, sejam eles neuróticos, psicóticos ou saudáveis – é o que a Psicologia Analítica chama de arquétipos. Dessa maneira, teríamos a expressão do arquétipo do Si- mesmo, o numinoso, objeto da função transcendente, que na manifestação e contato com os materiais da experiência consciente, faria surgir o sentimento religioso – religioso em seu conceito mais amplo, e não na restrita referência à instituição religiosa, como veremos adiante. O numinoso conceituado por Rudolf Otto é uma expressão do arquétipo do Self, traduzido para o português por Si-mesmo. Para Jung, concebedor do termo, o Si-mesmo é o arquétipo central da ordem, da totalidade consciente e inconsciente do homem, diferente do ego, que constitui apenas uma pequena parte da psique (consciente). É o Self um centro organizador do indivíduo como um todo. Os índios Naskapi falam de uma entidade interior, que chamam de mista’peo, que significaria “grande homem”. Os cristãos crêem também em uma divindade que habita seus corpos, o Espírito Santo. Além dessas imagens arquetípicas do si-mesmo, Jung também identifica Cristo, por isso, Jesus, por algum motivo em sua personalidade, era capaz de acolher as projeções das necessidades espirituais das pessoas com quem convivia. Jung escreve: “se não tivesse existido uma afinidade – ímã – entre a figura do Redentor e certos conteúdos inconscientes, a mente humana nunca teria sido capaz de perceber a luz brilhando no Cristo, e se apoderar dela tão apaixonadamente” (Jung, 1951,p.283). À medida em que a função transcendente ocorre, não só os conteúdos inconscientes são modificados, como também o “eu”, o ego, centro da consciência. O ego fica em segundo lugar, reconhecendo que o inconsciente enriquece a personalidade, de modo que até mesmo ultrapasse sua extensão consciente. Não deve-se entretanto, igualar o eu-consciente (ego) com o Si-mesmo, isto seria um egocentrismo para alimentar uma ilusão de um domínio do “eu”. É essa totalidade, maior que a consciência (pois inclui também ela), que Jung chama de Si-mesmo, ou de Self, que na vida comunitária se manifesta no simbolismo de scintillae para os alquimistas; mista’peo para os Naskapis; mestre; sábio, mandala para os monges tibetanos; Deus para o crente. Nessa óptica analítica, um indivíduo poderia estar exercendo sua função transcendente, equilibrando a consciência com o inconsciente, sem no entanto, acreditar no conceito teísta de Deus. É bem provável que tenha sido esta a fundamentação da resposta de Jung a uma entrevista para a tv; quando o repórter pergunto: “Dr. Jung, you believe in God?” (“Dr.Jung, você acredita em Deus?”), ao que Jung responde: “I know God!” (“Eu conheço Deus!”). Partindo do enunciado analítico de que Deus é um símbolo do Si-mesmo, e o Si-mesmo é um arquétipo, portanto atemporal e coletivo, não restrito ao indivíduo mas a um inconsciente coletivo, conclui-se que Deus, ou qualquer outra nomenclatura para o Self, seja inata ao sujeito, e não adquirida com o convívio social (como sugere a Sociologia).

O sentimento religioso ( num conceito mais amplo, além instituição religiosa), é inato a qualquer indivíduo, e não apreendido. Quando há uma unilateralização dos opostos, a parte em menosvalia, irrompe na consciência. A supervalorização da consciência, ou, negação dos arquétipos (inconscientes), sem a auto-regulação da função transcendente, podem permitir a manifestação desimpedida das influências inconscientes – neuroses ou psicoses. Nas palavras de Jung (1971): “O ego deve receber o mesmo valor, no processo, que o inconsciente, e vice-versa” (Jung, 1971, p. 20). Em suas pesquisas sobre o comportamento humano, Jung teve longos contatos com homens primitivos e civilizados, e acabou por concluir que a grande maioria seres humanos urbanos, perderam, ou estavam em processo de atrofia, seu sistema auto-regulador de seu aparelho psíquico, promovendo uma vontade orientada unilateralmente. Não tinham um bom funcionamento da função transcendente. Entretanto, no exercício da função transcendente, acontece uma contra-reação, uma atenção crítica e vontade orientada para um fim ( consciente), proporcionando assim, o equilíbrio psíquico. Nesse processo, temos aí a etapa da confrontação entre o ego e o inconsciente Entretanto, acontece uma contra-reação, uma atenção crítica e vontade orientada para um fim (consciente), proporcionando assim, o equilíbrio psíquico.

Nesse processo, temos aí a etapa da confrontação entre o ego e o inconsciente, posteriormente, a aproximação dos opostos, do qual resulta o terceiro elemento: a função transcendente. Neste instante, quem conduz o processo, é o ego, e não o inconsciente. Jung postula (1971): ” A confrontação, portanto, não justifica apenas o ponto de vista do eu, mas confere igual autoridade ao inconsciente. A confrontação é conduzida a partir do eu, embora deixando que o inconsciente também fale – audiatur et altera pars (ouça-se também a outra parte).” (Jung, 1971, p.21). É no confronto da posição consciente e do arquétipo inconsciente que surge uma tensão carregada de energia, que produz um deslocamento que leva a um novo nível de ser, uma nova situação – a individuação. O caráter do numinoso é “espiritual”, “mágico”, no sentido de exercer um efeito sobre os afetos. Impele com paixão inaudita e lógica, conduzindo o sujeito ao fascínio, uma plenitude de sentido. E nesse ponto, não há diferença entre o crente que tem fé no Cristo redentor da humanidade e do cientista ateu que professa a Psicanálise como a panacéia da saúde mental. Ambos são religiosos, no sentido do numinoso. A expressão do objeto numinoso na função transcendente pode ser tanto criadora quanto destrutiva, na vida do indivíduo, ou seja, pode ser capaz tanto de causar como curar doenças. Este arquétipo habita o inconsciente coletivo, portanto, é inerente ao homem enquanto espécie. Jung (1971): “Pouco importa que o paciente seja rico ou pobre, tenha família e status, porque estas circunstâncias exteriores não bastam para dar sentido a uma vida. Trata-se aqui, muito mais de uma necessidade irracional de uma vida dita espiritual que o paciente não encontra nem na universidade nem nas bibliotecas e nem mesmo nas igrejas, pois ele pode aceitar aquilo que lhe oferecem e que fala apenas a seu intelecto, mas não toca seu coração.” (Jung, 1971, p. 300) . Dessa maneira, o ateu que tem fé na sua crença da não existência de Deus, e tem nisso uma plenitude de sentido para sua vida, tem um contato maior com o numinoso do que um participante de uma instituição religiosa, que frequente a comunidade e realize os ritos apenas por conveniência social. Para a psicologia analítica, o saudável seria que o indivíduo assumisse suas representações espirituais, pois é elemento constitutivo indispensável da vida psíquica. Conceitua Jung (1971) sobre as representações espirituais gerais: “É por isso que sua ausência parcial ou mesmo sua negação ocasional entre os povos civilizados deve ser considerada como uma degenerescência.” (Jung,1971, p. 301). Na função transcendente, forma-se uma imagem do mundo e de si próprio – a cosmovisão – de maneira que haja um efeito retroativo sobre o próprio homem (se isso não acontecer, será um simulacro e não uma cosmovisão; como naquela história do equilibrista que ao atravessar um abismo sobre um fio de aço esticado pergunta: “quem acredita que eu consigo?”, e ao que a multidão brada positivamente, completa: “quem realmente acredita que eu consigo, monte sobre meus ombros e siga comigo”.) Em alguns homens, o ceticismo é uma maneira de encobrir a falta de uma cosmovisão. Jung disserta sobre isso (1971): “…estas pessoas, evidentemente, não se dão conta do que realmente estão fazendo, pois o que na verdade acontece é o seguinte: elas permanecem deliberadamente na incerteza é o seguinte: elas permanecem deliberadamente na incerteza quanto às suas idéias fundamentais; ou, em outras palavras: descem a um nível de consciência mais baixo e mais primitivo do que aquele que corresponderia à sua capacidade real. Uma certa crítica e um certo ceticismo nem sempre são indícios de inteligência; muitas vezes são justamente o contrário, em especial quando nos valemos do ceticismo para encobrir a falta de uma cosmovisão. Muitas vezes o que falta é mais coragem moral do que propriamente inteligência, pois não podemos ver o mundo sem ver-nos a nós próprios, e da mesma maneira como o indivíduo vê o mundo, assim também vê-se a si próprio, e para isto não se precisa de nenhuma coragem. Por isto é sempre fatal não ter nenhuma cosmovisão” (Jung, 1971, p.309).

Quanto mais a vida é racionalizada, os conteúdos inconscientes procuram formas diferentes de manifestação, e se houver uma unilateralização da consciência, há o caminho da neurose. Explica Jung (1971): “O materialismo racionalista, uma atitude mental aparentemente insuspeita, é, na realidade, um movimento psicológico de oposição ao misticismo. Este é o antagonista secreto que é preciso combater. O materialismo e o misticismo nada mais são do que um par psicológico de contrários, precisamanete como o ateísmo e o teísmo. São irmãos inimigos, dois métodos diferentes de enfrentar de algum modo as influências poderosas do inconsciente: um negando-as e o outro reconhecendo-as.” (Jung, 1971, p.317). A manifestação do legítimo instinto religioso é de espontânea atividade inconsciente, e por isso, não podem ser sistemas filosóficos forjados da cabeça dos homens, como supõe a concepção vindoura do Iluminismo. Por isso, a disseminação universal dos símbolos religiosos que verdadeiramente são verdades psicológicas naturais. Intrínsecas à psique humana. “Não me canso de insistir que nem a lei moral, nem o conceito de Deus, nem nenhuma religião penetraram o homem pelo contrário, encerra nuclearmente todas estas coisas dentro de si, desde as origens, e, por isto, as recria sempre de novo, extraindo-as de seu próprio íntimo.” (Jung, 1971,p.216). A função da Psicologia da Religião analisar o relacionamento da psique humana com a imago de Deus, respeitando isso como um fato, sem no entanto, se arrogar a competência de saber o que Deus é em si mesmo. É essa a função da Teologia. Não cabe também à Psicologia, analisar a estrutura social dos relacionamentos de indivíduos que professam suas fés, esse é o objeto da Sociologia da Religião.

2.4 – O CONCEITO DO SENTIMENTO DO NUMINOSO Em sua obra O Sagrado, Rudolf Otto disserta sobre o sentimento do numinoso. Disserta ele que inferir sobre a idéia de Deus, permite uma visão racional que chega a superar o elemento irracional. Temos aqui os conceitos de, por exemplo, espírito, razão, intervenção divina, onipotência, eternidade, dentre outros. Diz Otto (1917): “Se chamamos racional a um objecto que pode ser claramente compreendido pelo pensamento conceptual, a essência da divindade descrita por estes predicados é racional, e uma religião que os aceita e afirma é, de igual modo, uma religião racional.” (Otto, 1917, p.9). No entanto, essas noções racionais não esgotam a essência da divindade. O sagrado está longe de ser racional em sua totalidade, é da classe do inefável. No cristianismo, encontramos sentimento de reconhecimento, confiança de amor, de segurança, submissão e resignação, mas também não traduzem o sentimento de uma emoção religiosa profunda. Enuncia Otto(1917 ): “Há um sentimento do estado de criatura, o sentimento da criatura que se abisma no seu próprio nada e desaparece perante o que está acima de toda a criatura.” (Otto, 1917 ,p.19). Na verdade, o sentimento do estado de criatura seria um efeito de outro sentimento, o de Temor, que também é inefável; é a causa do sentimento de criatura. É o mysterium tremendum, o mistério que causa arrepios. Esse temor é análogo ( e não sinônimo ) do medo, reação natural frente ao desconhecido – a categoria do numinoso. O terror natural, é o primeiro contato, um vago pressentimento do misterioso, a constatação de que algo não se encontra no domínio comum e natural. Este é o fundamento das religiões primitivas, dos medos de assombrações, demônios, da ira de Deus. É cinestésico, com reações físicas diferentes das sentidas no temor. É a inacessibilidade absoluta ( majestade) . Esse elemento não desaparece essencialmente, mas se conduz à fé no Deus majestoso. Quando o homem compara seu eu com o numinoso, vê sua pequenez e , ganhando consciência do seu nada, transforma a plenitude do tremendum em plenitude de ser. Além dos elementos do tremendum e da majestas, há o elemento energia do numinoso, que põe a alma humana em estado de atividade. O tremendum é um predicado do mysterium, apesar de inseparável desta. Os elementos deles são em si mesmos, diferentes. Mysterim é o totalmente outro, (thateron, o anyad, o alienum), aquilo que foge do habitual, do familiar, por isso é misterioso. Otto explica (1917): ” O objecto realmente misterioso não é inacessível e inconcebível apenas porque o meu conhecimento relativo a este objecto tem limites determinados e inultrapassáveis, mas porque me debato com algo totalmente outro, com uma realidade que, por sua natureza e essência, é incomensurável e perante a qual recuo, tomado de estupefacção” (Otto, 19__, p. 40). O mysterium tremendum, é o totalmente outro, algo que não entra na esfera de realidade, mas pertence a uma ordem de realidade absolutamente oposta à humana habitual, que provoca na alma , um interesse que não se pode dominar. O numinoso é para a alma, simultaneamente, objeto de temor e de medo, que encanta e que atrai. É o elemento Fascinante. É o fascinante que pode levar a estados de quietude (hesychia) ou arrebatamento, em que quase forma só por si um estado de consciência completo, que enche a alma. É este insaciável, quando comparamos com a satisfação da vida física, psíquica e espiritual – o chamado “fundo da alma”. Na sua suprema potência, o fascinante torna-se o hiperbólico. Temos aqui as conversões e regenerações no cristianismo, o bodhi, o “olho celeste”, que se abre, ou o jnânia, de Isuara, que triunfa sobre as trevas da ininteligência, o Nirvada de Buda ( que apesar de conceitualmente ser uma negação, é sentimentalmente uma reação positiva frente ao elemento fascinante). Irracional é aquilo que nos escapa aos nossos conceitos, e não aos sentimentos. A alegria por algo, por exemplo, pode ser conceituada; já a felicidade que nos proporciona o elemento fascinante do numinoso é inefável, portanto, irracional. O irracional força-nos a recorrer a ideogramas, sinais duradouros, símbolos de conceitos para serem por nós captados, e não racionalizado. O sentimento numinoso não pode ser ensinado, mas sim provocado, excitado, despertado (como se transmitem sentimentos) com uma participação sentimental. É esse compartilhar, mais do que as palavras, a solenidade da atitude, o gesto, o tom de voz, a fisionomia, enfim, os signos de quem já experimenta o sentimento numinoso. Ou então a apresentação indireta por meio do terror, que devido a analogia de sentimentos do tremendum, podem provocar em mentes mais primitivas, uma fé pelo medo. Exemplo nas imagens bizantinas da Virgem Maria, em Durga, na Índia ou na valorização da figura demoníaca nos neo pentecostais . Na evolução das religiões, temos no início, o sentimento de medo, num caráter primitivo e inculto, que é ultrapassado à medida que o numem se revela à consciência e ao sentimento penetrado por elementos racionais – à cultura, à moralização, à racionalização. No entanto, não perde sua incompreensibilidade. É um sentimento que passa a ser familiar, mas não inteligibil conceptualmente. Mais ou menos como a música, que podemos captar pelo sentimento, mas quando tenta-se conceituar, já não é mais música, mas teoria musical . Inefável. Os homens teriam uma disposição universal para o contato com o sagrado (numinoso), porém, essa disposição seria parcial, no sentido de uma faculdade inata de receber e apreciar conhecimentos, mas não de compo-los, de os produzir. Há uma necessidade de serem “despertados” na expressão de Otto, pela ação de outros homens melhor dotados. Vejamos a dissertação de Otto (1917) sobre isso: “A religião é um produto da história, enquanto esta, por um lado, desenvolve a disposição para o conhecimento do sagrado e, por outro, ela própria é, em algumas das suas partes, a manifestação do sagrado (…). A ‘disposição’ universal é, pois, apenas a faculdade de receber e de apreciar conhecimentos, mas não a de produzir por si mesmo. Na multidão, a ‘disposição’ existe apenas em estado de receptividade, isto é, de excitibilidade religiosa.” (Otto, 1917.p. 219).

3 – HISTÓRIA DO ATEÍSMO

Numa abordagem psicológica, nos é conveniente falar de Deus tomando por base as diferentes concepções do ser humano a respeito sobre divindade no decorrer dos séculos; seja ela positiva ou negativa, crente ou atéia. Por esse motivo, consideramos pertinente uma breve explanação do pensamento ateísta. O primeiro texto de filosofia grega, datado de V-VI a.C., um poema de Parmênide do qual só temos fragmentos, há a exclamação: “há que há”, também traduzido como “O ser é”, ou transliterado “Há que há alguma coisa, existe alguma coisa, do ser”. Um espanto metafísico e religioso diante da realidade de constatação da existência. 3.1 – ATEÍSMO NO PAGANISMO A história do ateísmo confunde-se com a história da religião. Exemplo disso é o primeiro pensador (cronologicamente falando) considerado ateu, que na verdade, nunca mencionou a inexistência de Deus: Epicuro. Epicuro (341-270 a.C.) foi o grego tomado por base para a fundamentação do Materialismo. Para ele, a sensação é a base de tudo; é concebida como contato direto com a coisa em si: teoria física do contado entre o que sente e o que é sentido. Entretanto, analisando seu pensamento, vemos que seu suposto ateísmo foi instituído por seus discípulos, e não confesso por ele. A fama póstuma de ateu veio a Epicuro pelo fato dele ter combatido a superstição religiosa vigente em seu tempo. Em seu pensamento, não encontramos negações da existência de Deus, mas sim a negação da intervenção divina no curso do mundo. Sobre suas doutrinas fundamentais, comenta Lecompte (1996): ” ‘Que se tenha em mãos apenas este quádruplo remédio: Deus não deve ser temido; A morte é isenta de sensibilidade; É fácil procurar o bem; sofrimento é facil de ser suportado.’ Seu objetivo é, antes de tudo, prático. Sem aprofundar a natureza da morte, tenta destacar o caráter perecível do ser humano. Contrariamente a todas as concepções de seu tempo, e para lutar contra o temor supersticioso, postula o aniquilamento total do espírito humano na morte para encontrar coragem diante dela e não temer os sofrimentos que lhe são ligados e os que poderiam segui-la”. (Lecompte,1996, p.35). Epicuro afirma que “não é ímpio quem nega os deuses do vulgo (ou ateu)”, ou seja, quem recusa e nega os deuses da religião supersticiosa, os “deuses do vulgo” Seu discípulo, Lucrécio (99-55 a.C.), seguiu a mesma linha : Deus não intervém na evitação da morte.

Porém, diferentemente de Epicuro, que sugeria ao homem que aproveitasse então a vida, uma vez que não haveria o além-túmulo (Carpe diem), Lucrécio põe-se a desprezar a vida. Não deveríamos ter medo da morte ( uma vez que a morte é o fim das sensações sofríveis da vida) logo, a existência não merece ser vivida. Seguindo sua filosofia, Lucrécio se suicida aos 44 anos . É com esse pensamento materialista anti-supersticioso que o judaismo-cristianismo se depara em seu início. Por isso é considerado pelos gregos como não-humano, não-filosófico. No século II, o epicurista neoplatônico Celso, criticou o cristianismo, denunciando que a idéia de uma encarnação divina, seria uma pretenção antropocentrista. Seria impossível que Deus se fizesse homem, pois um Deus feito homem não poderia ser considerado realmente homem; por ser verdadeiramente Deus ; injusto também seria o privilégio da intervenção divina aos pobres e pecadores . Celso teve no teólogo cristão Orígenes (185-253) seu crítico.

Aliás, o pensamento de Celso só se tornou conhecido contemporaneamente por causa deste, em sua crítica Contra Celso, uma vez que os manuscritos do primeiro se perderam. No ano 100 d.C., nasce Justino, que morreu mártir cristão em 165. Sua filosofia anunciava uma fé universal e não exclusivamente cristã. Em sua teoria, a inteligência do homem, mesmo estando fora da Revelação explícita da Bíblia – é capaz de conceber verdades próximas das verdades eternas, que chamou de “sementes da verdade”, que seriam “vistas parciais da verdade”. Daí então, todos os filósofos – como ele – estariam à procura da verdade e de Deus. Fundamentava-se na Epístola de Paulo aos Romanos (2,14-15): “Quando pagãos sem ter lei fazem naturalmente a lei (…)lei escrita no coração; sua consciência é também testemunho assim com seus juízos anteriores(…)” (Bíblia Sagrada) Temos então as definições de Justiniano de que “os que viveram de acordo com o Verbo são cristãos, mesmo que tenham sido considerados ateus.” (Lecompt,1996,p.72). Constatamos que na antiguidade pagã, não houve ateísmo, no sentido etmológico do termo, entretanto, é estabelecido um materialismo que virá a fundamentar o positivismo e materialismo prático que estruturarão o ateísmo dos tempos vindouros.

3.2 – ATEÍSMO NA IDADE MÉDIA Na história do ateísmo, vemos que seu surgimento tem necessariamente a ver com o cristianismo. O ateísmo surgiu como um ressentimento anticristão. Sobre isso, Lecompte (1996) nos diz que foi o próprio cristianismo quem originou a doutrina atéia: “De fato, foi só em épocas e em regiões influenciadas pelo criti- anismo que se encontrou o ateísmo ou um secularismo e materialismo chão evacuando todo sentido religioso. Conclui-se disso que se trata de um cristianismo mal-recebido, mal-compreendido e mal-vivido que gera o ateísmo”. (Lecompte,1996,p.78). Sociedade e Igreja produziram cisões. A primeira por ter criado novas necessidades sem receber a consideração cristã. A segunda, por apresentado testemunhos deficientes, ou mesmo deformações teológicas, deslizes filosóficos e infidelidades perante a fonte original. Nos parece que os testemunhos deficientes, as querelas cristãs e as “guerras santas” têm responsabilidade na ascensão do anticristianismo, e posteriormente, do ateísmo. Mesmo durante a Idade Média, período de poder e opressão eclesiástica, pensadores religiosos questionaram alguns fundamentos da fé cristã, sem porém desaguarem no ateísmo propriamente dito. Dentre estes, podemos destacar o monge alemão Otlão de Santo Emerano (século XI) e santo Anselmo de Cantuária (1033-1109). Na Renascença, acontece um retorno à antiguidade pagã, a volta a uma atenção e à natureza. Contra esse retorno ao humanismo, combatem principalmente os reformadores Calvino e Lutero. Dois pensadores também se destacam neste retorno às idéias epicuristas: o italiano Lucílio Vanini (1585-1619), repropondo a vivência de uma lei natural e o francês Pierred Gassend (1592-1655), retomando um realismo da matéria. Surge um movimento de uma espécie de “ceticismo cristão”, onde a ordem é de duvidar de tudo em ciência, filosofia, confiando única e exclusivamente à Revelação. Nesta ordem temos os fideístas François de La Mothe L Vayer (1588-1672), o católico Pascal (1623-1662), os protestantes Pierre Bayle (1647-1706) e Immanuel Kant (1724-1804). É Bayle porém quem passa a responder as críticas da religiosidade pagã, articulando fé cristã e razão filosófica. Um novelista do século XVII, o francês Molière (1622-1673), satirizou a hipocrisia devota, em suas obras Tartufo, Don Juan e Festim de Pedra. Outro anticristão, também anticlerical, porém não ateu, foi Robert Challe (1659-1721), que atacou ironicamente as Santas Escrituras, que dizia ser inverossímil e estúpida. Todos os pensadores acima mencionados são relevantes para a estruturação de uma fé atéia, contudo, o primeiro sistema ateu nasceu de um padre: Jean Meslier (1664-1729). Seu ateísmo também surge em oposição ao cristianismo; uma atitude de decepção de um crente nas promessas que não se realizariam .Sobre isto, comenta Lecompte (1996): “No momento, padre Meslier está cruelmente decepcionado; e é em decorrência dessa decepção que constrói seu ateísmo. Pode-se dizer que são duas as causas principais dessa decepção. A primeira se refere à oração, restrita neste caso à oração de petição; a segunda concerne ao cristianismo em seu conjunto, quanto à salvação que pretende propiciar. Em Jean Meslier, na maioria das vezes, é Deus, enquanto tal, que é negado. Encontra-se sempre mais rejeitado com o conteúdo e as realizações da religião cristã: ‘E como ninguém ainda viu, e até o momento não se vê nem a apareência da vinda desse pretenso reino, isto é uma prova evidente de que esse reino só era imaginário.’.” (Lecompte,1996,p.102). Ateísmo e anticlericalismo estão estreitamente ligados neste que é o primeiro ateísmo estruturado sistematicamente na história.

3.3 – ATEÍSMO NO ILUMINISMO Com o Século das Luzes (XVIII), vários pensadores se dobraram à razão e adotaram posturas anticristãs e anticlericais , porém deístas, Destacaremos apenas três destes, do materialismo francês, por acreditarmos serem os três mais influentes aos outros pensadores, como Marx, por exemplo: Voltaire, Deiderot e D’Holbach. Voltaire (1694-1778), em sua obra Deus e os homens recusa credibilidade tanto ao cristianismo quanto à Igreja. Contudo, afirma sua fé em Deus, abstendo-se do ateísmo. Observemos os comentários de Lecompte (1996), que também cita Voltaire: “De qualquer modo, Voltaire faz questão de proclamar-se deísta. O sentimento religioso que o habita parece sincero e fundamentado; a distinção que ele teima em fazer entre um anticristianismo virulento e a salvaguarda do sentimento religioso é mais da ordem da lucidez e de seu gênio habitual: ‘Sempre considerei o ateísmo como o maior desvario da razão, porque é tão ridículo dizer que o arranjo do mundo não prova um artífice supremo como seria impertinente dizer que um relógio não prova um relojoeiro.’ “. (Lecompte,1996,p.107). Diderot (1713-1784) é companheiro do barão D’Holbach, com quem escreveu e trocou teorias. Com Voltaire tem em comum o anticristianismo e em alguns momentos, o anticlericalismo também, porém, se manifesta com mais paixão, anunciando o romantismo e a extrapolação da razão fria pela riqueza do sentimento, pelo sentimento religioso primeiramente (apesar de anticristão). Sobre seu ateísmo, não nos é possível categorizar, pois situa-se entre o deísmo de Voltaire e o ateísmo de d’Holbach. O barão de D’Holdbach (1723-1789), na considerada bíblia do ateísmo, Système de la nature, ataca a teologia, sobretudo o questionamento de um Deus vingador, construtor do inferno; a origem do mal atribuída a Deus e críticas à Igreja. O objetivo do barão era o de combater e aniquilar o aparelho clerical e seu obscurantismo.

Com isso, ele radicaliza e endurece um empirismo e um racionalismo e um materialismo ateu, dogmático e absoluto. Faz o mesmo com a razão, que transforma em racionalismo sistemático. O anticristianismo de d’Holdbach é fundamentado em seu anticlericalismo, que por sua vez, fundamento seu ateísmo declarado. Em alguns escritos porém, nos é clara uma postura religiosa, ora agnóstica ora panteísta, onde o ateísmo do pensador não é tão destituído de fé num deus como se aparenta- seu ateísmo é circunstancial. Parece que se não houvesse uma oposição selvagem ao cristianismo na percepção que faz de seu aparelho clerical e dogmático, não teria negado a existência de Deus. Nos explica melhor Lecompte(1996), que também cita o barão: “Estando a questão de Deus e do ateísmo situada em função do anticlericalismo, compreende-se que, contrariamente à intenção de d’Holdbach, o ateísmo perca consistência; abre-se, a partir daí, num agnosticismo de boa aceitação: ‘Haveria outro Deus, mas os padres não estão interessados nele; é com o deles que devemos ficar, se não quisermos ser assados’. (…) De fato, em diversas passagens de seus escritos, e à semelhança de outros autores, d’Holdbach às vezes não pode deixar de experimentar explicitamente certo sentimento de religião e de piedade, pelo menos em relação à natureza. Exemplo disso é esta invocação quase religiosa que conclui seu Système de la nature: ‘Ó Natureza! Soberana de todos os seres! E vós suas filhas adoráveis virtude, razão, verdade! (…) Reunais, ó Deidades prestativas, vosso poder para submeter os corações.’ “. (Lecompte, 1996,p.124-125).

3.4 – ATEÍSMO NA MODERNIDADE Voltaire, Diderot eD´Holdbach .Estes três materialistas franceses se oferecem como inspiração a Karl Marx (1818-1883). O objetivo do ateísmo marxista era o do desaparecimento por completo da superestrutura religiosa ou ideológica quando o materialismo, sociológico, econômico tomasse todo o espaço. De acordo com Marx, a única realidade é a “produção”. Nesse sistema, Deus não existe por não ter necessidade de existir, uma vez que o com o fim da luta de classes, não haveria mais conturbações sociais. Contudo, é religiosamente que os próprios defensores da doutrina diziam que o comunismo só poderia ter êxito se assumisse a força religiosa. Para Lounatcharski haveria um Deus vivo que traria a todos a felicidade e seria onipotente, e que esse Deus, seria construído pelos próprios comunistas. Além de ateísta, o pensamento marxista também atacou a Igreja e o cristianismo, por senti-los como impecilhos à implantação da nova ordem. Devemos também falar sobre os estudos do padre jesuíta Henri de Lubac que dissertou sobre o secularismo proveniente de um cristianismo malconcebido. Lubac analisa a doutrina ateísta de Joaquim de Fiore (1132-1202), que postula como uma leitura apocalíptica e milenarista do amor fraterno e da solidariedade humana.

Fiore declara morte à igreja dos padres e dos sacramentos, declarando a permanência de uma igreja puramente espiritual, de homens reconciliados. De acordo com Fiore, o desenvolvimento cristão da humanidade seria marcado por “três idades” correspondentes às três pessoas da Trindade: o Antigo Testamento seria a idade do Pai; o Novo é a do Filho; a idade final seria a do Espírito Santo. Observemos porém seu conceito de Espírito Santo: Cristo não passaria de uma figura modesta e anunciadora do Espírito Santo – notadamente um anticristianismo. Suas idéias acabaram influenciando pensadores antiteístas como Guillaume Postel (1510-1581), Jakob Böhme (1575-1624), sociedade secreta rosa-cruzes e as lojas maçônicas. Outra influência de Joaquim de Fiore é no socialismo francês. Sendo utilizado apenas o aspecto social do cristianismo. Seguidores da doutrina na França socialista podemos destacar o padre Felicite de Lamennais( 1782-1854), o publicista Pierre Leroux (1798-1871) e o historiador maçon Jules Michelet (1798-1874). No pensamento de Feuerbach que também encontramos os fundamentos da doutrina joaquinista. Não haveria conteúdo real legítimo na religião:o Espírito não é mais o de Cristo ou do Pai, é o do mundo. Feuerbach garante ser a religião a primeira consciência do homem, porém com alienação. Para encerrar, é Feuerbach quem anuncia e fundamenta o pensamento de três pregadores do ateísmo contemporâneo: Freud, Marx e Nietzsche.

4 – POSSIBILIDADE DO ATEÍSMO COMO RELIGIÃO

Sendo as divindades nomes simbólicos para os conteúdos autônomos do inconsciente, é a mente humana que projeta esses conteúdos em forma de espíritos e demônios. O indivíduo ateu realiza a mesma simbolização dos conteúdos inconscientes que o crente, entretanto, por uma outra via. Em alguns casos, a concepção individual de Deus é diferente da concepção socialmente vigente, como os agnósticos por exemplo, que acreditam na existência de uma figura superior ao homem, mas não acreditam na possibilidade de contato com esta; a sociedade os considera ateus, pois fogem da concepção da maioria. Outra concepção socialmente vista como atéia é a do panteísmo, de que Deus não seria um ser, mas toda a matéria ao redor do homem. Quando se fala em teísmo então, indispensavelmente toma-se por princípio o conceito socialmente corrente de Deus, independente de cada individuum poder tecer sua própria representação de Deus. A mente humana, por não suportar o caos dos conteúdos autônomos inconscientes sem uma organização consciente, necessita estruturar de alguma forma a emergência desses arquétipos. Uma dessas vias é o ateísmo. Em sua obra, Jung (1973) explica: “O materialismo racionalista, uma atitude mental aparentemente insuspeita é, na realidade, um movimento psicológico de oposição ao misticismo. Este é o antagonista secreto que é preciso combater. O materialismo e o misticismo nada mais são do que um par psicológico de contrários, precisamente como ateísmo e teísmo. São irmãos inimigos, dois métodos diferentes de enfrentar de algum modo as influências poderosas do inconsciente: um negando-as e o outro reconhecendo-as.” (Jung, 1998, p.317). Se amplia-se o conceito de divindade, guardando-se à margem o conceito social de Deus, se nos apossa-se do conceito de religião da Teologia Sistemática de Tillich ou da Psicologia Analítica de Jung, que conceitua como deus aquilo pelo qual o homem é possuído, o ateísmo seria o deus do ateu. No ateísmo o indivíduo concebe uma representação de Deus, e num segundo momento, passa a negá-lo. Entretanto, o objeto central, tanto do ateísmo como do teismo, é Deus. A fé ateísta, é como qualquer julgamento de valor que negue algum objeto: é necessário haver duas idéias ao mesmo tempo, uma que conceba o objeto, simultaneamente à outra, que negue tal objeto.

Não se pode negar algo sem antes se conceber uma representação deste objeto negado. Ninguém diz não acreditar em extra-terrestres, por exemplo, sem ter um conceito (mesmo que pessoal) do que são extra-terrestres. Quando se discorda da existência destes seres, está implícita uma afirmação de como eu acho que eles seriam, se existissem. No ateísmo, está implícita uma concepção de Deus, que simultaneamente é negada. A primeira idéia fica em um nível pré-consciente (ou inconsciente, por ser arquetípica), já a segunda, está no nível da consciência. Se não existisse um conceito de Deus (mesmo que não consciente), não haveria a possibilidade de uma negação dele. Só é possível negar aquilo que se concebe. Ou seja, o ateísmo não sobrevive sem uma representação da figura de Deus. O ateu acredita na descrença. Tem fé na inexistência de Deus. Fé no sentido de estar possuído por aquilo que o toca incondicionalmente. Nos termos de Tillich ( 1956): “Fé como estar possuído por aquilo que nos toca incondicionalmente é um ato da pessoa como um todo. Ele se realiza no centro da vida pessoal e todos os elementos desta, dele participam. Fé é o ato mais íntimo e global do espírito humano . Todas as funções do homem estão conjugadas no ato de fé. A fé, no entanto não é apenas a soma das funções individuais. Ela ultrapassa cada uma das áreas da vida humana no mesmo tempo em que se faz sentir em cada uma delas.” (Tillich, 1956, p.8). Para haver fé, para o sujeito decidir-se entre a religião teísta ou ateísta, é necessária a participação da dimensão consciente e da dimensão inconsciente, a totalidade do ser, o que Jung chamou de Função Transcendente. Não seria possível então chamarmos um recém nascido ou um debilitado mental de crente ou ateu, uma vez que sua estrutura egóica não é desenvolvida o suficiente para o exercício da função transcendente. “Se acontecer que apenas uma das funções que constituem a pessoa é identificada com a fé, desfigura-se o sentido da fé” (Tillich,1956, p.24). Alguém entretanto, pode usar o nome de Deus com conotações tradicionais, sem um contato completo com Deus, sem participar do arquétipo do Self, apenas com a Persona, usando sem apropriações completas, mas banalmente.

O próprio Jung, em suas memórias, descreveu seu pai, um reverendo protestante, como alguém que não tinha uma experiência pessoal com a representação de Deus. Nas palavras do escritor bíblico Jó: “só Te conhecia de ouvir falar, mas agora meus olhos Te vêem.” Destarte, quando o ser humano entra em contato com o arquétipo do Self, popularmente chamado de Deus, tem duas possibilidades: desejar ou não, entrar em contato com esse conteúdo inconsciente. Qualquer uma das alternativas, será uma crença, uma fé. Poderá ser positiva, no sentido de acreditar ( o crente ) ou negativa, no sentido de que aquela imagem arquetípica não corresponde ao conceito de Deus socialmente aceito ( o ateu). Quem faz o valor de julgamento sobre esse conteúdo autônomo inconsciente, é o ego (consciente), que passa a construir a estruturação da crença adotada, de maneira a fundamentá-la positiva ou negativamente. 4.1 – A RELIGIOSIDADE EM NIETZSCHE O pensador saxão Friedrich Nietzsche (1844-1900), é conhecido por sua crítica à existência moral e religiosa. Em seus aforismos de Zaratustra, depõe contra os valores tradicionais, pregando não um outro sistema de valores, mas o não-valor, do nada. A filosofia de Nietzsche fala do ato de decisão, da consciência da própria finitude diante do horizonte do nada, do não-poder definir a realidade com as categorias do intelecto, não cognicível – a transcendência existencial. Diferente da metafísica cristã, que o autor chama de alienante, por estar vinculada à dimensão abstrata do conceito. O Deus declarado morto por Zaratustra é o deus da metafísica. A abertura para o sagrado se dá em Nietzsche através da transcendência, com a dimensão do super-homem abrindo-se para o nada. O divino para Nietzsche não seria extra-homem, nem manipulado por ele, para ter Deus como horizonte de segurança. Sobre isto, comenta Penzo(1993): “Nietzsche não mata Deus, mas limita-se a constatar a ausência do divino na cultura do seu tempo, acusando, pelo contrário, por essa ausência e morte, o pensamento metafísico (…) Com a rejeição da tese da fé-segurança, que busca fundar-se numa certeza típica da ciência.” (Penzo,1993,p.32). Apesar de ter sido inimigo furioso do cristianismo, em seus aforismos, percebemos uma postura religiosa. No estabelecimento de uma nova religião, uma das fases fundamentadoras é o estabelecimento de um inimigo.

Nietzsche o faz: o cristianismo. Na obra de poucas páginas O Anticristo (1895), o autor contesta o cristianismo burguês, mas se dirige positivamente à figura existencial do Cristo, exemplificando a finitude, que seria inerente até mesmo a Deus. Entretanto,a maior identificação de uma religiosidade em Nietzsche vem de uma interpretação analítica de seus aforismos. No conceito de transcendência de Jung, de um equilíbrio entre a fluição consciência/inconsciência, Nietzsche a realiza. Em sua vida e obra, há clara fluência do inconsciente à consciência. Nietzsche inverteu o sentido tradicional da filosofia, fazendo dela um discurso ao nível da patologia e considerando a doença “um ponto de vista” sobre a saúde e vice-versa. Para ele, nem a saúde, nem a doença são entidades; a fisiologia e a patologia são uma única coisa; as oposições entre bem e mal, verdadeiro e falso, doença e saúde, são apenas jogos de superfície. Há, segundo Nietzsche, uma continuidade, entre a doença e a saúde e a diferença entre as duas é apenas de grau, sendo a doença um desvio interior à própria vida; assim, não há fato patológico. Para Nietzsche, as paixões, a vontade de potência, a sensualidade, devem florescer, rompendo os paradigmas – é a loucura quem conduz aos maiores feitos. Em suma, os “filósofos além do bem e do mal” devem proclamar as novas leis e quebrar o jugo da moralidade, da fantasia, da loucura. É dentro de sua própria vida e obra que devemos compreender seu conceito de loucura.. Após várias perturbações emocionais, como dissidências com família, amigos e namoradas, Nietzsche acabou sendo internado em Basiléia, onde foi diagnosticada uma “paralisia progressiva” , que lentamente trouxe apatia e agonia ao pensador, que morreu em 1900 em Weimar. Sua crise final marcou o momento em que a “doença” saiu de sua obra e rompeu em sua vida, ou talvez fosse o contrário.

Na poesia de Nietzsche, Jung identificou mitos primitivos, que demonstram seu contato fluente com o inconsciente, promovendo à transcendência, permitindo um contato com algo maior que o eu consciente. Relata Jung (1973): “… estabelecer um relacionamento entre o eu e o inconsciente. Foi o que Nietzsche certamente quis dizer com seus versos: Por que te atraíste ao paraíso da velha serpente? Por que te insinuaste em ti – em ti? … Um enfermo agora, por veneno de serpente; um prisioneiro agora, da mais dura das sortes: trabalhando encurvado em tua própria mina, encovado em ti mesmo, cavando a ti mesmo, desajeitado rígido, um cadáver, soterrado por mil car

Copyright ©1976-2018 CPPC - Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos
Todo o conteúdo deste site é de uso exclusivo da CPPC.
Proibida reprodução ou utilização a qualquer título, sob as penas da lei.