UMA VIAGEM AO SI MESMO: O CHAMADO E A ESCUTA, por Carlos Hernandez
“vinde a mim todos os cansados”
1) O chamado pertence à ordem “do que vem”, não há como ter um sinal dele; o chamado sempre é um “presente”. É algo que sempre está vindo, e por sua vez sempre tem estado presente; portanto, o chamado transborda a escuta cronológica. O chamado supera o audível e se instaura como o mais real que podemos perceber. “Vinde…” – nós não apenas o escutamos, mas ele também penetra nossa corporalidade, recolocando nossos ossos nos lugares adequados; e para isso relaxa nossa musculatura, alivia nossa ansiedade, nos aquece a pele, aplaca nossa sede, perfuma nosso hálito, etc.
O chamado é uma das expressões da “multiforme graça”. É a visitação diária que nos convoca a uma tarefa particular do reino. É como a luz do amanhecer que desarma a escuridão da nossa noite. Sem chamado simplesemente não viveríamos. Somos criados para escutar ao chamado. Mesmo assim, crescemos sem nenhuma informação sobre essa “dependência essencial”. Nossa construções fantasiosas, seguindo o modelo de Babel, acabam em confusão. Nos desesperamos na ausência de uma resposta, ignorando que a única coisa que podemos fazer é desenvolver uma escuta de uma palavra criadora, que surge do nada, daquilo que é impossível de se imaginar.
2)Alguns elementos para configurar o lugar da escuta (o recebimento do presente):
O tempo e o lugar onde esperamos “o chamado” são decisivos. A escuta se configura em nossa capacidade de “receber” um presente. Assim como o florescer é algo que (normalmente) acontece durante o dia e o sereno acontece na noite; assim como não chegam aviões na estação rodoviária. Com muita frequência queremos escutar o chamado a partir de uma linguagem que excluiu o sagrado, o que é uma procura impossível. A voz de Deus provém do “desejo”, e portanto se dirige a um “desejo”. O lugar de onde se escuta a voz de Deus vem da expressão desse desejo “como o cervo brama pelas correntes de água”.
Deus amou ao mundo de tal maneira… “De tal maneira” indica a ruptura de uma linguagem convencional. Na linguagem socializada não há legitimação para dar um filho como prova de amor. Essa linguagem requer ser transformada. Para tanto, é no nosso mais íntimo que se configura a escuta, que essencialmente é disponibilidade. “De tal maneira” indica a intensificação absoluta do desejo, a entrega máxima, a dádiva maior. Cabe a nós nos perguntarmos de que modo recebemos um presente. A devoção em sua primeira fase tem a ver com nossa preparação para receber o presente.
Essa escuta — de uma palavra que vem a mim — se configura em oração e não na discussão racional. Esta minha capacidade de escuta tem de ter superado a adição sensorial do trabalho cotidiano, a poluição da mídia, a manipulação da magia da imagem. A escuta verdadeira, essencialmente, é um “salto de fé”. Logo, é desde a “fé” que podemos escutar a voz de Deus. Isso, portanto, supõe uma “transformação” de atitude que surja da interiorização de um valor novo: o sagrado como parte constituinte da existência. Ou mesmo a capacidade de nos esvaziar, de nos deixar ocos para sermos preenchidos pela graça.
É por isso que não é só a temporalidade que é distinta da cotidiana, mas também há uma ruptura dos espaços cotidianos. “Tire os sapatos” é uma ordem que indica a natureza sagrada do espaço a que nos achegamos na escuta. Logo, não é uma atividade iintelectual, tal como agregar um conhecimento, mas sim algo que afeta minha existência. É o impacto da realidade da criação de um “novo” tempo/espaço. Somente quando tomo consciência (i.e., me torno consciente) deste “acontecer” que minhas construções espaço-temporais se transformam. Dessa forma me disponho para que em minha vida “fique” algo do encontro. Todo esse movimento requer que o alerta de minha escuta esteja conectado com minha extrema “vulnerabilidade”, porque a palavra a que me disponho escutar é uma palavra de salvação. Quanto mais consciente eu for de minha fragilidade, mais apta será a terra que acolher a palavra semeada. É na minha própria morte que atua o poder da ressurreição. A única coisa de que dispomos é nosso anelo fervente e a confissão de nosso fracassos. Uma coisa tem a ver com a outra, quer dizer, quanto mais autêntica for nossa consciência de pecado, mais claro será o nosso desejo de salvação.
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Dr. Carlos Hernandez é psiquiatra na Argentina