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Saúde mental versus processo de desumanização – Por Gabriela Pedroso Mourão de Mello

A chegada de uma pandemia cheia de incertezas efetivamente mudou nosso jeito de viver e de nos relacionarmos uns com os outros, virando nossa vida de pernas para o ar. Uma situação atípica, que não imaginávamos passar no ano de 2020; fomos pegos de surpresa.

Pessoas em situação de vulnerabilidade social e econômica são as mais prejudicadas; muitos perderam seus empregos, perderam entes queridos ou amigos pela doença, enfrentando um dolorido luto. Infelizmente houve aumento no consumo de álcool, drogas, aumento de abusos físicos e sexuais e da violência doméstica. É um momento difícil, que tem mexido conosco, com a nossa saúde mental. Diríamos que é um momento de “quebra”, de interrupção de uma continuidade que vivíamos – um antes e um depois. De repente, tudo se tornou excessivamente remoto por conta das circunstâncias. Como pensarmos em saúde emocional? Seria algo simples a ser definido? Não. É um assunto complexo, abrangente; continuamente estudado no âmbito das Ciências e com diversas perspectivas semelhantes e diferentes.

Somos considerados seres biopsicossocial/espiritual e é de fundamental importância levarmos em consideração todos estes aspectos para não nos “amputarmos”, não deixarmos nenhum deles de lado. A saúde emocional é o equilíbrio entre vários aspectos de nossa vida: bem estar físico, emocional, espiritual e sexual. Alguns Cientistas vão além e consideram que saúde e doença são reveses da mesma moeda, como uma linha tênue, sendo difícil classificar o normal do patológico; não sendo tão simples. Penso que para falarmos de nós, precisamos nos enxergar além, dentro de um contexto sócioeconômico-cultural e espiritual e nos relacionarmos ao espírito da época em que vivemos.

Sutilmente vimos caminhando para um processo que chamo de desumanização. Desde que o mundo é mundo, nós humanos, enfrentamos inúmeros desafios para nos adaptarmos e construirmos nossa história; todas as épocas têm suas próprias características.

Lembrando que mesmo antes do início da pandemia, já vínhamos enfrentando um mundo com sérios problemas e crises: de ordem social, política, racial, econômica a qual se agravou sobremaneira neste momento no Brasil, impactando o emocional das pessoas. De acordo com o Professor e Historiador Israelense, Yuval Noah Harari, em seu livro, “21 lições para o século 21” estamos caminhando de forma sem precedentes e velozmente para um mundo cheio de mudanças, cada vez mais dominado pela biotecnologia, pela virtualidade e inteligência artificial de modo progressivo, onde somos cada vez mais controlados, monitorados e manipulados.

Na China já se tem o controle total dos indivíduos por meio do Estado, graças à alta tecnologia. Este Pesquisador trabalha com a possibilidade de num futuro próximo estarmos inseridos num regime de vigilância total, que será capaz de penetrar nossa pele e observar nossas experiências interiores, como ler pensamentos e emoções. Pontua que países como China, Rússia, EUA e até Israel estão constantemente aperfeiçoando suas ferramentas de vigilância.

A guerra hoje não é mais por território como antigamente mais por quem tem mais algoritmos, dados. A juventude contemporânea é chamada de “nativos digitais”, ou seja, já nasceram no contexto da tecnologia e usam-na de forma bastante espontânea e eficaz; uma das representações que a tecnologia teria para eles seria a busca por contato, o que é legítimo, algo de que realmente precisamos. Para Harari a tecnologia pode nos ajudar muito e é através dela que hoje temos a possibilidade de conexão imediata. “Se você, por exemplo, souber o que deseja na vida, ela pode te ajudar e muito a conseguir.

Mas se você não sabe, será muito fácil para a tecnologia te moldar, moldar seus objetivos e até mesmo assumir o controle de sua vida. Se ela for mal usada e exercer demasiado poder em sua vida, você pode acabar como um refém. Sabem zumbis que vagueiam pelas ruas com o rosto grudado em seus celulares? Você acha que eles estão controlando a tecnologia ou é a tecnologia que os está controlando?”, diz o Professor.

Um caminho de esperança apontado por este Professor seria: a democracia em seu formato atual não será capaz de sobreviver à fusão da biotecnologia com a tecnologia de informação. Ou a democracia se reinventa com sucesso numa forma radicalmente nova, ou os humanos acabarão vivendo em “ditaduras digitais”. E diz que a chave seria regulamentar a propriedade dos dados, uma vez que nosso ativo mais valioso é nossos dados pessoais, nossas informações pessoais e o Professor vai mais longe ainda, dizendo que o interesse não é hackear computadores e sim humanos.

Estas previsões não são certeiras, mas são sinais a caminho e um assunto a ser pensado por todos nós no que diz respeito: como podemos responder, lidar com estas questões relativas à corrida da tecnologia e o que que tudo isso tem a ver com nossa saúde mental? Quais são os impactos e desdobramentos sobre ela? Como podemos preservá-la? Como podemos nos proteger? Era neste ponto que queria chegar, quando me referi a estarmos vivendo um sutil processo de desumanização.

Sabemos que por razões multifatoriais e não apenas o mal uso viciante da tecnologia, casos como depressão e transtornos de ansiedade tem crescido; até mesmo por conta de outros comportamentos adictos como: álcool, drogas, compras, comida etc. Curiosamente, Pesquisadores observam que após o advento das redes sociais, houve aumento de depressão e ansiedade, indicativos para prestarmos atenção. Como disse, são diversos fatores em jogo para não sermos reducionistas.

De acordo com uma reportagem publicada na revista Exame em junho/2019, o Brasil é o país mais ansioso do mundo, segundo a OMS. São 18,6 milhões de brasileiros convivendo com o transtorno e sabemos novamente que há múltiplas causas. Estima-se que, apenas na cidade de São Paulo, 30% da população sofra de transtornos mentais, com prevalência para crises de ansiedade e depressão. Com o rápido crescimento dos grandes centros urbanos nas últimas décadas, já estávamos vivendo de certa forma num distanciamento social, convivendo bem menos uns com os outros.

Algumas particularidades deste mundo moderno competem também com nossa saúde psíquica: uma agenda intensa e apressada; enfrentamos um mercado de trabalho cada vez mais rigoroso e competitivo, com altas exigências de performance e desempenho. 3 Enfrentamos uma cultura cada vez mais voltada para um individualismo exacerbado em detrimento do coletivo, enaltecendo as aparências, a imagem e o corpo.

No universo da internet há infinitas possibilidades, tornando-se um local convidativo para um passeio sem “rumo”. Como lidarmos de forma mais sensata e saudável com a crescente realidade do avanço tecnológico que chegou para ficar? Precisaremos juntos construir ideias que nos favoreçam. Um dos caminhos seria valorizarmos o autoconhecimento, a saúde mental – tão negligenciada em nosso país; o autocuidado com nossa alma.

Cultivarmos uma vida espiritual concomitantemente a uma rica vida cultural – de sabedoria e ensino – de convivência familiar e em comunidade. Certamente, serão guias para esta batalha. Como pontuou o filósofo grego Tales de Mileto, conhecer-se a si mesmo não é uma tarefa fácil, porém, vital e recompensadora. Ouvir nosso voz interior, cultivarmos um diálogo interno contínuo que nos ajude a observar e compreender melhor o que se passa conosco: nossos sentimentos, sensações, pensamentos, sonhos, ideais, capacidades; pensarmos em nossos atos, nossas escolhas e como vivemos, leva-nos a uma melhor qualidade de vida. Donald Winnicott, Pediatra e Psicanalista inglês, nos ensina que o ser vem antes do fazer.

Se nos conhecermos melhor, saberemos o que queremos, o que combina conosco; poderemos escolher melhor nossas práticas, como por exemplo: o que combina com nossa vocação profissional, nosso hobbies, um futuro conjugue. Ninguém nasce pronto e sabendo tudo.

Cada nova geração precisa ser bem acolhida, protegida, cuidada e estimulada. Viver com sabedoria é algo a ser conquistado, por meio da boa vontade, da disponibilidade interna, da humildade e esforço, assim como nossa saúde emocional, a ser conquistada.

Nossa vida, especialmente de uma pessoa saudável, como nos ensina o Winnicott é atravessada por medos, angústias, sentimentos conflitivos, dúvidas, frustrações, medos mais intensos, como de doença, da morte, como também temos muitas experiências positivas, agradáveis, maravilhosas. Tudo isto é humano e o paradoxo atual, num mundo cercado de máquinas é cairmos no risco de irmos nos robotizando, nos petrificando, ficando mais insensíveis e frios, identificando-nos com a objetividade das máquinas e falta de subjetividade delas, ou seja, irmos nos engajando num processo sutil de desumanização sem termos clareza do que ocorre.

Podemos vir até a subestimar nossa humanidade, como negligenciar nossa capacidade de pensar, de sentir e de transformar. Sem contar o desserviço da quantidade de informações falsas que circulam na rede, porém, tão bem elaboradas com possuem um aspecto de verdade.

São questões a serem pensadas e conversadas com crianças, adolescentes e jovens adultos. Esta geração tão incentivada em ser melhores e a viverem num constante processo de comparação com o outro – mas paradoxalmente por que se sentem tão solitários em suas bolhas virtuais? Neste encolhimento vão atrofiando a habilidade social, levando-os a uma inibição na capacidade de se relacionarem uns com os outros, muitas vezes contribuindo com a dificuldade de tolerarem aquele pensa diferente deles. e de construírem uma vida de comunidade e parceria. 4 Levanto todas estas questões, uma vez que penso que é tempo para enxergarmos os benefícios como também os malefícios que a tecnologia pode nos oferecer.

Penso ser um desafio ajudar as novas gerações a encontrarem caminhos saudáveis de se relacionarem com a mesma e especialmente, a valorizarem e exercerem um outro tipo de contato com o próximo: mais pessoal, mais autêntico e genuíno. Harari nos alerta sobre a importância da busca pelo autoconhecimento e desenvolvimento de nossa espiritualidade para nos fortalecemos, termos recursos para enfrentar tanto o presente quanto este futuro mais desumanizado.

Ele diz que precisaremos de flexibilidade mental e reservas de equilíbrio emocional para nos adaptarmos às diferentes situações. Finalizo com a música interpretada pelos Titãs: faria apenas uma alteração nesta letra, ao invés de: é preciso saber viver, trocaria por: é preciso aprender a viver.

É Preciso Saber Viver Titãs

Quem espera que a vida

Seja feita de ilusão

Pode até ficar maluco

Ou morrer na solidão

É preciso ter cuidado

Pra mais tarde não sofrer

É preciso saber viver

Toda pedra do caminho

Você pode retirar

Numa flor que tem espinhos

Você pode se arranhar

Se o bem e o mal existem

Você pode escolher

É preciso saber viver

É preciso saber viver

É preciso saber viver

É preciso saber viver

Saber viver, ah, ah

Quem espera que a vida

Seja feita de ilusão

Pode até ficar maluco

Ou morrer na solidão

É preciso ter cuidado

Pra mais tarde não sofrer

É preciso saber viver

 

Gabriela Pedroso Mourão de Mello Psicóloga Clínica Formação em Psicanálise de Casal e Família pelo Instituto Sedes Sapientiae

Especialista em Psicoterapia Psicanalítica pela CEPSI/USP

Membro associado da ABPCF (Associação Brasileira de Psicanálise de Casal e Família)

Membro associado do CPPC (Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos)

Rua Jaceru, 384 cj.808 – Brooklin – SP gabipmmello@gmail.com

Instagram: @gabrielamouraopsicologia Setembro/2020

Referências Furini, Isabel Florinda (2005). Joana, a Coruja Filósofa. Florianópolis: Sophos, 2005. Harari, Yuval Noah (2018).  lições para o século 21. Trad. Paulo Geiger -1ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 92,93,94, 327,328,329. Winnicott, D.W (1986 (1967)).

O conceito de indivíduo saudável. In: Tudo começa em casas. Trad. Paulo Sandler. São Paulo, Martins Fontes, 1996, p.17-30. Verzoni, André & Lisboa, Carolina (2015).

Formas de subjetivação contemporâneas. Revista Subjetividades. Vol.15, nº 3.

Documentário Netflix: O Dilema das Redes (2020).

Reportagem Revista Exame, web. Ciência: O Brasil é o país mais ansioso do mundo, segundo a OMS. 05/06/2019.

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