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SAÚDE: CIÊNCIAS, SOCIEDADE E ANTROPOLOGIA BÍBLICA, por Ageu heringer Lisboa

Artigos e Notícias

Os humanos sempre se interrogaram sobre o porquê ou o sentido do sofrimento e da morte. As mais remotas respostas têm a ver com a intuição da vida como pertencendo a um vasto cosmos, pleno de sentido sagrado, povoado de deuses, demônios, espíritos relacionados com os terrenos. Tal é a lógica das sagas homéricas, o ensino dos mitos, o imaginário fantástico dos aborígenas australianos e indígenas latino-americanos, dosinuits do pólo norte. Este universo mágico-mítico é mostrado num belo filme, O Hábito Negro, que conta a convivência de uma tribo cristianizada interagindo com outra, com sua religião ancestral, no Canadá, início do século XVII. O aqui e agora permeado de significação atemporal, vivos e mortos em interação.

Falar do binômio saúde-enfermidade pressupõe um enfoque transdisciplinar. Toca em inúmeras questões que afetam a existência humana marcada pela finitude, historicidade, programação genética, em meio às vicissitudes da natureza física e social. Somos indivíduos únicos e sociais, seres que se orientam por símbolos, compartilhando um habitat com outros humanos, os animais e vegetais. Existimos combinando matéria biológica num meio ambiente geográfico, transcorrido no tempo-história, condicionados sócio-culturalmente, orientados consciente ou inconscientemente por uma cosmovisão. Não nos acostumamos com a morte. Ela nos desassossega. E segundo a Palavra bíblica, fomos feitos à imagem e semelhança de Deus, barro preenchido pelo espírito. que está de acordo com inerente e constitutivo desejo de continuidade o suspiro da trans-ascendência. Portanto, Saúde não pode ser entendida por um paradigma biologizante, pois o bios humano não existe à parte do cultural, do econômico, do campo simbólico espiritual.

Do lado da herança judaica e cristã, temos nas Escrituras narrativas e reflexões que nos fornecem insigths e diretivas sobre o lidar com a dinâmica saúde-enfermidade, considerando-a como experiência corpórea, subjetiva, relacional e sagrada. Nascidos como frutos de relacionamento, nosso destino está atrelado aos conviventes, especialmente e imediatamente aos contemporâneos. Assim como dependemos do ambiente e cultura herdados dos antepassados, somos responsáveis em deixar um saudável legado para as futuras gerações. Isto se traduz na convivência social por consciência ética, expressão de saúde política. Desenvolver potenciais de vida compartilhada é um dos significados de ethos, a possibilidade de superarmos a barbárie e desfrutarmos solidária e alegremente do mundo criado por Deus.

Compreensão cristã das demandas por saúde

A cultura científica, fruto do mandato cultural divino, cumpre os desígnios da soberana graça de Deus, revelando-nos a dinâmica da criação, que opera com uma fantástica lógica ordenadora. Com paciente planejamento, experiência, observação, e análise criteriosa de dados obtêm conhecimentos e contribui para a construção do habitat humano. Um marco inicial para profissionais cristãos é reconhecer o devido status das ciências como atividade sancionada pelas Escrituras e que não pode ser antagonizada em nome da fé. É o que nos ensinam Paul Tournier, Harold Ellens (1986) e José Carlos Hernández (1986). Estes autores ensinam que uma atitude saudável reconhece e mobiliza os potenciais curativos do enfermo ou do incapacitado, não fica apenas centrado no saber e na técnica científica nem cai no reducionismo religioso. Uma tentação das visões religiosas exclusivistas é justamente o associar automaticamente doença a pecado ou a um mau relacionamento com uma divindade ou espírito ou efeito de determinismo kármico. Mas indubitavelmente podemos deduzir, das Escrituras, que a partir da Queda, toda a ordem da criação ficou danificada e estamos marcados pela desordem do pecado e suas seqüelas: distúrbios psicológicos e relacionais, disfunções físicas, degradação ambiental (Rm.8).

Tememos a putrefação e suspiramos pela sobrevivência. Isto dinamiza o interior das culturas na busca da saúde e apaziguamento dos espíritos, além de impulsionar a descoberta dos remédios. Assim os rituais de cura, os exorcismos, os lamentos fúnebres, as celebrações de júbilo pelas curas marcam todas as culturas. Do ponto de vista da direção espiritual e da psicoterapia pode-se entender e assumir o enfermar como oportunidade para a transformação interior da pessoa, com quebra de armaduras alienadoras, revisão de estilo de vida e abertura para a salvação. Nesta perspectiva o mal pode ser transformado num bem.

Uma compreensão cristã das demandas por saúde pode partir do arquétipo do curador ferido, tema caro a Jung, que medita no mito de Esculápio-Asclépio, da mitologia grega. A apresentação do Servo Sofredor em Isaías 53, texto anterior ao da mitologia, nos apresenta justamente a esperança da vida plena trazida pela Graça daquÊle que atraiu sobre si nossas enfermidades, sofrimentos, pecados, mortalidade. Neste processo identificatório e vicariante com os humanos, o servo de Deus derramou sua vida para a geração da eternidade de novos homens e mulheres. Temos um Deus que não veio explicar o sofrimento e a morte, nem o utiliza como instrumento de sua vingança, mas que veio atravessar conosco o Vale da Sombra e da Morte (Sl.23).

Jesus conviveu em meio a uma sociedade de muitos modos semelhante a nossa. O comum era os enfermos de doenças malditas serem banidos da vida social e religiosa. Como se comportou Jesus, então? Fez-se-lhes de Próximo. Revirou os conceitos de impureza e pecado utilizados contra as pessoas. Virou de cabeça-prá-baixo as concepções religiosas vigentes[1]. Jesus, numa expressão psico-sócio-dramática, democratizou o acesso a Deus, que, de entidade abstrata e ameaçadora, se transformou no Deus encarnado, cheio de Graça e Verdade que caminha e vive conosco, o Emanuel! Não agiu como alguém possuído por um complexo de salvador onipotente. Apontou-nos caminhos para que compreendamos a origem multicausal do enfermar e para o desenvolvimento de atitudes centradas no paciente, no necessitado, na sua família, afirmando-os como sujeitos da graça de Deus. Suas ações são signos que apontam caminhos a serem seguidos. Por isto, o cuidar de enfermos é uma tarefa primordial da vida do discípulo de Cristo e “curar também é tarefa da Igreja” (Zandrino,1986).

Bibliografia

HERNÁNDEZ, Carlos José, O lugar do sagrado na terapia. São Paulo: Ed. Nascente, CPPC, 1986

ZANDRINO, Ricardo, Curar também é tarefa da igreja. São Paulo, Temática Editora, 1986

Ageu Heringer Lisboa, psicólogo, mestre em ciências da religião, docente da Associação. Brasileira de Assessoramento e Terapia Familiar www.eirene.org.br Contato: E-mail:ageu_lisboa@bol.com.br – Fone 11-5579.5475

[1] Como sempre, toda “teologia” é uma construção humana, nobre, mas falha, uma tentativa de organizar significativa e logicamente as manifestações de Deus na história, de entender o universo espiritual.

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