secretaria@cppc.org.br 51 9-8191-0407

QUE TRANSFORMAÇÕES A PSICANÁLISE REQUER DA ÉTICA E DA EDUCAÇÃO MORAL, por Oskar Pfister

Artigos e Notícias

Quando a psicanálise iniciou sua jornada triunfal, todos os que estavam estreitamente associados a ela encheram-se de orgulho e contentamento. Uma hoste de inválidos que, não podendo ser ajudados pelos meios disponíveis à época, foram curados. Os resultados eram levados a efeito não apenas pela eliminação dos sintomas externos, mas através da dissolução dos conflitos internos, de tal maneira que o mal não fosse levado para as profundezas da personalidade. Novos campos de investigação se revelaram, um após outro. Pessoas imaginavam orgulhosamente que estivessem se defrontando com uma nova era e angariando grandes riquezas. A única pessoa que encarou o movimento sem entusiasmo precipitado, calmamente, de maneira rigorosamente objetiva, foi o grande pioneiro, Sigmund Freud. Logo se aprendeu que a nova aquisição fora compensada por dolorosas perdas. O ego da auto-consciência viu-se deslocado de sua posição impositiva. Fora compelido a reconhecer que o inconsciente estava com ele disputando desenvolvimento autônomo, e que muitas daquelas atitudes, ostensiva e livremente criadas no consciente, foram inspiradas pelo inconsciente. Mesmo que logo se tenha percebido que constituía um exagero falar-se das operações do consciente como um balé de marionetes controladas com fortes rédeas pelo inconsciente, mesmo assim, permanecia um sentimento quase insuportável de humilhação ainda mais inquietante do que aquele experimentado pelo ser humano nos dias de Copérnico. Mas a pior das humilhações mostrava-se reservada para o passado recente. Religião e ética, inestimáveis tesouros da humanidade, pareciam ter seu direito de existir expropriado pela psicanálise. Até então o imperativo moral era considerado como algo muito elevado e merecedor de profundo respeito, como uma revelação de Deus ou de um mundo ideal e inteligível. Freud encarregou-se de cortar essa antiga árvore que provinha de um mundo mais elevado, e traçou a origem da moral a partir de genitores mais obscuros e vulgares. Sexualidade, complexo de Édipo, identificação com um pai provavelmente muito dúbio, temores de castração, adaptação ao ambiente e outros impulsos baixos são o que dão forma às verdadeiras fontes da moralidade. Os bolcheviques não demonstraram menos consideração pelos títulos aristocráticos dos nobres russos do que demonstrou Freud pelo direito divino da moral filosófica ou religiosamente orientada. O conteúdo da moralidade foi criticado de forma semelhante. Freud considerava a moralidade predominante como sendo uma função cultural de valor duvidoso, e levantou a questão sobre se esta não produzia mais danos do que bem. A questão do significado e propósito da vida foi posta para o lado. Um pessimismo ansioso, exceto no campo da ciência, imperava sobre a vida. De outro lado, vozes apreensivas ou maliciosas se levantaram declarando que a psicanálise advogava a franca imoralidade. I Em oposição a isso, eu gostaria de me alistar entre as opiniões em favor de que a ciência fundada por Freud redundará em valoroso serviço à Ética, e que também servirá de grande auxílio no ensino da moral. Antes de adentrar diretamente na discussão, uma colocação preliminar se faz necessária. O próprio Freud não considera seu criticismo à moral e à religião como sendo a necessária conseqüência de seu método e estudo empírico. Ele sabe muito bem que, em sua dissertação sobre a natureza anti-religiosa, ao discorrer contra a predominância da moral, ele estaria adentrando no domínio da filosofia, campo a que ele havia se oposto previamente, e do qual se desviara ceticamente. É necessário que se reconheça, no entanto, que no que diz respeito aos padrões tradicionais da moral, Freud deve ser altamente estimado. Nele encontra-se um profundo senso de dever, zelo pelo estudo, fidelidade a suas crenças, entusiasmo pela verdade e bondade em um grau estupendo; e quem quer que tenha a satisfação de estar próximo a ele, reconhecerá que o fundador da psicanálise combate a moralidade tradicional unicamente em favor de uma moralidade superior. Em conexão a isso, faz-se necessário também relembrar que muitas pessoas depravadas têm sido moralmente transformadas através da psicanálise. Finalmente, faz-se necessário enfatizar infinitas vezes que os objetivos da teoria e terapia freudianas agora desprezadas, concordam em muitos pontos com a moral predominante, aprofundando seus propósitos e levando sua realização a efeito. Deveríamos nos relembrar da significância do conflito moral, de onde todas as psiconeuroses são originadas. Desde que Freud abandonou sua oposição às tendências da moral existentes no inconsciente, e desde que considerou a ansiedade como derivada do desacordo com a moral interna, a consciência surge pela primeira vez como um lugar de tremendo poder. Nunca um psicólogo tomou a consciência tão a sério! Em adição, vêm as demandas práticas da psicanálise. O ensino da sublimação e desejo pela melhora mostra-nos uma moral (a que previamente aprendemos a considerar como um sinistro juiz Vêmico) como um misericordioso samaritano que dedica cuidados e ergue o sofredor que por acaso tenha caído entre a “corja de neuroses ladras”. Como alvo do tratamento psicanalítico, temos diante de nós o retorno do indivíduo sofredor de repressão ao domínio da consciência, da razão, dos ideais; a destruição da mentira de sua vida; e a reintegração do amor no mais elevado sentido da palavra – todas essas normas em acordo com a ética dominante. O mencionado acima já nos demonstra o quão perverso é acusar a psicanálise de imoralidade. Ao contrário, o analista leva em consideração, passo a passo, as obrigações impostas pela natureza do indivíduo. Constantemente observamos que os homens desenvolvem neuroses quando agem contrariamente a sua orientação mais interior. No entanto, seria indesculpável se o analista deixasse a motivação moral sem consideração. Se, contudo, isso ocorresse – não investigarei agora se esse tem sido ou não o caso – estaria em contradição ao pensamento e espírito da psicanálise. A imoralidade do psicanalista seria uma imoralidade contra a psicanálise em sua compreensão mais fundamental. Pode apenas ser uma questão de substituição dos padrões melhores por padrões que sejam insuficientes e, portanto, eticamente reprováveis. Aqui consideramo-nos autorizados, mesmo obrigados pela profissão, a demonstrar as transformações na ética que necessitam ser efetivadas em nome da psicanálise. O código moral adentra nossa consciência em modo apodíctico. Ele requer submissão cega. Nesse sentido, observamos constantemente o quanto é injusto, cruel, estúpido, contraditório, incoerente – em suma, o quanto é imoral a conduta de tal código em incontáveis casos. E mesmo assim a maioria das pessoas não ousa examinar essa pretensiosa autoridade na totalidade de seu poder, e mandar esse arrogante juiz de volta a seu devido lugar. A análise faz isso, e deve fazê-lo. Exatamente como julgamos dúbias reivindicações legais através da investigação de sua gênese, assim a análise procede em casos individuais. Ela rastreia os motivos individuais precedentes, os determinantes conhecidos e desconhecidos do impulso moral, primeiramente no indivíduo, mas também na sociedade. Dessa forma ela naturalmente achará impulsos sexuais, complexo de Édipo, amor incestuoso, sentimentos de insegurança, ansiedade de castração, medo da opinião pública e outras questões que não gozam de reputação muito elevada. Mas isso certamente não significa que toda moralidade possa ser explicada por tais elementos. Uma comparação pode deixar isso claro. Uma preciosa orquídea certamente necessita, para seu desenvolvimento, de água e de um solo constituído parcialmente de material putrefato e sais. Ninguém duvida que esses ingredientes entrem na orquídea. Mas seria um absurdo querer explicar unicamente através disso as esplêndidas formas e cores da flor. Para o jardineiro é de suma importância conhecer que materiais químicos estão contidos na flor. A análise química pode em certas circunstâncias dizer-lhe por que houve malformações ou problemas de crescimento. Da mesma maneira a determinação das primeiras fontes não indica em nenhum caso a explanação da moral e sua ética correspondente. No entanto, muito da má-formação pode ser entendido através do conhecimento de fatores individuais que constituem a moral. Fica assim mais fácil definir nossa atitude em relação à moral, do que se nos deparássemos diante de um tremendo mistério, e – o que é tão importante para a educação moral – problemas no desenvolvimento moral podem então ser revertidos com muito mais facilidade. Mas a maneira como se define a atitude diante do conteúdo moral revelado pela análise, e em relação às teorias da ética cientificamente confeccionadas, não é em si mesma uma realização psicanalítica. Ao contrário, a psicanálise provê apenas o trabalho preparatório. E então, quando o analista ou o seu cliente tiver definido sua atitude diante da manifestação moral, o que sempre resulta de uma posição moral definida, isso, como toda avaliação moral subseqüente, torna-se o objeto da análise. Dessa forma o próprio juiz vai ser julgado, mas uma nova corte por sua vez assumirá o juízo sobre seu julgamento. Um processo analítico de purificação se inicia e a análise serve para trazer à tona avaliações morais e juízos éticos cada vez mais puros, e a habilidade de ter uma visão mais completa através de coisas menores. A avaliação e o juízo das coisas morais nunca é uma atividade analítica em si mesma, mas a psicanálise também auxilia na formação de demandas éticas. Freud pôs a higienização no primeiro plano. Eu, como ministro e como educador, parto em primeiro plano de outras considerações e, em conformidade com minha função, aparo as arestas das complicações morais e religiosas que provêm do inconsciente. Eu analisei tal qual fazem os médicos, mas com outros objetivos. A cura de doenças psiconeuróticas era para mim apenas incidental. Como freqüentemente tinha de lidar com indivíduos saudáveis que não necessitavam de um médico no sentido convencional do termo, não podia mais julgar suficientes as categorias médicas. O interesse ético tornou-se dominante. Aqui experimentei uma surpresa de conseqüências nada desprezíveis. A higienização e a ética tratavam-se mutuamente, a nível fundamental, de forma tão íntima que já não podíamos mais pensar numa sem pensar na outra. Muitas falhas de caráter cediam ao tratamento analítico primário, meramente higienizante; e certos defeitos morais apareciam como sintomas neuróticos tanto em indivíduos saudáveis como nos doentes. Podia-se e devia-se designá-los imediatamente como sintomas de uma repressão de caráter sexual. Mesmo assim era impossível não reconhecer que os médicos analíticos, sempre que possível lutavam por uma cura eticamente satisfatória e deploravam a falta de sublimação e de melhora moral por parte de seu cliente que os compelia a aceitar um resultado que era biologicamente – mas não eticamente – satisfatório. O médico analista consciencioso jamais recomendaria nessa situação uma libertação imoral da doença; na melhor das hipóteses ele a sofreria, pois sua tarefa não é igual à do educador de jovens e à do ministro. Percebi que a ética tinha de levar em consideração o interesse da saúde, para não resultar em danos severos. A ética mais antiga guiava-se pela razão pura, pela consciência e por outros princípios abstratos. Ela também se atinha a um ideal utilitarista que exigia a felicidade maior para a maioria das pessoas. Ou então ela lidava com o bem estar em geral, mas deixava de assumir o ponto de vista da higienização espiritual. Nesse meio tempo, que devemos nós pensar de um sistema de ética que faz alguns serem heróis mas lança outros na degeneração moral? E como pode um professor de ética permanecer indiferente à terrível miséria causada por sérias psiconeuroses? Já vi homens demais se reduzirem a pedaços como resultado de um tipo de moralidade asceta e puritana que os enfraquecia, impulsionando repressões e predeterminando fanaticamente os instintos, para permanecer indiferente a um sistema moral tão rigoroso, brutal e sem sentido, higienizantemente falando. Fez-se necessária uma mudança básica. A ética precisa levar em consideração a saúde mental e espiritual. Na verdade, eu tive de dar mais um passo adiante e perceber que a ética em si mesma é uma higienização do indivíduo e da sociedade. Entretanto, não caberia dizer aqui que a tarefa inteira da ética é realizada por esse desempenho higienizante. Assim como a ética necessariamente precisa tratar da higienização e proteger os interesses dessa última, também a higienização precisa estar em estreita relação com a ética. Isso precisa acontecer, porque o conceito de saúde, tal qual o conceito de vida, está sendo transformado à luz da psicanálise. A velha noção médica de vida constrói uma abstração baseada na vida somática. Aquilo que agora chamamos de psiconeurose ou psicose era considerado como nem sendo doença da mente. Na Idade Média as pessoas falavam de possessão e não de doença; para a neurologia e a psiquiatria materialista era uma doença dos nervos ou do cérebro. Pela primeira vez a psicanálise considerou todas as funções físicas como sendo fortemente biológicas, o que significa dizer que correspondem ao modo da vida. Isso ressalta que não é factível separar inteiramente a arte, a ciência e a religião dos processos de vida vegetativa; eles ainda servem, de forma ativa e intensiva à preservação da saúde no sentido médico. Uma vida corporal saudável sem moral é absolutamente impossível e inimaginável para a pessoa mediana (pelo menos até que a idéia de Freud da ciência que substituirá a religião, a arte e a moral existente se realize), especialmente quando levamos em consideração os requisitos sociais da vida. Não estou levando em conta a visão mais abrangente, de que a vida física está formando as raízes indispensáveis das funções psíquicas mais elevadas, e que somente os dois pontos de vista trabalhando juntos podem dar um relato melhor da vida integral e de sua participação no universo, sim, no absoluto. Aqui iremos enfatizar somente que a concepção naturalista de vida necessariamente se amplia para um pensar abrangente que não confunde a abstração com uma separação real. Portanto a higienização precisa incluir em sua esfera as funções mentais mais elevadas, acima de tudo a ética, que servirá para sustentar a vida concreta do homem. E dessa forma a ética se apresentará mais higienizante e a higienização se apresentará mais ética. O psicanalista deve lutar contra noções falsas, acidentais e por vezes tolas, inspiradas pelo super-ego. E mesmo quando ele de forma alguma pretender implantar sua própria crença moral no pupilo, ele deverá prestar atenção às associações e conseqüências. Uma ética ampla e de profunda penetração será para ele um auxiliar valioso. O próprio Freud considera natural que entre jovens que tenham sido analisados o super-ego seja substituído por objetivos de vida mais claros. Isso, porém, pressupõe a orientação ética do líder. Outro requisito que as experiências psicanalíticas colocam à ética relaciona-se com o uso de padrões gerais. A partir de várias investigações de indivíduos neuróticos vemos como é danoso elevar padrões éticos a regras gerais com precisão categórica, e esperar seu imediato cumprimento pelo indivíduo sem considerar sua situação presente. A regra que eleva uma pessoa para níveis mais elevados pode rebaixar outra no rigor moral e na saúde. Em todo lugar é aceito que a ética deveria erigir normas gerais, mas acima de tudo deve-se dar consideração à capacidade moral do indivíduo. O homem não existe para o bem da ética mas a ética existe para o bem do homem. É um sinal de brutalidade requerer que exigências éticas sejam cumpridas mesmo se o homem perecer como conseqüência. Nem todos podem viver como um santo; nenhum indivíduo é capaz de obedecer com perfeição aos mandamentos morais. O velho ditado médico “neminem laede” (não fira ninguém) certamente é importante para o professor de ética. E ele deve ser aplicado à moralidade social tanto quanto o é à moralidade individual. Disso extraímos a seguinte proposição: a ética deve levar em consideração a capacidade moral do indivíduo e do grupo,e naturalmente deve elevar ideais éticos gerais, mas não deve requerer seu cumprimento sem considerar a força moral existente. O vigor moral ideal deve ser a norma geral para todas as normas éticas. Sei que alguém pode mal-entender esta visão como levando a uma ética frouxa. Mas uma simples olhada nos incontáveis sacrifícios resultantes das exigentes normas da ética uniforme não me permitirá uma retratação de minha insistência em uma aplicação individual e variada dos princípios éticos. E isso eu exijo em nome do imperativo moral. O mandamento de Jesus “sede perfeitos” (Mateus 5.48) bem como toda a ética do sermão do monte, deve ser entendido não como ética mandada, mas como ética ideal; entendido de forma imperativa necessariamente deixará a pessoa em pedaços por causa de sua impraticabilidade de fato. Pois quem pode ser perfeito de acordo com os padrões de Jesus? Não devo aqui mudar para o assunto de como a ética deve-se fundamentar, com a ajuda da psicanálise. Dediquei-me a realizar essa tarefa em meu livro “Algumas aplicações da Psicanálise”2 por meio do método eto-genético. O que a psicanálise enfatiza especialmente é a consideração das tendências inconscientes. Daí depreendemos novas lições para a ética. Será melhor tratarmos desse assunto em conexão com a discussão de conceitos éticos individuais. Temos de nos limitar a poucos exemplos; primeiro, a concepção de bem e mal, virtude e vício. O analista não tem nada de especial a dizer quanto aos conteúdos dessas expressões abstratas, além dos princípios anteriormente indicados. Por outro lado, ele está interessado na questão de bem ou mal enquanto personalidade virtuosa ou depravada. A análise descobre que muitas vezes o outro lado de uma grande virtude que consegue realizações extraordinárias esconde um impulso maligno e inconsciente. O bem que tem sido alcançado é causado por uma reação ou fuga do demônio nas profundezas da alma. A ética precisa decidir se vai se contentar com essa bondade que existe no nível consciente, ou se também precisa demandar uma pureza ética do inconsciente. Seja a ética guiada unicamente pelo princípio do desejo ou pelo pensar abstrato, ela certamente deveria demandar que o inconsciente também seja purificado. Há muito para ser dito a favor deste argumento do ponto de vista da psicanálise. Sabemos que a virtude que se origina da repressão de impulsos condenáveis contém perigo dentro de si. Ocasionalmente a repressão perde controle e o até então asceta ou homem santo se afunda em grande lamaçal. Além disso, o zelo fanático que não é produzido espontaneamente, mas sim pelo medo do inconsciente anda de mãos dadas com o estreitamento de horizontes, que muito freqüentemente negligencia outros deveres ou passa por cima de direitos de outros; basta pensarmos nas terríveis guerras religiosas, na intolerância sacerdotal e na austeridade rigorosa e sadista de muitos indivíduos auto-justificados. Mesmo assim, o ideal de uma pureza de coração que atinja até a mais íntima profundidade da alma é uma ficção. Isso provém por um lado da consideração psicanalítica de que a situação que extermina os impulsos profundos do inconsciente pressupõe uma análise absoluta e totalmente realizada. Contudo ninguém tem qualquer dúvida de que uma análise assim é impossível. Mesmo a análise mais completa deixa de alcançar um grande número de desejos e representações reprimidas, pois a alma é um mar profundo e impenetrável. Do ponto de vista da ética pode-se afirmar que não foram os racionalistas e intelectualistas – a pura natureza pensante – que de antemão trouxeram à tona os maiores progressos no campo moral e conseqüentemente também no campo da ética racionalizante, mas sim a natureza intuitiva. O exame científico pode, como observei, criar uma estimulação valiosa e estabelecer requisitos, mas nenhum sistema de ética é criado dessa forma. A ciência, no sentido estrito do termo, jamais pode estabelecer normas e valores. Ela somente pode providenciar fatos, que facilitam a avaliação. A psicanálise só pode requerer que os impulsos que governam o inconsciente não piorem as melhores virtudes morais possíveis. Por conta disso ela não requererá produção criativa das repressões que originam efeitos de reação de alta moral, porque não sabemos de antemão o efeito da repressão. Não aprovamos arrancar fora os olhos da coruja para que ela cante mais belamente. E não manteremos intencionalmente o mal nas profundezas da alma para que uma virtude numa instância favorável brilhe com mais fulgor. Não despertaremos uma criança de seu sono à meia-noite e a deixaremos tocar piano, fazendo seu pai ser um dipsomaníaco e destruindo sua audição cedo na vida para que surja um Beethoven. A vida procura repressões; não necessitamos ser criativos para aumentá-las, tampouco o evitar de cada repressão precisa ser nosso ideal. Se deixarmos as crianças seguirem suas vidas completamente livres, para que nossas interdições não causem repressões, estaremos expondo-as a repressões muito piores quando a vida confirmar sua dureza. Crescer selvagemente é a pior proteção contra os perigos da repressão. Outra noção ética que os analistas devem jogar fora é a da consciência. Tanta coisa já foi dita sobre sua injustiça, insensatez e corruptibilidade, que o registro dos pecados não precisa ser revisto aqui em detalhes. Chamo a atenção, porém, ao fato de que a consciência reprimida desempenha um papel ainda pior do que o da consciência conhecida. E ainda assim seria uma inversão completa desejar tirar a consciência totalmente do nível de consciência. Seria tão falso e tão ruim quanto se tivéssemos de lançar fora toda a ética porque não concordamos com a ética dominante em muitos pontos. Seria certamente uma consciência refinada que requereria tal expulsão. Conseqüentemente, não resta alternativa senão purificar a consciência conhecida e freqüentemente também a desconhecida. Em cada transação psicanalítica que mereça esse nome é muito importante substituir a consciência mal orientada por uma com uma voz clara e nobre; e se o médico for tão pouco capaz quanto o ministro, no sentido estrito da palavra, para alcançar esse ideal em cada caso ele precisa chegar a um entendimento com ela. Eu me recusaria a fazer qualquer análise na qual pudesse antever que ela só levantaria as defesas patológicas da consciência e abriria o caminho para o imoral. Igualmente, se o analista deve tirar a consciência de sua concha, ele a agitaria; ela geralmente purificaria a si própria; em certos casos, porém, ela gradualmente se tornaria insensível. Se a consciência fosse unicamente produto da repressão, a análise sempre teria como conseqüência seu enfraquecimento, e o melhor a fazer seria nos consolarmos com a idéia de que sob as circunstâncias mais favoráveis os impulsos malignos também experimentariam uma insensibilização. Poderia-se também esperar que a transferência com um analista de um elevado padrão moral produziria uma certa dignidade moral após a consciência ser esmagada. Mas o analista inescrupulosamente iria manter seu pupilo na transferência, e eu rejeito um fundamento de conduta moral nesta questão, embasado na heteronomia e no desejo de liberdade, mesmo se ele viesse a trazer alguns poucos frutos bons. O próprio Freud fala a favor da separação (abstenção) completa do analista. O procedimento analítico deveria levar à purificação da consciência no sentido de autonomia e de clareza, justiça, humanidade e independência maiores; de outra forma, ele terá errado seu alvo, mesmo que sintomas patológicos tenham desaparecido. Não é permitido retirar a cura analítica da estrutura ética geral e estabelecer uma espécie de província médica fora da moral. Isso se aplica também ao sentimento de culpa, que representa apenas uma das formas de reação da consciência. Não necessito acrescentar nada a isso. A investigação psicanalítica busca purificar, não destruir. É um absurdo esperar a dessensibilização de todos os sentimentos pela análise. Sabemos hoje que só os sentimentos espúrios são por ela destruídos; os genuínos, pelo contrário, apenas ganham mais profundidade e mais força. Esse deve ser o resultado com todos os valores éticos, com amor, fidelidade, bondade, justiça e todo o resto. As virtudes-de-reação podem ofuscar os olhos; os maiores resultados morais podem advir das repressões mais severas; em geral, o tratamento analítico, desenvolvido para satisfazer às necessidades da vida, cria somente progresso moral quando é efetuado na consideração e no espírito de uma ética saudável. II (Estas posições apóiam a educação moral. O tempo nos permite apenas algumas ilustrações) Conforme mencionado acima, a psicanálise nos mostra que os limites da moralidade alcançável variam bastante conforme o indivíduo. Conseqüentemente, a tarefa da instrução moral não pode consistir em instilar a moralidade reconhecida em todos os pupilos, como teoria e como prática. Nem o objetivo da educação, nem os métodos de instrução podem ser os mesmos para todas as crianças. O ideal da educação deve ser apresentado de forma contagiante, de modo que todos os alunos possam conhecê-lo, mas realmente como um ideal, não como uma exigência uniforme. O nível otimizado em força moral é um objetivo mais recomendável para o ensino da moral do que o de um código moral obrigatório feito compulsório para todos os indivíduos. O arco da moralidade individual se quebra em pedaços se for esticado demais. Está claro que o objetivo do nível otimizado desperta uma conformação de comportamento de grande alcance. Pois a ética não requer mais do que aquilo que a natureza do indivíduo e da sociedade – verdadeira e profundamente compreendidos – requerem; e todos os homens são, afinal, homens, e têm, em grande medida, as mesmas necessidades, poderes curativos e possibilidades de desenvolvimento. Da mesma forma que a higiene estabelece padrões gerais para a nutrição, vestimenta e moradia sem especificações para cada indivíduo, assim também deve a ética estabelecer princípios gerais de comportamento. E este se relaciona com a educação moral. Um dos serviços mais valiosos que a psicanálise pode desempenhar para a educação moral consiste em preencher as grandes brechas que a pedagogia deixou abertas. Muitos dos fatores educacionais mais importantes eram desconhecidos para a pedagogia porque o inconsciente estava oculto, ou permanecia inatingível. Por essa razão, o resultado do trabalho educativo freqüentemente era insuficiente. Os homens continuam atendo-se firmemente demais a livros-texto de arte e de ciência da educação. Uma tradição largamente difundida na Europa reza que os filhos do professor e do ministro raramente, ou mesmo nunca, sairão bem criados. Com certeza a malícia aqui foi grandemente exagerada, mas permanece o fato de que muitas vezes professores e clérigos excelentes não são capazes de educarem apropriadamente seus próprios filhos, por mais que eles possam tentar fazê-lo. A psicanálise descobriu várias razões por que isso é assim. Ela apresentou uma série de preceitos que não haviam sido observados anteriormente. Poderia aqui referir-me à terceira edição dos meus livros “Die psychoanalytische Methode” (O Método Psicanalítico) (Leipzig, J. Klinkhardt) e “Love in Children and its Aberrations” (Amor em Crianças, e suas aberrações) ( George Allen and Unwin, London). Sem o conhecimento do Complexo de Édipo, da angústia da castração e especialmente das repressões que produzem doença, seria impossível descobrir os sinais de perigo. Freud prestou à pedagogia serviços similares àqueles que Louis Pasteur presenteou à medicina e biologia. A psicanálise reconheceu o amor como o instrumento de educação moral de maior peso. Ela mostrou porque a educação moral imperativa, que ficou evidente pela filosofia rigorosa de Kant, tão freqüentemente resulta em conseqüências tão más. Ela percebeu que essa educação fria e estrita necessariamente cria repressões, que ferem mesmo quando o resultado do ensino se mostra favorável, coisa que todos sabem não ser o caso com muitos alunos. Os ideais de Kant talvez sejam muito bem adaptados para a educação de oficiais do serviço civil e do serviço militar, mas um sistema tão inflexível não é suficiente para a educação de personalidades livres, irrestritas e criativas. A análise dá louvores a Pestalozzi, não a Kant; ao Novo Testamento com sua força de salvação e de difusão do mais alto amor, e não ao Velho Testamento com seus ameaçadores “não matarás, etc.”. Em primeiro lugar a instrução moral precisa treinar em amor, pois quando o amor é ferido, então todas as possíveis psiconeuroses, defeitos de caráter, aberrações de inteligência, etc, aparecem. Por isso a pedagogia psicanalítica fundada por mim desvia-se corajosamente da instrução moral seca com suas abstrações e regras de vida. “Só o amor pode levar ao amor”. Esta sentença, retirada de um velho hino de igreja, contém uma verdade significativa, que entretanto só pode ser avaliada por meio de um conhecimento amplo do inconsciente. A psicanálise penetrou a psicologia da liderança. Contudo o que ainda falta é a compreensão da liberdade do líder. Freud demonstrou a importância dessa liberdade para a análise, e ele certamente o está fazendo também para a educação. Mas parece que alguns de seus discípulos vêem somente as vantagens da transferência mas não seus perigos, que consistem acima de tudo em dependência de outros, crenças acríticas e mais tarde autoritarismo. Como na análise, também na educação deve ganhar vez uma atitude amigável, pela qual a liberdade pessoal não seja enfraquecida. Uma lei básica da instrução, pela qual tenho lutado por muitos anos, tem sido dada à educação e ao ministério pela psicanálise. É o princípio da compensação. Vou descrevê-lo nos seguintes termos: Se um jovem deve ser libertado de um comportamento imoral, uma compensação sem objeções e com mais satisfação deve ser procurada para oferecer-lhe em troca. Sabemos pela análise de indivíduos doentes que uma doença só pode ser finalmente curada quando é feita uma substituição de um prazer que não desperte outra doença. O mesmo tem valor na luta contra o vício; um meio de satisfação sem objeções morais deve ser encontrado para o ofensor, doutra forma a cura não persistirá, ou então ensejará uma queda em outro vício talvez ainda pior. Mas a educação normal também precisa levar em consideração que o confinamento dos impulsos, sem uma apresentação simultânea de valores melhores, leva a efeito uma leve repressão, e que negativas vigorosas trazem ressentimento, masoquismo, neuroses e outros distúrbios em alunos individuais. Boa parte da miséria seria evitada se o educador pudesse conhecer e aplicar esse princípio da compensação. Por fim, menciono os serviços pelos quais foi inaugurada em 1908 a pedagogia psicanalítica. Isso se refere ao tratamento de crianças doentes mentais. O que discutimos anteriormente é higienização. A instrução moral, conforme descrevemos, é higienização social e mental. Agora indicaremos a ajuda moral, que será oferecida pela psicanálise ao aluno em sofrimento. O olhar aguçado analiticamente logo reconhece discretos sintomas de processos morais e imorais, que são criados pela repressão. Futilidades que antes passavam desapercebidas, tais como borrões de tintas ocasionais, falhas de memória ou de pensamento, azares aparentemente acidentais, cadeias de pensamento estranhas, expressões peculiares de sentimento e de vontade, etc, freqüentemente delatam segredos difíceis, necessidades internas, perigos, em conexão com os quais a criança não sabe como ajudar a si própria. Pode-se também prestar incontáveis serviços para indivíduos completamente saudáveis, freqüentemente com pouco esforço, conforme tenho demonstrado nos livros citados acima. O conhecimento desses sintomas precoces vem a ser de extrema importância no caso de uma conseqüência que ameace a moralidade estar a caminho. Falta de sono, sonambulismo, aversão por certas comidas saudáveis e em contrariedade ao interesse da saúde, cerimônias de partida, expressões de sentimento estranhas, etc, muito freqüentemente requerem uma investigação ampla com urgência. Tal qual um ponto bem pequeno no verso do olho pode delatar o princípio de um sarcoma ao oftalmologista, assim um analista pedagógico experiente pode, em certas circunstâncias, reconhecer sintomas premonitórios muito importantes em coisas pequenas, às quais ninguém antes tinha considerado serem importantes, e que pedem atenção urgente. Uma paixão por uma análise que não seja necessária consideramos como uma doença de uma criança que é rapidamente curada pela experiência. Várias vezes a modificação de influências educacionais desfavoráveis é o bastante para reparar o dano. Freqüentemente é necessária a separação dos pais ou treinamento dos pais; em casos difíceis, porém, é necessário dar ao aluno tratamento analítico, de forma que seu desenvolvimento moral possa ocorrer seguindo linhas retas. Quando utilizar um método ou outro só pode ser determinado por longa experiência. Quase nem seria necessário enfatizar que o professor somente pode empreender análise profunda após uma educação analítica ampla. Análises fáceis e superficiais de eventos cotidianos são praticamente inofensivas. Todo professor vocacionado deveria ser capaz de cumprir tarefas simples do tipo do Bom Samaritano, tais quais a que todo professor tem de desempenhar ocasionalmente no caso de pequenos ferimentos em seus alunos. Os resultados em relação à educação ética de orientação e tratamento por meios psicanalíticos são muito gratificantes. Como o primeiro que fez esse trabalho, e com vinte e dois anos de experiência, posso afirmar isso com plena convicção. Com certeza o tratamento de pessoas saudáveis que sofrem dos efeitos da repressão é mais difícil que o de pessoas doentes, pois falta muito da compreensão da necessidade de correção, e do desejo por libertação. Nem todos os alunos saudáveis que necessitam de análise são capazes de serem analisados. A análise não pode ocorrer com os deficientes-de-inteligência, os masoquistas e os com defeitos morais de constituição. Na melhor das hipóteses, nesses casos pode ocorrer profilaxia, e reconhecer a existência de influências falsas. Mas resta um grande exército de alunos saudáveis e doentes para cujo desenvolvimento moral a pedagogia profunda pode prestar assistência esplêndida. Olhando para trás e resumindo repito a convicção de que a psicanálise é convocada a prestar um serviço grande e indispensável à ética e à educação moral. Tradições falsas e perigosas precisam ser eliminadas em ambos os lados, mas unicamente no interesse de uma ética mais elevada e de uma educação moral melhor. A natureza precisa ser deixada existir, mas não no sentido de um naturalismo, que avalia mal as virtudes ideais. O naturalismo sem idealismo é anti-naturalismo, porque o progresso rumo ao ideal pertence à natureza do espírito, à natureza completa do homem. A psicanálise, porém, não deseja manejar a marreta apenas para esmagar velhos ídolos; ela deseja acima de tudo manejar a colher-de-pedreiro e ajudar a humanidade a construir uma casa. A psicanálise não pode fazer isso sozinha. Nem a ética completa ou a educação moral adequada pode ser obtida dela. Mas ela é capaz de dar uma contribuição fantástica a esse trabalho. Sem a ajuda da psicanálise, dirigida profundamente ao inconsciente, seria ingênuo tentar conseguir uma síntese mais elevada com valores morais mais nobres e satisfatórios. O resultado até hoje nos permite uma esperança confiante de que, com a cooperação da psicologia mais fundamental, amanhecerá um novo dia para a ética e a educação. * palestra lida no Primeiro Congresso Internacional sobre Higiene Mental, Washington D.C., 8 de maio de 1930.

Copyright ©1976-2018 CPPC - Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos
Todo o conteúdo deste site é de uso exclusivo da CPPC.
Proibida reprodução ou utilização a qualquer título, sob as penas da lei.