QUARESMEIRA, por Alex Rocha
Quem passa pelo sul das Gerais sabe que igreja tem que ter sino.
Não sei porquê, mas só as igrejas católicas têm sino na torre.
Apesar de criado na tradição protestante, sempre fui simpatizante da igreja católica no quesito sino.
E o sino não é tocado ao acaso, mas tem um jeito certo de ser tocado
( como uma mulher ! ).
Cada tipo de toque tem um significado.
O toque de sino mais triste é o “repicado”. Pra fazer isso, o sacristão ou o coroinha puxa a corda tão forte que o sino dobra, quer dizer, dá uma volta sobre si mesmo (saiba que os sinos não são fixos, mas têm um eixo pelo qual podem girar). Triste, melancólico, quase transcendente.
Há um toque específico para quando morre um homem e um outro para anunciar o falecimento de uma mulher. Criança é outra coisa ainda.
Isso era toda a comunicação antes do telefone ou da rádio-difusão, e se ouvia pela cidade toda, que não era tão grande assim.
Faço-me pensar que em Goiás os sinos fossem tão importantes quanto, mas com algumas diferenças na execução, pois Cora Coralina assim descreveu:
“Os sinos das igrejas, tocadas, dobrando a lamentação de finados. Pela intenção do morto, cada amigo mandava dar um sinal nas igrejas, quanto quisesse. Ainda que os sinos tocam como a gente quer, alegres ou soturnos.
Os sineiros sempre tiveram esmero especial para anjinho ou defunto. Essas palavras, em Goiás, delimitavam as circustâncias da idade, sem mais explicações. Anjinho era criança mesma ou moça virgem e, defunto, gente pecadora”.
Mas o que me incomoda mesmo é que só as igrejas católicas romanas é que tinham sino. As igrejas protestantes não tinham , apesar de terem a mesma idade da “matriz”. Gostaria de ouvir a justificativa de um arquite-teólogo protestante.
Na adolescência, em minha tradição protestante mas de curiosidade ecumênica, observava o que se assemalhavam a Presbiteriana e a Matriz Católica.
Minha grande questão era: no que se parecem católicos e protestantes. Não o que os diferencia, mas no que se parecem ?
A liturgia e a sinologia com certeza não o eram.
Certa feita descobri, mas tive vergonha de contar a alguém. Hoje conto: o fato é que na frente de toda igreja tinha uma árvore (ou, um pé de árve ), a Quaresmeira.
Fosse ela igreja protestante ou católica, a árvore tava lá – ecumênica, triste, melancólica e bela. Florescida em grande parte do ano, mas em especial na Páscoa.
Pra quem nunca viu, a Quaresmeira tem muitas flores, e roxas. No chão fica aquele tapete roxo, bonito e triste.
Quando tem procissão o povo enfeita o andor do santo com elas. Como floresce na quaresma, geralmente enfeitam as festas da páscoa, triste, bonita.
Minha sogra, Dona Lola, “decoradora de mesas de santa ceia” me explicou que liturgicamente o roxo é a cor da Paixão de Cristo.
Dona Lola também outro dia me deu uma plantinha linda, de cor roxa, que jurava ter o nome de Viola (outros disseram ser Mini-Amor-Perfeito ), disse ser parente da Violeta (lembrando que a cor “violeta”é nada mais que quase roxo).
Tem até um pássaro que leva o nome de roxo .Que não tem a referida cor na plumagem, mas tem tristeza no canto. Seu canto é roxo. Rouxinol.
Diz o Milton Nascimento que é pássaro salvador.
Como a cor da Paixão de Cristo, as antigas mortalhas também eram roxas.
Curioso é que a palavra paixão também quer dizer triste. Etmologicamente é “pathos”, sofrimento, patologia.
Paixão é patologia! Doença da cabeça, da razão, das idéias. Sobreposição da emoção à lógica racional.
Não se admire ao conversar com alguém mais velho lá nas Gerais e ouvir ele dizendo que “paixonou”. É comum usar esse vocábulo (ou pelo menos antigamente) como sinônimo de tristeza.
Diz a viúva: “óia procê vê, quando meu marido morreu, eu paixonei”.
Se na liturgia cristã o roxo é a cor da paixão, da tristeza, a Quaresmeira é a árvore símbolo da paixão, da tristeza.
Talvez fosse num galho de Quaresmeira que pousava o sabiá de Angelino de Oliveira”:
“eu sou como um sabiá
quando canta é só tristeza
desde o galho em que ele está
nessa viola eu canto e gemo de verdade
cada toada representa uma saudade”
O roxo é a mistura do vermelho com o azul. Nem fogo nem água, nem terra nem céu. Linha do meio, sobriedade.
Portanto, a Quaresmeira é símbolo de tristeza, beleza e sobriedade.
A tristeza não tem a pretenção de ser otimista, é mais realista. Não usa o mecanismo de expressão maníaca frente ao problema (já viram alguém muito nervoso que dá risada e faz piada, ri pra não chorar ?!). Diz o escritor dos Eclesiastes que “o coração dos tolos está na casa da alegria”.
Nas Escrituras todos se lembram que “a alegria formoseia o rosto” (provérbios eu acho), mas não meditam no: “Com a tristeza do rosto se faz melhor o coração” (Eclesiastes VII,3).
Parece que o ser-humano não se dá o direito de se sentir triste. Não é isso que ouvimos ? “engole esse choro!”, “homem não chora !”, “foi melhor assim, Deus sabe o que faz !”, “bola pra frente !”, “não chora não !”, “sorria!”. E então caímos na hipocrisia, na falta de sinceridade de sentirmos nossas próprias emoções.
É o pensamento ocidental-capitalista onde ficar triste é perder, é ser inferior.
Contam que Buda atingiu a iluminação do Nirvana sentado debaixo de uma árvore. Arrisco dizer que foi em Minas, à sombra de uma Quaresmeira. Na tristeza que a faz melhor o coração
E a madeira da cruz de Cristo também não poderia ter sido a mais triste das Quaresmeiras?!
No exílio, os hebreus penduravam suas harpas nos galhos do salgueiro e lamentavam: “ Como poderemos cantar ao Senhor estando nós numa terra estranha ? ” . Minha imaginação de brasileiro cria a cena de um português pendurando sua viola, um africano pendurando seu atabaque e um índio sua flauta nos galhos da Quaresmeira. Os três também perderam suas terras, estavam tristes.
Só alguém doente pode fazer apologia à tristeza.
Doença catalogada como Depressão, Distimia ou na nosografia mineira: Borocoxô. Patologia da química cerebral.
Assim como só alguém doente pode desprezar o sentimento de tristeza.
Ignorar a tristeza é estar doente.
Alienação, ansiedade-maníaca, defesa de negação, esquizofrenia hebefrênica dentre outras. Na nosografia mineira: bôbo alegre.
Sábio é receber a tristeza, permitir-se ficar triste, mas junto buscar compreender o que o deixa assim.
Elaborar a tristeza é diferente de negá-la (alienando-se).
Sentir-se roxo, sentir-se triste não é deixar de ser feliz.
Antônimo de felicidade não é tristeza.
Tanto é que felicidade não é sinônimo de alegria (ou prazer).
No consultório psicológico é fácil a distinção que uma pessoa pode ter muitos momentos alegres, de prazer, e não ser feliz. Qualquer um pode encher a cara e ficar alegre… mas não feliz.
Difícil conceber “felicidade”.
Difícil dizer quando o azul começa a deixar de ser azul para se tornar roxo, e quando o vermelho começa a deixar de ser vermelho para se tornar violeta…
O psiquiatra Viktor Frankl defendia que um homem é feliz quando sua vida tem um sentido. Mas Frankl fala num sentido real e profundo, não uma defesa maníaca que visa não encarar a ansiedade.
É nessa busca de felicidade que o ser humano reconhece a possibilidade de superar a mesquinhez cotidiana (o imanente ) e passando a ver o mundo numa dimensão superior (que não quer dizer orgulho, mas transcendência) . Frankl deu a essa dimensão o nome técnico de Noética.
Nesse percurso para a felicidade (que também pode ser encarada como um conceito utópico a ser perseguido durante a vida, um norte) é fundamental desenvolver o contato com a tristeza, refletindo sobre o que ela diz.
É impossível passar com sinceridade de uma tristeza a uma alegria sem uma profunda reflexão sobre o motivo do estar-se triste.
Por isso talvez a Quaresmeira vem para lembrar que triste não é necessariamente feio, mas o triste pode ornar com o belo sim.
E que a quaresma tem um tempo determinado, não dura o ano inteiro…
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Alex Rocha é psicólogo, violeiro e membro do CPPC
em São Paulo