PSIQUIATRIA E RELIGIÃO NO ATENDIMENTO AOS DEPENDENTES QUÍMICOS, por Frederico Vasconcelos
Ao longo do tempo, sempre existiu uma forte correlação entre dependência química e religião. Já nos trabalhos de Tomas Trotter, existia uma preocupação em responder aos cléricos e moralistas que consideravam os bebedores contumazes como pessoas com problemas morais graves e vítimas da sua própria fraqueza, manifestada pelo beber descontrolado. Ele falou a propósito deste assunto que “os ministros despejaram seus anátemas do púlpito e os moralistas, não menos severos, discursaram contra ela como um vício que degrada a nossa natureza. Suas intenções eram boas… Mas a influência física do costume confirmada no hábito, combinada com as ações de nosso sistema senso-perceptivo e agindo sobre nossa parte mental, foi inteiramente esquecida”(Essay on Drunknness – Trotter – 1804).
A correlação, portanto, já existente entre os dois campos do conhecimento foi se acentuando através dos tempos. Segundo Edwards, no final do século XVIII e início do século XIX, a idéia de que a embriaguez poderia ser uma doença e não um pecado havia se tornado comum entre os médicos mais importantes.
Apesar disto, foram muitas as iniciativas de grupos religiosos para dar conta deste problema. A propósito, o primeiro movimento de ajuda mútua em 1840 surgiu no contexto de um movimento denominado Movimento Americano pela Temperança, que teve sua origem nas Igrejas e que se espalhou por todo os EUA, e foi denominado “Os Washingtonianos”. Começou com uma declaração de seis bêbados contumazes que, após assistirem uma preleção do Movimento pela Temperança, resolveram fundar o movimento com a seguinte declaração “Nós, cujos nomes estão anexados, desejosos de formar uma sociedade para nosso mútuo benefício e de evitar uma prática perniciosa que é prejudicial para a nossa saúde, posição e famílias, nos comprometemos, como cavalheiros, a não beber mais qualquer bebida destilada ou cerveja, vinho ou cidra”.
É bem conhecido o trabalho desenvolvido em várias partes do mundo pelo Exército da Salvação que tem, entre os seus atendidos, uma grande população de bebedores de rua. Mais recentemente, principalmente nas quatro últimas décadas, surgiram as comunidades terapêuticas de orientação religiosa, entre as quais se destacaram a Synanon e o movimento de ajuda que acabou criando um método de tratamento denominado “Day Top”. Todas estas abordagens partem de uma leitura moral, considerando o Dependente Químico mais como uma pessoa decaída, necessitando de ajuda contanto que esteja disposta a reconhecer sua condição e abraçar uma nova forma de viver, tendo como base a experiência cristã ou outra orientação espiritual.
Por outro lado, no campo psiquiátrico ou no campo médico de maneira geral, houve uma tendência de se criarem iniciativas visando tratar mais as conseqüências desta doença do que propriamente a doença em si. É sabido de todos nós o valor dispensado numa boa anamnese aos hábitos de vida, incluindo o uso e a quantidade de derivados etílicos, devido a sua correlação com vários agravos à saúde; são poucos, entretanto, os encaminhamentos de pessoas, sabidamente grandes abusadores de álcool, aos serviços de atenção especializados. Na atenção psiquiátrica são bem conhecidas as condutas para tratar o Delirium tremens, Alucinoses alcoólicas e a Paranóia alcoólica. Também são conhecidos os procedimentos para Psicoses sintomáticas decorrentes das intoxicações por substâncias psicoativas. Contudo muito pouco se tem feito em relação à abordagem e tratamento da causa principal destas condições, que é a Síndrome de Dependência.
Abordagem religiosa –
limites e possibilidades
É inegável o valor das abordagens religiosas para pessoas com problemas devido ao uso/abuso de álcool e outras drogas. No Brasil existem atualmente cerca de quatrocentas Comunidades Terapêuticas, considerando apenas aquelas inscritas nas duas federações existentes (FEBRACT – Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas e FETEB – Federação de Comunidades Terapêuticas Evangélicas). Ambas possuem um Código de Ética que determina princípios básicos a serem seguidos pelos seus filiados. A FETEB, por exemplo, postula em seu Código de Ética, entre outros itens, o seguinte:
PRINCÍPIOS GERAIS
Respeito à dignidade das pessoas
• Decisão voluntária de participação no programa, após conhecimento das normas adotadas.
• Garantia de um ambiente livre de drogas, sexo e violência.
Propõe ainda:
• Proposta coerente de recuperação, na qual constem
• Critérios de admissão,
• Programa de recuperação dividido em fases,
• Critérios para receber alta do programa,
• Procedimentos para reinserção do indivíduo na sociedade.
Além disso, há ainda:
• Programa de capacitação e treinamento para seu pessoal, com encaminhamento a cursos específicos na área, realizados por instituições e outros órgãos competentes.
Pode-se avaliar o benefício proporcionado por esta visão, bem como pelos aspectos peculiares da doutrina cristã, que, na sua essência, iguala todos os seres humanos na condição de igualmente pecadores e necessitados da graça salvadora de Deus nas suas vidas. O nível de aceitação e acolhimento de todas as pessoas proporciona que pessoas completamente abandonadas por sua família e pela sociedade, desacreditadas, humilhadas e feridas devido a sua condição, encontrem apoio e amparo e, sobretudo, encontrem quem acredite que eles podem ser diferentes pela simples crença de que cada ser humano traz em si a “Imago Dei” (Imagem de Deus) e portanto serão passíveis de mudanças, bastando para isto que estejam num ambiente onde serão valorizados e acolhidos.
Por outro lado, as limitações têm ocorrido principalmente pela dificuldade de reconhecer diferenças na população atendida, tais como características de personalidade, condições pré-mórbidas e co-mórbidas, bem como a utilização de recursos adequados para dar conta da grande diversidade de causas e conseqüências decorrentes desta condição.
Também costumam ocorrer iniciativas messiânicas e simplistas de grupos que bem ou mal intencionados (no segundo caso cobrando pelo atendimento, sem fornecer nenhum recurso técnico específico), na base do “orai e capinai e sereis salvos do vício!”, desenvolvem trabalhos absolutamente desprovidos de qualquer referencial, apenas com a visão de que “Jesus resolverá todos os problemas” e reduzindo o problema a uma ótica extremamente simplista de “questão espiritual”, negando os componentes físicos, psicológicos e sociais presentes.
Talvez valha aqui ressaltar, entretanto, que, hoje mesmo, muitas pessoas poderão estar entrando em Igrejas – pela primeira vez em alguns casos – e tendo uma experiência espiritual verdadeira e transformadora, sem que se precise fazer qualquer trabalho específico para isto. Muitos têm deixado a bebida, o cigarro e as drogas e se tornado membros comungantes de Igrejas e bons cidadãos. Não deveria existir nada contra este tipo de solução, pelo contrário! Mas, o fato é que este não será o caminho escolhido para uma grande parte das pessoas com este tipo de problema. Para estes, que não terão este tipo de experiência, é que necessitam ser disponibilizados a atenção e os recursos especializados.
Limites e possibilidades da
abordagem médico-psiquiátrica.
Como referido na introdução, ao contrário do que muitos pensam, o conceito de doença já estava estabelecido na literatura médica desde o final do século XVIII. Entretanto, por vários motivos, o saber médico se distanciou bastante da ajuda efetiva a esta condição. A maior prova disto é que, só agora, ou seja, no ano passado, foi fundada a ISAM (International Society of Addiction Medicine), enquanto outras Sociedades Médicas existem há séculos. A exceção honrosa a esta regra ficou por conta de alguns países, entre os quais a Inglaterra, onde desde há muito as sociedades especializadas vêm dedicando recursos em pesquisas para maior conhecimento desta condição, proporcionando mais e melhores instrumentos de avaliação, tanto da Dependência Química em si quanto dos problemas relacionados, bem como técnicas de intervenção cada vez mais eficazes, incluindo desde formas de abordagens em estágios mais precoces do problema, até a extensão dos recursos terapêuticos ao tratamento de relacionamentos familiares e outros.
Os estudos de Neuro-imagem vêm confirmando as suspeitas do Dr. Trotter de que existem alterações físicas decorrentes da exposição contínua do Sistema Nervoso ao uso de substâncias psicoativas. Não só em relação às seqüelas morfológicas e funcionais decorrentes da intoxicação, mas também da constituição de circuitos de recompensa (Reward Patchways) que, uma vez estabelecidos, determinam o uso compulsivo de substâncias em determinadas pessoas.
Várias iniciativas de abordagem no campo da psicanálise também se mostraram efetivas, principalmente para estágios mais precoces da doença. As abordagens cognitivas-comportamentais, seja como treinamento de habilidade para Prevenção de Recaídas, ou como técnica psicoterápica para analisar os valores centrais ou crenças subjacentes presentes no usuário de drogas, mostram efetividade até para casos em que o comprometimento se encontra nos estágios mais avançados. Por outro lado, a Entrevista Motivacional (uma técnica de entrevista conduzida com a finalidade de ajudar pessoas no sentido de caminhar através dos estágios de motivação para as mudanças necessárias) tem colaborado para que menos pessoas precisem chegar ao “fundo do poço” para aceitarem ajuda ou tratamento.
Os limites desta abordagem ocorrem dentro de alguns tópicos, entre eles:
Freqüentemente, dentro do modelo médico psiquiátrico, tanto em hospitais quanto em serviços ambulatoriais, esta condição é tratada apenas no que diz respeito a suas conseqüências, ficando as causas intocadas, o que favorece a reinstalação da doença em pouco tempo.
Existe uma crença em alguns meios psiquiátricos que a dependência a substâncias seja vista apenas como sintoma de outros comprometimentos.
Os médicos, com algumas honrosas exceções, não têm dedicado a devida importância ao estudo desta condição, apesar dos altos índices de incidência, e tendem a desmerecer ou sub-avaliar as possibilidades de ajuda profissional, muitos temendo ficarem desacreditados devido aos “fracassos do tratamento”. Desta forma, preferem remeter a ajuda aos grupos de ajuda-mútua ou outros recursos, sem garantir, entretanto, que os seus pacientes seguirão seus conselhos.
Muitas vezes são ignorados os aspectos mais gerais implicados nesta condição, reduzindo a abordagem a uma visão também igualmente simplista de soluções puramente físicas (do tipo “Unidades de Desintoxicação”), negando as implicações psicológicas, espirituais e sócio-familiares desta condição.
Conclusão
Queremos pontuar a necessidade de conjugarmos esforços, em todos os campos de conhecimento bem como vivenciais, para a compreensão desta condição de agravo à saúde e que tem se constituído, através dos tempos, em desafio a toda a sociedade. Se formos perceber as várias dimensões envolvidas nesta problemática, certamente estaremos mais abertos a reconhecer a preciosa ajuda que cada campo específico pode trazer ao estudo e propostas de abordagens cada vez mais eficazes para o enfrentamento desta questão. Por outro lado, o grande número de pessoas acometidas por esta condição, nos seus vários estágios, torna pretensiosa a hipótese de que todas poderão ser alcançadas pelos recursos terapêuticos profissionais. Neste sentido, deve ser valorizado o resultado conseguido a partir de experiências de caráter religioso que proporcionam mudança de vida.
Neste sentido também, é preciso que, cada vez mais, as iniciativas de caráter religioso que se propõem a tratar esta condição, sejam auxiliadas pelos conhecimentos técnicos profissionais atualmente disponíveis (como parece ser a tendência observada no último encontro mundial de comunidades terapêuticas realizado na Espanha, no ano passado).
Por outro lado, ajudará muito à Medicina e em particular à Psiquiatria reconhecer as várias dimensões do ser humano, valorizando a dimensão espiritual como não só inerente à própria condição humana, mas também como um poderoso aliado no sentido de modificação de hábitos de vida evidentemente prejudiciais à saúde na sua dimensão mais ampla.
Para terminar, poderíamos citar trechos de uma carta de C. G. Jung, dirigida em resposta a Bill, criador, juntamente com Bob, do movimento de Alcoólicos Anônimos, na qual tece comentários sobre um paciente com problemas com álcool que foi por ele atendido:
“… Sua ânsia pelo álcool correspondia, em um nível inferior, à sede espiritual do ser humano por uma unidade e integridade que, em termos medievais, se chamava a união com Deus… A única forma legítima de conhecer uma experiência desta índole é sofrê-la real e concretamente, e somente podem sofrê-la aqueles que andam por um caminho que os leva a uma compreensão superior. Pode ser que cheguemos a essa meta por um ato de graça, ou por meio de um contato pessoal sincero com seus amigos, ou por uma formação superior da mente, mais além do mero racionalismo… Estou firmemente convencido de que o princípio do mal que prevalece neste mundo levará esta necessidade espiritual passar, sem ser reconhecida, à perdição. A não ser que se esteja resistindo por uma autêntica intuição religiosa ou pela muralha defensora da comunidade humana. Um homem comum e livre, sem a proteção de uma ação do céu e isolado na sociedade, não pode resistir à forca do mal…”.
(Carl G. Jung)
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Frederico R.C. Vasconcelos; Médico psiquiatra no Rio de Janeiro