PEDRO – SEM LENÇO, SEM DOCUMENTO… SEM PASTOR!, por Uriel Heckert
Decidi-me por um sábado diferente. Acordei bem cedo, logo liguei o computador e iniciei aqueles “downloads” que estavam à espera de melhor ocasião. Enquanto a máquina trabalhava, coloquei em prática a sugestão do “Leamos la Bíblia”: “Intente levantarse um día cuando aún es oscuro, y espere el amanecer orando y meditando el texto del día”. Assim disposto, visitei parentes e amigos hospitalizados, clientes que atendera na véspera e cheguei ao povo que vive nas ruas de Juiz de Fora.
Eu os acompanho há algum tempo. Àquela hora, estavam sendo despertados, seja pelos funcionários do albergue ou pelo burburinho crescente da vida urbana; e saindo sem rumo à procura de um lugar, de alguma ajuda. Assim acontece, principalmente aos fins-de-semana, quando a maioria dos dispositivos assistenciais não funciona.
Alguém já disse que orar pode ser perigoso. Pois é, logo me veio a pergunta: o que posso fazer por essa gente, agora? Relutei o quanto pude até desligar o micro, trocar de roupa e sair. Cumprimento um, ouço o pedido de outro e não demorou que surgisse o Pedro.
Eu o conheço há uns três anos, desde que aportou na cidade para “tentar a sorte”. Nascido em zona rural, experimentou todas as agruras comuns aos “libertos” pela Princesa Isabel: pobreza extrema, falta de escola, trabalho penoso desde os 9 anos de idade… Como não era dócil, foi logo rotulado como “nervoso” e recolhido ao hospital psiquiátrico mais próximo, ainda adolescente. Daí em diante, precisava pouco para lá estar de volta: qualquer exaltação, excesso alcoólico, “desobediência”, era motivo para nova internação. A família, os patrões, a polícia, todos já sabiam o que fazer com aquele “doido”. Cansado de tanta bordoada, já trintão, partiu para sua aventura maior, em direção à “cidade grande”.
De minha parte, mesmo depois de atendê-lo por diversas vezes, não consigo atribuir-lhe um diagnóstico psiquiátrico preciso. A estrutura de personalidade é neurótica e diria que seus sintomas exprimem o que se convencionou chamar de “sofrimento mental inespecífico”, expresso de forma tosca e simplória pela pobreza de sua formação cultural. O uso do álcool é ocasional e o torna ruidoso, é verdade; outras drogas, ele não conhece.
Sempre mostrou-se desgostoso, sem esperanças de melhorar sua condição de vida. Qualquer possibilidade aventada era logo rechaçada, pois dizia ter esgotado todas as fontes de ajuda. Entre tantas, citava claramente sua decepção com instituições e líderes religiosos, tanto padres, pastores e outros: alguns não lhe deram ouvidos, outros não cumpriram promessas; de alguém teria ouvido até que igreja não é para dar e sim para receber, ao contrário do ensino de Jesus Cristo. As consultas eram pesadas e frustrantes, inclusive para mim. Ao final, vinha sempre o pedido de algum remédio, especialmente o Diazepam, conhecido calmante das massas e enriquecedor das multinacionais.
Conheci agora um Pedro diferente. Disse-me logo que não dorme mais no albergue, pois conseguiu um barraco “para se esconder”. Como foi? Há dois meses freqüenta a Congregação Cristã do Brasil, um ramo evangélico pentecostal que lhe pareceu diferente: a acolhida, a identidade da cor, a admissão desburocratizada, a oferta de ajuda direta… Ele não resistiu, já “desceu às águas”, está feliz e destaca o que lhe pareceu mais importante: “Lá não tem pastor, é só Aquele lá de cima”.
Ao nos despedirmos, fez questão de chamar-me ao lado e mostrar o que tinha no bolso: R$ 18,00, oriundos do trabalho de uma noite recolhendo papéis e ferro-velho. Isso mesmo, uma noite em atividade, pois descobriu que a concorrência diurna lhe é desfavorável. Àquela hora, estava rumo de casa para descansar, mas antes tomaria o seu café no quiosque da esquina. Não esqueceu do Diazepam, mas admitiu que, após 60 dias, valeria à pena continuar sem usá-lo. E me convidou orgulhoso: “Vamos tomar um café, doutor?”.
Tanta coisa poderia ter sido diferente na vida do Pedro. Faltou-lhe algo parecido com a experiência comum de família, moradia, instrução, profissão, reconhecimento social… Sobretudo, como demorou que ele encontrasse uma comunidade cristã acolhedora; e essa, sem pastor!
Eu, que valorizo minha herança de fé evangélica e conheço tantos líderes dignos, voltei para casa feliz, mas pensativo. Como poderemos tornar os caminhos da justiça, do bem estar, da comunhão, da fé e da esperança mais acessíveis a todos? Pelo menos, que não sejamos pedras de tropeço aos “pequeninos” de Jesus Cristo. Ainda bem que Ele é sábio e trabalha com a Sua diversidade.
Uriel Heckert
Setembro de 2004