OS TRÊS FUNDAMENTOS, por Paulo Einsfeld (CPPC/SUL – Foz do Iguaçu: Ética na virada do Milênio)
Tentei entender o tema dessa mesa redonda. Gosto de brincar com as palavras e me perguntei se hoje não se opta por dois tipos de ética: “a ética virada” ou “a ética da virada”?
Temos à nossa volta, uma ética virada contra a fé cristã; um comportamento ético contrário aos princípios e valores do Evangelho neste tempo de pós-modernidade;
Ética virada porque o ser humano neste tempo pós-moderno existencialmente está ao avesso, de pés para o ar; sem base, sem chão, sem norte para se guiar.
A 2ª opção é pela ética da virada. Em dois sentidos: a virada e a transição para o novo milênio. Uma transição para novos tempos cronologicamente registráveis e medidos. Os gregos o chamariam de chronos! O tempo cronológico.
Mas a ética da virada não poderia ser também uma nova fase de virada no engajamento por parte da Igreja terapêutica e de seus membros? Um novo tempo, uma nova oportunidade, um tempo-kairós, (em grego); tempo de Deus e, por isso, tempo nosso de novos desafios para a sanidade integral?
Encontrei essa compreensão do tempo numa manifestação recente de líderes evangélicos de expressão nacional sobre crises que a igreja evangélica vem enfrentando:
“as crises do momento são conseqüência de modelos doentios ou deficientes, aos quais todos nós estamos expostos. Por isso, encaramos esse momento como um momento de crise-oportunidade, um kairós (momento oportuno) de Deus propício para a avaliação e revisão de rumos.” (Carta de Curitiba, Ultimato, maio/junho/99, p.38)
Após esta introdução, gostaria de abordar 3 temas teológicos como fundamento da ética cristã:
Graça
Um dos temas teológicos centrais no desenvolvimento da Psicoteologia é o tema da GRAÇA. Preciso fazer uma breve retrospectiva histórica. Graça é um termo favorito do apóstolo Paulo, especialmente na carta aos Romanos. Martim Lutero na Reforma Protestante resgata a salvação somente por graça e fé em Jesus Cristo, sem as obras meritórias e sem a intermediação de santos e da mãe de Jesus. Alicerçado na Escritura que revela a graça incondicional de Deus, Lutero proclama um novo tempo em meio às crises daquela época medieval. Um tempo-oportunidade, um tempo kairós, um tempo libertador. E proclama também uma nova ética: as obras, a prática do amor e da justiça, o serviço cristão no mundo, nada mais são que uma resposta à graça, ao amor incondicional de Deus. Como frutos da árvore boa, o crente pratica boas obras, como frutos espontâneos, naturais de sua nova condição de criatura justificada. A ética, pois, é uma resposta à ação graciosa de Deus em Jesus Cristo.
Estes princípios bíblicos aos poucos vão perdendo seu peso libertador na Igreja e no mundo, quando é criado todo um corpo doutrinário que oferece salvação universal e distribui a graça como princípio geral. A partir do Iluminismo, temos uma fé cristã racionalista, liberal, secularizada. Ainda é fundamental confiar na graça, que a todos salva. Já a ética cristã fica em segundo plano.
Dando um pulo no tempo de mais de 400 anos, desde o começo da Reforma de 1517, percebemos vozes de insatisfação contra esse sistema de pensamento. Uma destas vozes se chama Dietrich Bonhoeffer, um teólogo alemão, jovem mártir na Segunda Guerra Mundial. Aos 39 anos de idade, é enforcado por participar de atentados contra Hitler. Em 1937, com apenas 31 anos, Bonhoeffer escrevia sua obra de espiritualidade chamada “Discipulado”. Ele começa falando da graça preciosa em contraposição à graça barata, e assim resgata os princípios bíblicos da Reforma Luterana que haviam sido deturpados.
Deixemos Dietrich nos falar:
A graça barata é inimiga mortal de nossa igreja. A nossa luta trava-se hoje em torno da graça preciosa.
Graça barata… é graça como inesgotável tesouro da igreja, distribuído diariamente com mãos prontas, sem pensar e sem limites; a graça sem preço, sem custo. A essência da graça seria, ao que pensamos, a conta ter sido liquidada antecipadamente e para todos os tempos. Estando a conta paga, pode-se obter tudo gratuitamente. Por ser infinitamente grande o preço pago, são também infinitamente grandes as possibilidades de uso e dissipação.
A graça barata é a pregação do perdão sem arrependimento, é o batismo sem a disciplina de uma congregação, é a Ceia do Senhor sem confissão dos pecados, é a absolvição sem confissão pessoal. A graça barata é a graça sem discipulado, a graça sem a cruz, a graça sem Jesus Cristo vivo, encarnado.
A graça preciosa é o tesouro oculto no campo, por amor do qual o homem sai e vende com alegria tudo quanto tem; a pérola preciosa, para adquirir a qual o comerciante se desfaz de todos os seus bens; o governo régio de Cristo, por amor do qual o homem arranca o olho que o escandaliza; o chamado de Jesus Cristo, ao ouvir do qual o discípulo larga suas redes e o segue.
Essa graça é preciosa porque chama ao discipulado e é graça por chamar ao discipulado de Jesus; é preciosa por custar a vida ao homem e é graça por, assim, lhe dar a vida. É preciosa por condenar o pecado e é graça por justificar o pecador. Essa graça é sobretudo preciosa por tê-lo sido para Deus, por Ter custado a vida de seu Filho – “fostes comprados por preço” – e porque não pode ser barato para nós aquilo que para Deus custou caro. A graça é graça sobretudo por Deus não ter achado que seu Filho fosse preço demasiado caro a pagar pela nossa vida, antes o deu por nós. A graça preciosa é a encarnação de Deus.” (Discipulado, p. 9-11)
Fecho esse longo parêntese, e pulamos para o início dos anos 70, quando um psicoterapeuta, pastor e teólogo reformado americano, J. Harold Ellens desenvolve um belo trabalho de integração entre Teologia e Psicologia, usando como referencial a teologia da graça radical. Pelo que andei lendo e conversando dentro do CPPC, me parece que Ellens, a partir da década passada, com seu livro Graça de Deus e Saúde Humana se tornou referencial obrigatório do embasamento teológico de nossa caminhada.
Nós, que aqui estamos, viemos de tradições confessionais diversas. Alguns, como eu, bebemos em fontes de Igrejas Históricas (sou luterano, contexto em que a graça é praticamente aceita como natural). Outros vêm de Igrejas de um protestantismo de missão; ou de comunidades de reavivamento em meio às Igrejas constituídas. Não importa. Importa o discipulado de Jesus Cristo hoje, em nosso tempo de virada e rumo à virada.
Lanço um desafio genérico que poder-se-ia aplicar a todos nós. E um desafio específico, aplicável a cada um de acordo com a trajetória histórica de sua caminhada de fé comunitária. Aos que sofrem pela herança de uma ética legalista, é preciso proclamar a graça. Sim, é preciso enfatizar, como Ellens, que a “graça é gratuita, radical, incondicional, universal, ou então não é graça!”. Aos nossos clientes ou pessoas pastoreadas que vêm com seus legalismos doentios é preciso anunciar: graça! Aceitação incondicional primeiro por parte de Deus. E também aceitação incondicional de si mesmo e do outro!
Aos que padecem em meio à herança de uma ética liberal, no sentido histórico do termo, é preciso proclamar: compromisso! É preciso gritar, como Bonhoeffer, graça preciosa sim, seguimento de Cristo sob a sombra da Cruz! Às pessoas com quem trabalhamos que estiverem desnorteadas em sua liberalidade é urgente anunciar: compromisso! Graça preciosa! Compromisso com Deus, consigo mesmo, com o outro!
Percebo que hoje, no meio evangélico, a graça está barateada, ou melhor, a graça está sendo mercantilizada. A graça de Deus está sendo “vendida” pelos dízimos e ofertas. O perdão, a paz, a cura estão sendo comercializados a preços e condições, nem sempre tão baratos…
Graça barata talvez também poderia ser está fé individualiza, mistificada, sincrética. A espiritualidade da Nova Era, da qual falava Dr. Collins no Congresso Nacional do CPPC de 98.
É preciso voltar à graça preciosa como fundamento de nossa ação ética. Esta graça custou caro. Custou a vida preciosa do Filho de Deus.
Passemos a um outro eixo que poderia ser fundamento para uma ética a partir da graça incondicional. Penso no binômio:
Justificação e Justiça
Justificação por graça e fé, e justiça nas relações sociais. Vamos ler o Sermão da Montanha (Mateus 5 a 7) a partir do v. 6.33: Buscai, pois, em primeiro lugar o seu reino e a sua justiça e todas estas cousas vos serão acrescentadas. Buscar o Reino, na dimensão da espiritualidade sadia, está ligada à prática da justiça do Reino, que chama de bem-aventurados, de felizes e agraciados justamente os desgraçados deste mundo. Qual é o lugar dos humildes, dos pobres, dos que têm fome e sede de justiça nos serviços de saúde mental? Como a psicoterapia pode contemplar os carentes de pão e dignidade de nosso país?
Um líder da Igreja Luterana, o Pastor Arzemiro Hoffmann de São Leopoldo, disse:
O Sermão da Montanha é o maior patrimônio ético da humanidade. O Sermão da Montanha prima pela formação da integridade da criatura. Ele estabelece a base para uma cultura capaz de restaurar a dignidade e a justiça no convívio entre as pessoas e os povos. O Sermão da Montanha apresenta o verdadeiro projeto de “qualidade total” da Igreja. Este reside na sua ação, que conjuga espiritualidade e justiça. (JOREV, dezembro/1998, p.11)
O Sermão do Monte apresenta as exigências éticas do reino de Deus. Sob estas exigências, não legalistas, mas graciosas, o discípulo de Cristo de hoje se coloca, em resposta ao chamado de Deus de marcar diferença em seu contexto de vida. O Sermão do Monte é uma descrição do nosso compromisso, a ser realizado a partir do nosso privilégio de participarmos da graça de Deus. (Fischer & Menezes dos Santos. ETD, v. 3, p.63-64.)
Mais do que nunca temos diante de nós difícil, mas imprescindível opção ética pela…
Fidelidade
O divisor das águas do líder cristão e do profissional das áreas de ajuda é sua opção inevitável entre sucesso ou fidelidade aos valores e princípios das Escrituras e da fé vivida de forma comunitária.
Aos Coríntios, o apóstolo escreve sobre a identidade do líder cristão e as conseqüências para sua vida: Assim, pois, importa que os homens nos considerem como ministros de Cristo e despenseiros dos mistérios de Deus. Ora, além disso, o que se requer dos despenseiro é que cada um deles seja encontrado fiel. ( 1 Co 4.1-2) A identidade como ministro, despenseiro, administrador da despensa está intimamente ligada à fidelidade ao dono da despensa.
Ricardo Gondim alerta aos líderes de hoje:
Quando a fidelidade se torna a única ambição do líder segundo o coração de Deus, todas as expectativas circunstanciais se esvaziarão, porque não haverá mais a necessidade de querer impressionar ninguém. Deus não valoriza tamanhos, números, quantidades. Ele busca que cada um seja obediente e fiel naquilo que foi chamado.” (Fim de Milênio, p. 113)
A Carta apocalíptica que o mensageiro de Esmirna recebe também é endereçada a nós hoje: Sê fiel até a morte e dar-te-ei a coroa da vida Ap 2.10. Sobre a fidelidade, assim se expressa o teólogo luterano Valdir Steuernagel:
Essa fidelidade se expressa nas pequenas coisas que acabam sendo básicas: a obediência ao Pai, o carinho pela sua igreja, o cuidado para com a família e a vivência da vocação para Deus, para o outro e para o serviço. (Revista Ultimato, jul/99, p. 47)
Vou terminando lançando perguntas condicionais e optativas:
1) Qual é o lugar privilegiado pelos Pregadores de hoje: a platéia – o auditório público – ou a sacristia – a comunhão secreta com Deus?
2) O que nos importa: agradar aos homens ou obedecer ao chamado de Deus?
3) Curtimos o surfar na onda ou temos ousadia para nadar contra a correnteza?
4) Somos caricaturas de “hiena sorridente” de oficinas de sensibilizações interiores e motivações a serviço de insensíveis projetos neoliberais? Ou ainda temos a ousadia de sermos profetas em plantão?
5) Como profissionais de psicologia e aconselhamento, justificamos e aquietamos a consciência atribulada pelo pecado? Ou somos agentes de justificação e sanidade do pecador, não tanto para aquietar, mas para inquietar a partir das premissas do Evangelho?
6) Seguimos a lógica do amor ao poder ou optamos pelo serviço em amor, que se torna forte na fraqueza?
7) Prosperidade ou renúncia? Glória ou cruz? …
Desejo que o clamor de Nikolaus von Zinzendorf seja a oração de nossa geração de pastores, líderes e de profissionais cristãos nas mais diversas áreas:
Senhor, dá-me o que queres que teus seguidores tenham: um jugo que sirva para meus ombros, paciência e intrepidez, ação e descanso na justa medida, humildade ao viver em tua graça sublime, assim que ela seja
meu vestido de honra.
(in Ricardo Gondim, op. cit.
p. 113.)-
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Paulo Einsfeld é pastor da IECLB em Morro Redondo (RS), com especialização em terapia familiar sistêmica.