O TERAPEUTA E SUA SOMBRA, por Deusa R. T. Robles
“As fronteiras da alma são incertas, e o locus do trabalho psicológico nunca pode ser só você ou só eu; ele diz respeito a nós dois.” (James Hillman) Num olhar atento para nossa Sombra, nós, terapeutas, que lidamos com a angústia humana, nos deparamos com o mal, não só no outro, mas muitas vezes em nós mesmos. Não apenas com o mal que possamos ter reprimido, mas também com aquilo que nos era até então desconhecido. Não podemos por mágica, nem por nenhum “Poder” maior que nos tenha sido dado, descobrirmos o “Sentido da Vida” de nossos pacientes. Mas, podemos tentar mostrar-lhes que tanto o vazio quanto o sentido existem e, o mais honestamente possível, ajudá-los a serem o que são. Porém isso só será possível, na medida em que conseguirmos mergulhar dentro de nós mesmos e assim também nos examinarmos, corajosamente. E quando o fazemos, não podemos deixar de olhar para um fenômeno bastante obscuro, principalmente naqueles de tão boa intenção para com o outro, que é o Desejo de Poder. Até onde a Onipotência do terapeuta, inclusive por ser algo arquetípico e, portanto, inerente a qualquer um de nós seres humanos, não se fortalece, ao se defrontar com um outro ser humano, de alguma forma, naquele momento, mais fragilizado que nós e completamente exposto. Até que ponto o analista não se sente o grande salvador, frente a uma pessoa ansiosa, amedrontada, torturada pela angústia e muitas vezes ameaçada pela morte, concreta ou não. É preciso certo cuidado para com nossa própria vaidade, para não nos revestirmos de “redentores” ou “divinos”, a ponto de sermos extremistas, colocando de um lado o terapeuta (ou qualquer outro Ajudador, seja médico, professor ou pastor), poderoso, superior, orgulhoso e equilibrado e de outro, o paciente fragilizado, regredido e tão necessitado de ajuda. Se olharmos para a possibilidade de todos termos internalizados em nós mesmos o bem e o mal, podemos imaginar que também exista na Sombra do paciente, uma imagem interna de terapeuta. Assim, devemos trabalhar no intuito de despertar e fortalecer esse terapeuta interior no Inconsciente do paciente, pois quando o terapeuta externo, que somos nós, não for suficiente, teremos o auxílio do terapeuta interno do paciente. Pensando que potencialmente todo paciente tem um terapeuta dentro de si, podemos também pensar o inverso, que todo terapeuta tem em si um paciente. Esse é o conceito que Jung chamou de Arquétipo do Médico Ferido. É o paciente projetando seu terapeuta interior no médico que o trata e este podendo projetar suas próprias feridas sobre o paciente. Se não olhamos para nossas limitações e nos colocamos como “salvadores eternos”, não curamos, mas causamos dependência. Fica, então, de um lado o paciente dependente do médico, sem poder ter sua própria Consciência de Saúde e o médico por sua vez, dependendo do paciente para não adoecer; não vendo em si mesmo feridas e fragilidades. O maior símbolo psicológico do “terapeuta ferido” foi Jesus Cristo, curando não apenas as doenças do corpo e da psique, mas também todos os problemas existenciais, relativos ao pecado, à culpa e à morte. Esse símbolo maior de “terapeuta ferido”, nunca se serviu do Poder, mas o reconheceu em Deus. Se formos capazes de experimentar a doença como uma possibilidade existencial em nós próprios, e de integrá-la, poderemos nos transformar em um verdadeiro “terapeuta ferido”. Temos uma tendência humana de combater o sofrimento “impondo” aquilo que consideramos correto para os outros. Assim, via de regra, em nosso dia-a-dia, nos entregamos demasiado ao Desejo de Poder. Há um possível sentimento de culpa, mas este desaparece da Consciência, uma vez que justificamos nossas ações por algo supostamente correto e bom, passando assim, muitas vezes, por cima da vontade e/ou prontidão para entendimento de nossos pacientes, dizendo que este não quer ficar bom. Devemos tomar cuidado para não procurarmos parecer ao mundo (e a nós próprios) melhores do que somos realmente, escondendo de nós próprios nossas próprias dúvidas, mascarando muitas vezes, nosso próprio vazio interior (mesmo que momentâneo). Se não olharmos para nossa Sombra, podemos interpretar o Inconsciente de nossos pacientes, segundo os desejos de nosso Ego e dessa forma, compreendê-lo mal. No entanto, quando olhamos para nossa própria Sombra, além de nos diferenciarmos, ainda podemos demonstrar, com essa nossa atitude, que os aspectos desagradáveis da vida também devem ser reconhecidos e que podem ser suportados, por mais dolorosos que sejam, levando assim, possibilidades humanas a nossos pacientes. A psicologia junguiana entende a relação entre duas pesoas como algo mais que um mero contato entre duas Consciências. Quando duas pessoas se encontram, suas psiques se defrontam em sua totalidade; o Consciente e o Inconsciente; o dito e o não dito; passado e presente; tudo afeta o outro. Entramos inteiros, como seres humanos que somos, para o processo terapêutico. Muito mais é trocado entre duas pessoas do que o que é meramente expresso em palavras ou atos. O processo psíquico não avança sem um fluxo de emoção entre paciente e terapeuta. Qualquer relacionamento humano é cercado por amor e ódio e como disse Jung, o analista só pode dar a seus pacientes aquilo que possui. A responsabilidade do psicoterapeuta é com a “salvação” da psique. O terapeuta deve se preocupar em promover a dinâmica da psique em direção ao Si-Mesmo e ao encontro de um sentido. Segundo Hillman, isto é “Fazer Alma”, e não apenas auxiliar o paciente a atingir um estado de saúde. Para ele, fazer alma comporta ir às profundezas, daí o medo e a angústia que se experimenta em alguns momentos de análise. Para Hillman, aquilo que constrói ao mesmo tempo arrasa e aquilo que fragmenta, ao mesmo tempo reestrutura. Quando o analista (ou qualquer pessoa numa relação de amor, cura, aconselhamento ou qualquer outra situação íntima de entrega) não percebe que seu trabalho de fazer alma é também destrutivo, a destruição ocorrerá sem ser vista, inconscientemente. Assim qualquer Ajudador pode atuar para o assim chamado “Sentido da Vida”, não só em momentos de doença, mas fazendo alma; buscando o caminho da individuação. Para Guggenbuhl-Craig, autor do livro “O Abuso do Poder”, o grande problema do psicoterapeuta é seu isolamento. E depender de si mesmo em seu trabalho, só ele e seus pacientes sabem o que se passa em cada sessão. Assim, para ele, a única saúde para um psicoterapeuta é a Amizade. Somente a Amizade é capaz de melhorar, ou até mesmo dissolver o enredamento do terapeuta com a própria Sombra. Daí a importância do CPPC. É o abrir-se para o outro. É o discipular. O estar junto. Desenvolver o Arquétipo Fraterno. Deixar fluir o “Terapeuta-ferido” entre os seus, estar senpre sendo analisado e iluminado por seus pacientes. Trabalhar não apenas com o paciente, mas consigo mesmo e com seus iguais, seus amigos terapeutas. Ser sempre terapeuta e também paciente. É na amizade, na confrontação com nossos pares, que há lugar para atacar e ser atacado, insultar e receber de volta. Para Craig, o que faz falta ao analista são relações simétricas, amigos que ousem atacá-lo, fazê-lo ver não apenas suas virtudes, como também seus aspectos ridículos, para que o terapeuta não viva isolado numa espécie de torre. Assim, para Craig, é na amizade que as profundezas da Sombra são sondadas com amor. A amizade genuína é um confronto erótico (no sentido de Eros: amor e ódio), fora do esquema analítico. Somente através das amizades genuínas e da propria individuação, desfazendo-se da rigidez, da estreiteza de visão, da falta de abertura para consigo mesmo e para o mundo, que o psicoterapeuta poderá entrar em contato com a centelha divina existente nele mesmo, e só assim poderá desenvolver um trabalho criativo e honesto para com seus pacientes. ———- |