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O SISTEMA DE CRENÇAS DE MORENO E O PSICODRAMA, por Fátima Fontes

Artigos e Notícias

Antes de estruturar a teoria das relações interpessoais como pro­duto do pensamento psiquiátrico, sendo este um dos pontos de crença de Moreno, diz ele que chegou “primeiro o pensamento religioso e ético … A teoria das relações inter­pessoais nasceu da religião”. (Mo­reno, 1889 – 1947, Vol.  I : 38).

Em segundo lugar, continua Mo­reno, veio o pensamento So­cio­ló­gico; a psiquiatria, portanto, chegou por último.
Acompanhando os registros au­to­biográficos, biográficos e mesmo as próprias obras de Mo­reno, confir­ma­re­mos que mais do que baseado em pontos de vista de diferentes teorias, a obra More­niana é mar­cada pela crença de Moreno na­quilo em que se baseou.

Percebemos, então, que Moreno creu em várias coisas quando criou o Psicodrama. Nomear todas elas seria algo muito rico e desafio que ultrapassa a meta desta reflexão. Portanto serão eleitos alguns pon­tos neste sistemas de crenças.

Crença no Universo
Métrico da Criação
de Deus – Teometria

Moreno nos conta que tudo o que aprendeu e sabia sobre Sociometria vinha de suas experiências e espe­culações em planos religiosos e axiológicos. A forma como ele fez esse encaixe é magistralmente descrita:

“Para encaixar o sistema socio­métrico no mundo de Deus, fiz com que Ele atribuisse a cada partícula do universo um pouco de espon­taneidade e criatividade, criando assim inúmeras oposições para Si próprio, as contra-espontaneidades de inúmeros seres.

Isto o tornou dependente de todo ser e, devido à enorme extensão e distribuição através de espaços in­findáveis, quase desamparado. Isto nos tornou, porém, a nós e a todos os seres, muito mais depentes d’Ele do que seríamos caso não compar­tilhássemos um pouco de sua ini­ciativa e responsabilidade.
Esta distribuição de espon­ta­nei­dade e criatividade nos tornou par­ceiros, iguais.

Ele era para servir, não para co­mandar; para co-existir, co-criar e co-produzir, nada para Si próprio, tudo para os outros.
Tal fato forneceu à Sociometria o modelo do investigador objetivo por excelência, o “olho objetivo” de Deus. Para Ele, todos os eventos têm mérito igual, Ele não tem preconceitos. O ódio e a estupidez estão tão próximos no Seu coração quanto o amor e a sabedoria”. (Mo­reno, 1889 – 1947 : 28-29).

Quando volvemos à origem hassídica, de Moreno e da própria mística judaica, encontraremos esse “Deus vivo, com atributos, que em certo nível representam tam­bém a escala de valores morais do próprio místico: Deus é bom, Deus é severo, Deus é misericordioso e justo, etc”. (Sholem, 1972:14). Parece porém, que a maior das repercussões desta crença na vida e obra de Moreno, é o caráter da co-responsabilidade pela criação do Universo.

Deixa-se então, por este viés, de se ver o homem como “vítima” de um Criador que o abandonou à deriva de seu próprio movimento, ou mesmo como um mero resultado da evolução da espécie.

Este homem passa a ser o centro da Criação, co-partícipe de seu pró­prio destino, dos destinos do outro e do próprio mundo.

Crença em que
“Um Indivíduo poderia
tornar-se o Agente
Terapêutico do Outro”

Aliado ao movimento social de sua época, sobretudo os trabalhos de La Salle e Marx feitos pela classe trabalhadora, inclusive no que concernia aos efeitos das reali­za­ções éticas vividos por este grupo, surgiu o desejo em Moreno de fazer algo similar com as prostitutas de Viena.
Acreditava Moreno que ainda que essas prostitutas tivessem sido estigmatizadas como pecadoras desprezíveis e pessoas indignas por muito tempo, em nossa civilização, e aceitado esse fato como algo imu­tável, era possível fazer algo por elas.

Aquilo que se processou neste auxílio, que demonstrou toda força terapêutica que uma pessoa pode ter sobre a outra, fez nascer na mente de Moreno todo o potencial de uma psicoterapia de grupo, e com isso os quatro princípios bá­sicos da psicoterapia de grupo – e mais tarde base de todas as formas de psicoterapia – nomeados por ele mesmo como:

I  – a autonomia do grupo;
II – a existência de uma estrutura de grupo e a necessidade de se saber mais sobre ela (o diagnóstico grupal);
III – o conhecimento da ordem coletiva e seus padrões de com­portamento, papéis e costumes que dinamizam a situação, indepen­dentemente de participantes in­dividuais e grupos locais;
IV – o problema do anonimato; na psicoterapia de grupo há ten­dência para o anonimato dos membros, as fronteiras entre os egos se esmaecem e o grupo como um todo torna-se mais importante.

Também neste ponto de crença, encontraremos outra correlação com o misticismo judaico de Mo­reno: “o verdadeiro hassid e o tza­dik do hassidismo posterior são figuras aparentadas; um e outro são os protótipos de uma via mística que tende para a atividade social, mesmo lá onde seus representantes são concebidos como guardiões de todos os mistérios da Divindade”. (Sholem, 1972 : 119).

É possível nesta segunda crença, tangenciar-se concretamente na crença anteriormente citada, da co-responsabilidade do homem pelos destinos do outro. E, mais uma vez, é possível encontrar até na gênese do movimento sócio-transformador de Moreno, a questão da crença mística.
Portanto, o segundo passo de Moreno na construção da ciência Socionômica – ou seja, o pensa­mento sociológico – não se alijava do primeiro, do pensamento re­ligioso e ético.

Crença na Possibilidade de,
na Ação Terapêutica,
se aprender “a Gramática
da Lógica” de cada Paciente

É interessante perceber a ordem desse construto Moreniano: “a gra­mática da lógica”. Ele a utilizou quando nos conta o belíssimo tra­ba­lho que realizou com William, um paciente diagnosticado com de­mência precoce. Acompanhando o processo de auxílio de Moreno neste caso, pode-se ter claramente esta ordem de construto: “gramática da lógica”, e não “lógica da gra­mática”.

Afinal de contas, que lógica faz um comportamento como o de William? Descrito assim por Moreno: “Com muitas de suas funções de realidade pervertidas, ele não per­cebia a presença de outras pessoas na casa e era incapaz de fazer algu­ma coisa com elas.
Mostrava repetidamente o desejo de expulsar as visitas de casa, in­cluindo seu pai, mãe e irmãos. Masturbava-se com frequência e brincava com seus excrementos. Comia irregularmente e destruía certas espécies de alimentos.

Exibia uma característica im­portante que dominava o quadro. Escreveu uma proclamação ao mundo, que ele queria salvar. Cha­mava-se a si mesmo de Cristo. To­mamos isso como uma deixa para o tratamento”. (Moreno, 1978 : 277)
E é aí que entramos em contato direto com a crença contida neste construto e suas consequências.

Moreno se põe a procurar uma linguagem possível com a de Wil­liam, e descobre: ele se utiliza da linguagem poética, como base para construir uma realidade poética, um mundo auxiliar.
Moreno assume então a atitude do poeta e do dramaturgo. Fami­liariza seus egos auxiliares com essa linguagem e com a estrutura do seu mundo auxiliar, para que pudessem atuar nesse mundo assumindo papéis adequados às necessidades do paciente, falando e vivendo com ele em sua própria linguagem e em seu próprio universo.

Este mundo auxiliar, segundo Moreno, estava repleto de papéis e máscaras, de objetos fictícios. “A medida que o paciente melhora, os papéis e máscaras podem se avi­zi­nhar cada vez mais de pessoas reais, e as coisas fictícias podem se converter cada vez mais em coisas reais e concretas”. (Moreno, 1978 : 279).
A atenção e criatividade de Mo­reno, sua ação além do enquadre terapêutico, não podem deixar de ser mencionadas aqui.
Descobrindo os sinais télicos de William a cores, alimentos e pessoas foi possível:

– determinar a cor das roupas que eram usadas nas sessões pela equipe terapêutica: o azul e o branco (tinha uma tele positiva para essas cores);
– determinar as cores do am­biente geral da casa onde William vivia;
– determinar os alimentos e pa­drão de sua alimentação diária (sua tele era positiva para frutas e legumes verdes);
– auxiliar seu interrelacio­na­mento com pessoas com quem fazia uma tele positiva.

Diz Moreno ao final que, ainda que o “ensimesmamento” de Wil­liam fosse compreendido cienti­fi­camente como alguém que “está retirado da realidade”, tão logo se pôde mudar a realidade para ele e  preenchê-la com seu psicodrama, viu-se que as sensações e eventos dentro dela eram extremamente significativas para ele.
De novo, é possível incluir o elemento de “Fé” no homem, nesta crença Moreniana, agora perten­cente à categoria da ação psi­quiátrica, último dos pensamentos que surgiu para Moreno na ela­boração de sua Socionomia.

Moreno, aqui, ultrapassa os li­mites pré-estabelecidos de uma psiquiatria vigente, que condenaria, sem dúvida, o paciente William à uma semi-vida humana. Ele chega a citar isto neste artigo, quando comenta que:
“O máximo que a psiquiatria e a psicanálise tentaram realizar, foi compreender esses pacientes, des­cobrir algumas pistas para explicar suas experiências mentais na psi­copatologia dos sonhos e na mente inconsciente.

Mas, do ponto de vista do tra­tamento, tínhamos de dar um passo mais à frente”. (Moreno, 1978 : 277). E aí é possível ligar este “passo mais a frente” com a maior das crenças de Moreno, a de que este homem-Deus, que habitava em William, fonte de sua espontaneidade, pedia passagem; era tarefa do Terapeuta homem-Deus viabilizá-la.

Crendo e Criando
Pode-se perceber então, neste ponto anterior, como o sistema de crenças de Jacob Levi Moreno, influenciou-o na criação do Psico­drama. Vale ainda ressaltar sobre esse sistema de crenças que, longe de ser um sistema cristalizado e patológico, que por vezes trans­for­ma aquele que crê num robô, ex­pe­rimentou Moreno um sistema de crenças espontâneo, que amplia o percepto daquele que crê.

Na base religiosa-mística deste sistema de crenças está a mística judaica, e mais ainda o Hassidismo. Adeptos de um Deus-Criador, cen­telha divina que nos toca a todos, viviam os hassidis a alegria dessa co-autoria da vida com o Criador.
A figura do “Tsaddik” (mestre do hassidismo), que parece  ter im­pregnado o papel do Diretor de Psi­codrama, não mantinha mais a an­tiga distância existente entre o rabino e discípulos.

Um dos principais atributos da personalidade do Tsaddik era sua capacidade de “encontro” e sua capacidade “criadora”. Esses traços o levaram a conduzir as pessoas até Deus, não pelas doutrinas, mas pela sua “irradiação humana”. O tsaddik fortalecia seu discípulo nas horas de dúvidas, mas não abria os olhos dele à verdade. Ele apenas o ajudava a conquistar e reconquistar a verdade por si mesmo”. (Fontes, 1992:14).

E é a este “encontro” que Moreno incita os diretores de Psicodrama, que eles possam ajudar as pessoas a saírem de suas “cascas” indivi­duais e viverem o “milagre da co­municação transformadora”, tarefa sem dúvida para pessoas especiais, para verdadeiros “Tsaddiks”.
Fica agora a questão: será que se está vivendo esta realidade no Cor­po de Psicólogos e Psiquiatras Cris­tãos?

Em que se estará crendo? Qual o nível de clareza que cada psico­te­rapeuta do CPPC tem sobre a teoria e prática na qual se assenta sua experiência de Psicoterapeuta?
E mais ainda, que nível de sistema de crenças está vivenciando cada psicoterapeuta do CPPC? Um nível cristalizado, obtuzante, que quase impõe um credo religioso como ca­minho de cura e transformação para as pessoas que a ele acorrem ?

Será que se está crendo e se tendo instrumental eficaz para facilitar o “milagre da comunicação trans­for­madora”? Ou se está “ade­quando” as pessoas a comporta­mentos con­siderados “normais” e “adequados” aos contextos reli­giosos e sociais, porém como pes­soas extremamente insatisfeitas e infelizes?
Urge que busquemos responder a essas questões, e criemos outras que nos inquietem e nos lancem na direção da crença espontânea, que alarga a visão de Psicoterapeutas e de auxiliares e, melhor ainda, que pode interferir no caos existencial no qual nos encontramos ubicados.

Que o Corpo de Psicólogos e Psi­quiatras Cristãos possa aprofundar estudos e pesquisas também na área de Psicodrama, e mais ainda do criador do Psicodrama, como ca­minho para torná-lo um Corpo cada vez mais fortalecido e renovado, diante de Deus e dos homens.

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