O ETHOS NO CAMINHO DA DOR, por Sérgio Carneiro
Qual a relação entre a ética e a dor, a angústia, o sofrimento, o desespero em que muitos hoje vivem? A ética tem produzido muitos debates no nosso meio acadêmico e principalmente religioso, onde posições extremadas e radicalismos ocupam o lugar daquilo que poderia nos levar a um amadurecimento de nossas vidas, tanto no campo profissional como nos relacionamentos.
Tomemos como referência o nosso dicionário, que define ética como a parte da filosofia que estuda as relações do homem com Deus e com a sociedade. Esta definição por si só não é suficiente para abalizar nosso discurso aqui. Não nos cabe estabelecer regras ou parâmetros de como deve ser este relacionamento. Não é nossa missão. Precisamos lançar um outro olhar sobre as relações do homem, sua história, seu passado, seja ele político ou econômico; precisamos lançar luz, retirar a névoa, para que enxerguemos com mais clareza este tema tão importante nos nossos dias e que como cristãos somos chamados a considerar.
Ética e Psicoterapia
Façamos em primeiro lugar uma referência ao nosso irmão Paul Tournier. Ele, profundo amante da liberdade e com imenso respeito à individualidade, afirma que o terapeuta não podia ser totalmente neutro; esta chamada neutralidade não podia ser sustentada, visto que o profissional deve estar ciente de que a cada momento poderá estar transpondo o terreno do conhecimento técnico e envolvendo-se com questões pertinentes aos valores, ao sentido da vida e da fé. Paul Tournier tinha profundo respeito pela individualidade, era sempre receptivo às pessoas nas mais diversas situações de vida, negando-se peremptoriamente a emitir juízos discriminatórios. Esta tolerância dele era baseada na paixão pela liberdade, considerando a existência humana extremamente rica e complexa.
Devemos considerar as palavras de Paul Tournier com a sensibilidade e delicadeza que ele mostrou em toda a sua vida. Penso que podemos extrair daí uma ética que também tenha sentido nos nossos relacionamentos, principalmente em nossos dias.
Ética e História
Olhemos para o ser humano agora com outro olhar, ainda mais circunspecto. Estamos no ano de 1927. O autor chama-se Freud e o texto é O Futuro de Uma Ilusão. Nosso autor procura tecer algumas considerações que não podemos escamotear do nosso discurso. Diz ele:
por pouco que os homens sejam capazes de existir isoladamente, sintam não obstante, como um pesado fardo os sacrifícios que a civilização deles espera, a fim de tornar possível a vida comunitária.
A Civilização, portanto, tem de ser defendida contra o indivíduo, e seus regulamentos, instituições e ordens dirigem-se a essa tarefa. Não estaria ele nos falando que a ética existe para defesa da civilização? Defesa contra quem? Contra o próprio homem, que na sua voracidade destrói a si mesmo exigindo um padrão inalcançável. Preciso, para isto, tecer algumas considerações pertinentes: o ano em que Freud escreveu estava imerso num dos períodos mais obscuros da história mundial. A 1ª Grande Guerra havia terminado, com imensas destruições, mortes e conseqüências econômicas desastrosas. Mas o que nos toca é que, apesar deste contexto histórico, Freud aponta para uma saída: diz ele ser possível um reordenamento das relações humanas, que removeria as fontes de insatisfação para com a civilização pela renúncia à coerção e à repressão dos instintos, de sorte que, impertubados pela discórdia interna, os homens pudessem dedicar-se à aquisição da riqueza e à sua fruição. Ele toca num ponto nevrálgico: o que impede o homem de caminhar em direção à realização são forças internas, que o impedem ser livre. Realizar-se significa ter todo o seu potencial utilizado em benefício de si mesmo e da humanidade. Quando nos voltamos à clínica, encontramos nossos pacientes vivendo essas mesmas questões. Não seria a tarefa do terapeuta promover um contato que rompa o nível convencional do diálogo no qual se mostra uma máscara chamada “personagem”, permitindo assim o surgimento espontâneo e revelador da pessoa, instaurando um fluxo novo de comunicação que enseja mudanças?
Recorramos a Eric Hobsbawn, que afirma em seu livro “Era dos Extremos” que o século XX terminou mais cedo (aliás, o século mais curto da história: começou em 1914 e terminou em 1991 com a queda do Muro de Berlin e a derrocada da URSS). Diz ele:
Ao contrário do ‘longo século XIX’, que pareceu, e na verdade foi, um período de progresso material, intelectual e moral quase ininterrupto, quer dizer, de melhoria nas condições de vida civilizada, houve, a partir de 1914, uma acentuada regressão dos padrões tidos como normais nos países desenvolvidos e nos ambientes de classe média (e que todos acreditavam piamente que estivessem se espalhando para as regiões mais atrasadas e para as camadas menos esclarecidas da população).
O mundo jamais foi o mesmo após as duas grandes guerras mundiais. A morte em massa, a destruição dos povos, o êxodo das minorias são movimentos causados pela guerra. “As criações humanas são facilmente destruídas, e a ciência e a tecnologia, que as construíram, também podem ser utilizadas para sua aniquilação”. Estamos diante do tempo mais obscuro e sombrio da história. Nunca o ódio se mostrou tão presente. Perto de 54 milhões de pessoas morreram nas duas grandes guerras juntas. Quantidades imensas de pessoas abandonaram seus países de origem e se mudaram para outro. Crianças foram arrancadas dos braços de suas famílias e deixadas para trás num êxodo que parecia sem fim.
Pode existir alguém que tenha sofrido mais na carne esta exclusão do que o próprio Freud? O ódio presente naqueles anos mostrou ao mundo o que se pode fazer quando há ausência de tolerância pelas diferenças. O que fazer quando cessa o diálogo que suporta as diferenças entre os povos? O que fica como resto de um discurso insuportável?
Não vejo outro caminho a ser percorrido senão a ética da tolerância. Não a tolerância ao liberalismo, ao lassez-faire, mas a tolerância com as idéias, pensamentos opostos. Forças que se repelem mas que não deixam de se influenciar mutuamente. Vivemos em uma sociedade onde o individualismo é a mola propulsora. O viver em família jamais é estimulado – aliás, família tornou-se objeto de consumo em massa. Cada vez mais se tenta descobrir um meio de vender para toda a família, seus gostos coletivos, consumo massificado. Disque 900 e chat-rooms que se propagam à velocidade da luz tentam encontrar uma resposta para as pessoas solitárias. Não haveria uma ética que pudesse suportar tantos encontros e desencontros. Quando falo de uma ética que suporta, falo de um cuidado nas nossas relações, de uma preocupação com o bem-estar do outro, de uma irmandade que revelasse em primeiro lugar a aceitação, que pensamos diferentemente mas podemos viver em comunidade. Um viver que não impedisse o outro de se expressar, de revelar sua intimidade e, principalmente, de ser ajudado.
Freud nesse mesmo texto revela para nós o quanto os povos são hábeis em criar tecnologias que ajudam o homem a viver em harmonia com a natureza, mas ao mesmo tempo mostra sua inabilidade em viver com o outro. Criamos tanto progresso tecnológico, mas não sabemos lidar com nossas diferenças.
Tenho por mim que a tolerância manifestada por Pfister em relação a Freud é uma marca que deve nos levar a pensar. Nunca houve em tempos tão odiosos um relacionamento que pudesse imprimir a pessoa de Jesus tão marcadamente. Eis a ética que não podemos esconder. Ela se faz presente não quando tudo parece bom, mas quando os homens se odeiam e se matam. Ela se faz presente no ambiente familiar, no encontro gostoso para um café, numa carta onde a saudade é a marca mais profunda. Vejo o comportamento de Pfister como um óleo que penetra nas engrenagens enferrujadas e velhas, como um verdadeiro bálsamo lubrificante trazendo o verdadeiro perfume de Cristo sem ao menos dizer uma palavra. Alguns me perguntariam: Como em meio à guerra ser amigo, cordial e se interessar pelo outro? Como manifestar o amor de Deus em tempo de tanta ira, cólera, desespero? Não vejo outro exemplo melhor senão a relação entre Freud-Pfister. Quanto bálsamo!
Estava me lembrando daquele maravilhoso texto do nosso irmão Paul Tournier Quando eu ousei compartilhar a mim mesmo. Ele nos conta como perdeu o pai aos 3 meses de idade e mais tarde, quando já era adolescente, a mãe, e que nunca tinha tido um relacionamento real com alguém. Mesmo depois de ter tido um encontro real com Deus ele sabia o quanto era difícil se relacionar com o outro. Estamos falando de perdas irreparáveis na família, vazios que não podem ser preenchidos, mas a história da vida de Paul Tournier mostra o quanto Deus pode mudar aquilo que pensamos ser definitivo. Pouco antes de falecer ele se expressou assim: “Parece que minha vida toda foi uma aventura conduzida por Deus”.
Me pergunto hoje como podemos ajudar as pessoas a ter um relacionamento mais harmonioso consigo mesmo em primeiro lugar e assim aceitar o outro como alguém que caminha junto, ao lado. Esta aceitação não pode estar desvinculada de um auto-exame profundo de nossa alma. Olhar para dentro de si é não somente ver os cantos escuros, as cavernas, mas é valorizar nossas potencialidades, encontrar os limites até mesmo do próprio corpo. Estamos vivendo em uma sociedade onde o Super-Homem/a Super-Mulher é o alvo para todos. A aceitação de nossos limites pressupõe que abandonemos esses mitos seculares. Não somos Deus. Somos pessoas com necessidades e potencialidade a serem desenvolvidas. Para que mudemos é preciso algo mais que uma decisão firme, é preciso ver a vida com os olhos da alma, ter esperança, acreditar que somos capazes. O risco de mudar é muito grande, mesmo sabendo que o fracasso pode acontecer; não o queremos, mas não podemos viver sem isso. Somos humanos e passíveis de erros. A nossa vida é um ato de fé. A fé não nos garante o acerto nem o êxito, mas sim o perdão e a aceitação. Aceitar-nos e aos outros é admitir a nossa falibilidade e abrir-nos para acolher o outro e a nós mesmos tal como somos ou estamos.
Uma ética que introduza um novo relacionamento é o que penso estarmos buscando junto aos nossos pacientes. E como são pacientes! Nenhum outro código de conduta pode dar conta desta ajuda. Pode regulamentar, estabelecer, etc., mas não dá conta daquilo que escapa, foge. Nossos pacientes são pessoas como nós que têm dificuldades, barreiras e pontes a serem transpostas e que também esperam poder compartilhar suas necessidades mais íntimas com alguém que escute. Não podemos ser ouvintes apressados, que dão uma resposta pronta para a dor. Aliás, a dor não aceita uma resposta imediata. Ela faz eco, dói, dói, dói. Também devemos ser pacientes.
Uma ética que exclui a religiosidade da vida do homem não pode escutar as necessidades mais íntimas da alma. Não podemos excluir a pessoa do Criador mesmo da mais sofrida alma; aliás, não somos diferentes, temos a mesma necessidade que muitos de nossos pacientes têm. O que muda é a forma, a maneira como preenchemos o vazio da alma. Tenho visto quanto as pessoas têm entrado nas igrejas, nas reuniões nos lares e, mesmo que haja só um grupo pequeno, elas se sentem sozinhas. A solidão delas me mostra que muitas vezes não há espaço para o compartilhamento das necessidades; falamos dos outros, mas não falo de mim. Tenho medo que me vejam assim! Uma vez fui procurado por uma senhora que me ouviu dizer que a família era idéia de Deus para que nós pudéssemos nos sentir aceitos. Ela me disse: Como isso é possível? Nunca tive uma família assim, não sei o que isso representa. Eu disse a ela que todos precisam de um lugar para o descanso da alma, onde a aceitação é o princípio fundamental. Mesmo na família há muitas diferenças, e elas têm que existir. Estas diferenças é que nos fazem viver juntos e podermos nos ajudar. Fiquei um instante em silêncio deixando essas palavras soarem dentro da alma dela. Olhei para os seus olhos e ela não disse mais nada. Quanto sofrimento havia ali pelas experiências passadas! Eu também fiquei calado.
Mas não posso terminar sem agradecer por essa enorme família que tenho, vocês do CPPC e do grupo de BH.
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Sérgio Silveira Cameiro é psicólogo