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O AFETO NA VIOLÊNCIA JUVENIL – PROPONDO CAMINHOS DE MUDANÇA, por Fátima Fontes

Artigos e Notícias

Quando dois anos atrás, apresentei no III Forum Social Mundial, a intervenção psicossocial que realizava com multifamílias que tinham seus filhos autores de ato infracional, me encontrava na metade de meu Mestrado em Psicologia Social na PUC/SP, e portanto em pleno processamento intelectual do impacto que esta intervenção provocava na vida dos envolvidos.
Neste 30 de Janeiro de 2005, já era Mestra em Psicologia Social e Doutoranda há um ano em Serviço Social PUC/SP, logo, muita coisa já havia sido ampliada à minha mirada de Janeiro 2003. Me senti muito mais segura acerca do que afirmava, e até esse momento, não havia avaliado o quanto, o desgastante trabalho de elaborar um texto dissertativo, tinha valido a pena, em termos de haver abalizado minha voz, agora de uma cristã acadêmica. Glórias ao Senhor por isso!

Pude então, com maior segurança discorrer sobre o percurso da trajetória desta intervenção com as famílias que têm seus filhos em conflito com a lei, e sobre alguns  dos pontos que gostaria agora também dividir aqui.

 

De que afeto estamos tratando?

Pensar e propor uma análise dar relações familiares de adolescentes em conflito com a lei, foi meu desafio de Mestrado. Seguramente o caminho percorrido para isso, precisará de uma leitura deste texto dissertativo, que desejo transformar em livro. Porém, gostaria de destacar alguns dos conceitos que apresentei às pessoas presentes ao Forum, acerca desta noção de afeto, criada pelo filósofo judeu, proscrito, do século XVII : Benedictus Espinosa. Tecerei, inicialmente, algumas palavras  sobre este autor.

Espinosa(1632-1667), nascido na Holanda, filho de pais portugueses sefaradis, refugiados da diáspora portuguesa na Holanda, em seus curtos 35 anos de vida, prescreveu o Estado Democrático Ideal, marcado pelo lema da “liberdade de se pensar o que se queira e se dizer o que se pensa” e pela separação prática do Estado e da religião, além de propor que tal Estado promovesse o bem-estar dos cidadãos e harmonia do governo. ( DAMÁSIO, 2004)

Tratava-se de uma revolucionária profecia( em pleno século XVII) da luta travada no século XX,  pelo “welfare State”, do pós Segunda Guerra Mundial, obviamente nos lugares em que ocorreu esta posição do Estado, e não foi o caso do Brasil. Esta proposta de um Estado legislador e executor de políticas do bem-estar-social, encontra-se hoje massacrada mundialmente, pelo neoliberalismo, que propõe um Estado mínimo,  que tende a se tornar um mero agenciador dos interesses do capital, em detrimento do bem-estar de toda a população, sobretudo daqueles postos à margem da sociedade, por este sistema perverso e injusto de apartação dos que não “podem consumir”, até porque pertencem ao “exército industrial de reserva”, sem acesso ao capital.

Não foi por pouco, portanto, que um homem com essa mentalidade, em pleno século XVII, foi expulso da Sinagoga aos 24 anos, foi enterrado numa Igreja Protestante, a Igreja Nova, na cidade de Haia, na Holanda e teve seu corpo “roubado” do túmulo, poucas horas após seu enterro! Fato este jamais esclarecido, talvez nos ajude um pouco a entender este mistério, a epígrafe de seu túmulo, colocada logo abaixo do seu nome: “CAUTE”,  que traduzido significa cuidado.

Apresentado o autor, compartilho suas idéias sobre os afetos: Espinosa(1973) preconizou e propôs que o poder dos afetos é tão grande que a única possibilidade de se triunfar sobre um afeto negativo, a qual ele intitulava de “paixão irracional”, seria requerendo um afeto positivo ainda mais forte, desencadeado pela razão. Trata-se portanto de um panorama de emoções guiadas pela razão e portanto nem guiadas por uma razão pura, nem por uma emoção sem razão!( DELEUSE, 1970)

Quando proponho uma intervenção psicossocial que facilite um desencadear de um afeto, não me reporto ao afeto ingênuo, de beijos e abraços somente, de água com açúcar, às vezes chamado de “afetividade da hiena”, que ri e não sabe do quê, mas aproximo-me da proposta da professora Bader Sawaia(2003) para quem os afetos são espaços da vivência da ética, potencializam o agir em prol da necessidade de liberdade.
Explicita então Espinosa(1973) as seguintes noções acerca do afeto:

– Afetos são os estados físicos do corpo pelos quais a potência de agir deste mesmo corpo é aumentada ou diminuída, favorecida ou impedida a partir dos encontros interpessoais.
– Espinosa reconheceu três tipos de afetos primários: a alegria, a tristeza e o desejo e outros se acrescentam como desdobramento desses: amor, ódio, esperança, medo, estima, desestima, gratidão, etc.
Também tomei para minhas análises, alguns dos estudos criados por Lev Vigotski(1896-1933), sobre os afetos (também ele, bebeu da fonte de Espinosa),  sendo ele, um Psicólogo russo, também judeu, considerado como um cientista revolucionário, que morreu precocemente, aos 37 anos, e que teve suas obras condenadas na União Soviética por  cerca de 30 anos. Destaco aqui, três de suas proposições nesta temática:

– Os afetos têm uma base fisiológica,  integram-se à linguagem e ao pensamento, são um fenômeno privado, mas cuja gênese e conseqüências são sociais (Vigotski, 1999)

– Os afetos são construídos historicamente e se alteram em meios ideológicos e psicológicos distintos. (Vigotski, 1999)

– Os afetos podem ser alterados, caso as conexões iniciais que os produziram se modifiquem. (Vigotski, 1999)
Utilizando-me de toda esta conceituação acerca dos afetos, proponho então, para as famílias que tem seus filhos em conflito com a lei, assim como também para os próprios adolescentes, uma intervenção psicossocial Sociodramática, que possa potencializar seus afetos positivos a partir dos bons encontros, e das novas conexões afetivas.

 

Que referencial de família estamos utilizando?

Apresentar esta proposta interventiva, prescinde que se explicite os vários ângulos pelos quais percebo e contextualizo esta família de quem me proponho a cuidar e pesquisar, e o farei de uma forma esquemática, uma vez que objetivo neste artigo  compartilhar os elementos contidos na apresentação do Forum:

– Família desnaturalizada, inserida na cultura e historicamente construída.
– Família, locus do homem para “tornar-se homem” a partir dos pilares: biológicos, capacidade auto-definidora e consciência de ações.
– Família, entendida em sua práxis ético-política
– Família, a grande mediadora entre os indivíduos e a sociedade
– Família e sua importância para adolescentes brasileiros autores ou não de atos infracionais ( várias pesquisas assim atestam).
– Família:  questões de justiça e políticas públicas.

Ampliarei um pouco as questões de justiça e políticas públicas. É importante que se ressalte o fato de que nos últimos anos, temos assistido  a um certo “familismo”, ou seja ao uso  da família como uma estratégia para o desenvolvimento e a eficácia de políticas sociais. Muito se tem debatido sobre os riscos e equívocos presentes em tal proposta, uma vez que sobre a família incidirão responsabilidades, que muitas vezes, ela será incapaz de atender, devido às suas necessidades e precárias condições de organização e recursos. Frente a isto, mais uma vez, ela tenderá a ser “culpabilizada” por todos os fracassos nos programas sociais aos quais esteja vinculada.

Importante também se torna apresentar alguns elementos acerca da família empobrecida, que tem seu filho adolescente em conflito com a lei:

Ela vem sendo culpabilizada ao longo dos códigos de menores, e até hoje ainda é muito humilhada e desrespeitada, em alguns contextos de Justiça, por alguns operadores da lei.

Apresenta-se vulnerável e fragilizada, como nos apresentam várias pesquisas
(ASSIS,1999; FONTES, 2004) acerca do perfil desta família:
– Eram famílias fragilizadas inicialmente pela pobreza e exclusão social a que estavam expostas, o mais das vezes isoladas do amparo social construtivo e do mundo, que existia para além dos domínios dos sem posse.
– Eram famílias fragilizadas pelas seqüelas emocionais e financeiras fruto de separações dos pais, às vezes pela ausência da mãe no lar, com algumas apresentando sinais de instabilidade emocional, nos cuidados com os filhos (causa de agressões físicas e emocionais).
– Eram famílias pródigas em históricos familiares de doenças e dependências às drogas e ao álcool.
– Eram famílias que contavam em seus históricos, com freqüentes envolvimentos dos membros das famílias em atos infracionais.
– Eram famílias fragilizadas, também, pelo histórico familiar de violência sofrida, em que se incluía: suicídios, irmãos carbonizados, acidentes de carro, espancamentos e assassinatos.

Porém, também é visível há alguns anos, o fato destas famílias estarem buscando espaços políticos de cidadania e direito, em associações, aonde buscam a partir e em meio a todos os seus dramas vividos, se fortalecerem como “sujeitos de direito”, com uma consciência política de sua situação e do caminho grupal da dignidade e conquista relacional. Exemplos destes movimentos são, a AMAR – Associação de Mães e a Amigos de Crianças e Adolescentes em Risco( SP – capital) e APAR- Associação dos Pais e Amigos dos Adolescentes em Risco, de São José do Rio Preto, além de outras pelo Brasil.
Que intervenção propomos?

Como meio de potencializar os bons afetos entre as famílias e seus filhos autores de ato infracional, a partir de novas conexões afetivas, propõe-se uma intervenção psicossocial com multifamílias, calcada na Teoria e Metodologia Psicodramática, intitulada de Sociodramas Tematizados. Sociodramas são sessões abertas de Psicodrama, focadas nas relações sociais, intergrupais.

Os temas propostos em número de seis, procuram contemplar as questões mais freqüentes observadas nas trocas familiares, e que muitas vezes se constituem fonte de conflito nessas relações, e foram os seguintes:

– a família que somos, a família que queremos ser;
– a família produzindo afeto e respeito;
– a família que cuida, estabelecendo limites;
– a família que cuida, acolhendo as diferenças;
– a família que cuida, aprendendo com outras famílias;
– a família que cuida, ensinado valores que edificam.

Como o espaço concedido no Forum para esta apresentação, foi o de três horas,  tornou-se possível realizar com o grupo presente, uma experiência de grupo( tal qual o proposto com as multifamílias), com o tema:” A família que cuida estabelecendo limites”.

Preciosa experiência, rendeu muitas falas compartilhadas, que expressavam a gratidão pelo que haviam vivido; a confirmação de lugares vividos, pelos participantes e suas famílias e não faltou aquela pergunta, sobre a possibilidade de se estar fazendo uma proposta que talvez traga “novos sofrimentos” aos que aprenderem a se afetar positivamente, ente outros depoimentos .

Esta fala sobre os riscos do sofrimento, serviu de mote de fechamento do trabalho, reforçando mais uma vez a desidealização das relações interpessoais, e ao inquirido acima, por um dos presentes, respondi assertivamente, sim, qualquer mudança vivida pode acarretar novos sofrimentos, porém também novas alegrias, afinal o sofrer e o alegrar-se são condições experimentadas por quem está em relação, e precisamos aprender ou reaprender, urgentemente, a “suportar” as dores e os sofrimentos ocasionados pelo viver, tanto quanto a produzirmos alegrias interrelacionais!
Considerações finais

Ao final do trabalho, comentei acerca da força mutantis desta proposta, que foi demonstrada a partir das análises feitas na pesquisa de Mestrado(FONTES,2004), tendo por base a participação efetiva e histórias de vida de duas famílias  e seus filhos autores de ato infracional, que cumpriam a medida Sócio-Educativa da Liberdade Assistida.

Com estes resultados, pode-se perceber tanto a força dos afetos nestas famílias, como uma possibilidade de interromper a prática infracional de seus Adolescentes em conflito com a lei, quanto a fragilidade sócio-política às quais estão expostas.

Houve, então, um convite, junto aos participantes do trabalho, a que ampliassem suas percepções acerca das famílias que têm filhos em conflito com a lei, no sentido que se possa compreender que elas precisam ser protegidas para protegerem, através, sobretudo, de mecanismos de ampliação das políticas sociais que viabilizem essa proteção:

– Na área da Saúde Mental
– Nos mecanismos de amparo e proteção social
– Na ampliação, efetivação e divulgação da rede social
– Na criação de reais oportunidades de inserção no Mercado de Trabalho
– Na disseminação de uma cultura respeitosa entre as diferentes formas de se ser família, em qualquer condição e camada social a que se pertença.

BIBLIOGRAFIA

ASSIS, S. G. Traçando Caminhos em uma Sociedade violenta: a vida de jovens infratores e de seus irmãos não infratores. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1999.

DAMÁSIO, A. Em Busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

DELEUSE, G.  Espinosa e os Signos. Porto: RÉS Editora Ltda,1970.

ESPINOSA, B. Pensamento Metafísico, Tratado de correção do Intelecto, Ética, Tratado Político, Correspondência. São Paulo: Editora Abril, 1973.

FONTES, F. C. C. A Força do afeto na Família: uma possibilidade de interrupção da prática infracional de Adolescentes em Liberdade Assistida. Dissertação de Mestrado em Psicologia Social, PUC/SP, 2004.

SAWAIA, B. B. Família e Afetividade : a configuração de uma práxis Ético-política, perigos e oportunidades. In : ACOSTA, A. R. e VITALE, M. A. F.( orgs.) Família : Redes, Laços e Políticas Públicas, São Paulo: IEE/PUCSP, pp.39-50., 2003

VIGOTSKI, L. S. Teoria e Método em Psicologia. 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 1999.
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Fátima Fontes é Psicologa Psicodramatista

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