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MOVIMENTO SOCIAL E CULTURAL HIP HOP, por Angele Bidone Lopes

Artigos e Notícias

Uma alternativa de proteção social a adolescentes
em situação de maior vulnerabilidade social.
Um olhar sobre a questão social:
Aqui em Porto Alegre tem se tornado comum a presença de crianças fazendo “malabarismos” na frente dos carros, quando fecham as sinaleiras. São breves “shows”, realizados por crianças pequenas, na tentativa de ganhar alguns trocados. A cena é tocante e peculiar: utilizam tochas de fogo para dançar, sobem umas sobre as outras formando uma “torre humana”, utilizam laranjas para mostrar habilidade.
São crianças denunciando que “alguma coisa está fora da ordem”, como expressou Caetano. Naquele momento, percebe-se que alguém não está cuidando delas – não há família, nem sistema público nem uma pessoa da sociedade que possa ser continente de suas necessidades.
Essas crianças encontraram uma alternativa, e é isso que me toca. Elas estão ali, lutando com arte por sua sobrevivência, e ao mesmo tempo estão expostas, sinalizando as dificuldades sociais que imperam em nosso meio.
Após refletir sobre essa situação, duas conexões me ocorreram: a primeira foi a lembrança do artigo 4° do Estatuto da Criança e do Adolescente, que versa sobre a responsabilidade que todos temos em relação às crianças. Lembro de como o primeiro contato com esse artigo exerceu um impacto sobre mim, pois costumamos atribuir a responsabilidade desse cuidado/envolvimento ao Estado, “esquecendo” que podemos contribuir fazendo algo concreto por elas. Lembrei muito, também, enquanto planejava o texto, de duas intervenções de Jesus, que inspiram o trabalho:
“Deixai vir a mim os pequeninos, não os embaraceis, porque deles é o Reino de Deus” (Mc.10:13-16).
“…trazendo uma criança, colocou-a no meio deles e, tomando-a nos braços, disse-lhes: Qualquer que receber uma criança, tal como esta, em meu nome, a mim me recebe…” (Mc. 9:36,37)
A cena das crianças no semáforo infelizmente logo será encarada por muitos como parte da paisagem urbana. Entretanto, o objeto da minha pesquisa foi o jovem da periferia, e citar o exemplo das crianças aqui tem a intenção de chamar a atenção para um ponto: a diferença do tratamento dado à criança e ao adolescente que estão na rua.
A criança de rua quando não é olhada com indiferença, o é com compaixão. As cenas descritas acima geralmente são presenciadas com um misto de surpresa, simpatia e dó. Já o adolescente que está na rua, via de regra é “olhado” de forma desconfiada, recriminatória ou hostil. Ele deveria estar trabalhando. Mas nesse mundo competitivo no qual sua preparação se deu na escola da rua, salvo raras exceções, como entrar no mercado de trabalho?
O ponto crucial que vejo é que poucas iniciativas são dirigidas à assistência e preparo dos adolescentes para atividades educativas ou profissionalizantes. E adolescentes e crianças desassistidas acabam, muitas vezes, repercutindo em sofrimento e ameaça à sociedade como um todo, como reflexo do sistema de desigualdades que os gerou.

O Movimento Hip-Hop
e os adolescentes

Minha pesquisa foi o resultado da monografia final do curso de Psicologia e teve origem quando fui estagiar em um Centro Comunitário, na periferia de Porto Alegre, cidade na qual resido. Nesse Centro, reunia-se um grupo de adolescentes que chamou minha atenção imediatamente pela determinação, convicção na força do grupo e vontade de crescer em vários aspectos, percebidas em suas conversas e reuniões. Eram os participantes do Movimento Social e Cultural Hip-Hop, os quais fui designada para acompanhar.
Naquela época, eu tinha uma vaga idéia do que pudesse significar  hip-hop: com certeza deveria ser um estilo de música… À medida que fui acompanhando o grupo e participando de seus encontros, aprendi que se tratava de um movimento, composto por jovens que se reuniam para realizar alguma forma de arte, tendo uma forte consciência política e social por pano de fundo

A pesquisa:
Um aspecto  que me moveu a pesquisar o Movimento foram depoimentos e músicas que ouvi dos componentes a respeito da modificação positiva que a participação nele imprimiu em suas vidas. Paralelamente, percebia um grande “potencial de saúde” no Movimento, como o caráter anti-drogas e anti-violência, e senti necessidade de comprovar se o ele surtia efeito no comportamento dos adolescentes e em que nível isso se dava.

 

O objetivo central, então, foi verificar se o Movimento poderia ser considerado uma alternativa efetiva de proteção social para adolescentes que se encontravam em situação de, teoricamente, maior vulnerabilidade social. As questões norteadoras objetivaram investigar se o envolvimento no mesmo produziu alterações em comportamentos auto-destrutivos como o uso de drogas e de violência, e também se o Movimento contribuiu para o aumento ou desenvolvimento da capacidade de resiliência dos adolescentes. Essa capacidade é descrita por autores como Célia e Souza (Risco e Resiliência, 2002) como a capacidade inata ou construída de resistir a determinados riscos como a adversidade e o estresse, ou de recuperar-se de um dano causado por um risco. Autores como Capuzzi e Gross (Youth at Risk ; a prevention resource for Counselors, teachers and parents. Alexandria, VA: ACA, 2000) citaram a auto-estima como uma característica central dos adolescentes resilientes.
Características e História
do Movimento Hip Hop  

Os elementos artísticos que constituem o Movimento Hip-Hop são a música (rap), que vem do inglês, significando “ritmo e poesia” (rhythm and poetry), a dança (break) e a expressão gráfica, caracterizada por pinturas, desenhos e escritos realizados em paredes autorizadas e grandes telas. Essa técnica recebe o nome de grafitti, revelando grande destreza e características próprias como a forma das letras que apresentam.
Ao estudar as raízes do Movimento Hip Hop (originado na Jamaica, nos anos 60, fortalecendo-se nos EUA, no bairro do Bronx), tive a informação de que a dança “break” não buscava apenas expressar movimentos inusitados, mas originalmente constituiu a expressão de protesto e inconformidade frente à Guerra do Vietnã e a situação das pessoas que dela voltavam mutiladas. Por essa razão, os movimentos da dança são “quebrados”. Os rodopios que presenciamos os jovens habilidosamente realizarem no solo buscavam reproduzir os helicópteros da guerra, sendo um apelo ao fim da mesma. Hoje, além do entretenimento que também ocorre, refletem a inconformidade com a situação social e suas dificuldades.
Convivendo com o grupo, percebi que a arte tornara-se canal de expressão dos conflitos, tristezas e angústias da população jovem que integra a periferia e enfrenta as mesmas dificuldades. Através do movimento, os jovens adquiriram diversas formas de simbolizar e expressar seus sentimentos, como a inconformidade e a agressividade. Assim, as atuações foram minimizadas pelo adquirir de diversas formas de expressão simbólica. Essa constatação pode ser melhor ilustrada por um trecho de um  rap cantado por eles, no qual fica claro a utilização da letra da música para expressar a agressividade:
“ Brincando com as palavras, eu sou o Jota.
Não, não tente me enganar, não sou idiota!
Minha arma é certeira, uma pá de rima.”
Através das reuniões, os jovens criaram uma rede social na qual partilhavam suas  dificuldades e encorajavam-se mutuamente. O grupo também realizava um resgate dos líderes negros da história e conversava sobre questões raciais. Os posicionamentos anti-racismo, drogas e violência foram aspectos bastante valorizados.
Muitos jovens começaram a realizar atividades de ajuda a suas comunidades de origem, como levar o rap para as escolas e incentivar as crianças a não se envolverem com drogas. As escolas têm solicitado os oficineiros – ou educadores sociais, como eles têm sido chamados – por terem evidências da contribuição positiva do grupo.

Resultados da pesquisa:

Os jovens revelaram nas entrevistas benefícios em participar do Movimento como o encontro de um objetivo de vida; o desenvolvimento da auto-estima por, entre outras razões, participar de atividades artísticas; a apreensão de atributos positivos como “garra” e vontade de melhorar sua condição de vida. A identificação com líderes da raça negra, juntamente com o convívio com o grupo possibilitou o resgate de uma identidade racial positiva, o que mostrou-se extremamente importante. Os comportamentos de risco, as atuações como o envolvimento com drogas e comportamentos violentos apresentavam-se minorados ou mesmo extintos nos integrantes do grupo, após sua participação no Movimento. As entrevistas comprovaram que o Movimento contribui para a capacidade de resiliência dos adolescentes.

A apresentação do trabalho
no Forum Social Mundial

Durante a apresentação do trabalho no Fórum estiveram presentes alguns jovens do Movimento, que puderam trocar idéias e mostrar ao vivo sua produção. Antes de um grupo começar a apresentar uma música sua, uma menina que o integrava pediu a palavra e contou, bastante emocionada, que desde que conheceu o grupo – há três anos – e passou a cantar e participar das reuniões, não havia mais sido internada, o que antes acontecia anualmente. Ela passou a ter um local de pertencimento importante. Definitivamente não defendo aqui uma postura anti-hospitalização, pois sem dúvida em muitos casos é o procedimento mais indicado para que a pessoa receba os cuidados necessários e possa reestruturar-se. Esse depoimento está reproduzido aqui para refletirmos sobre como muitas vezes são alterações aparentemente simples na rotina de uma pessoa que produzem grande diferença no resultado, como essa adolescente que encontrou seu grupo e sentiu-se acolhida, reconhecida e incentivada em  habilidades que descobriu possuir.
Um adolescente também relatou que esteve na FEBEM de SP e lá conheceu o movimento Hip Hop. Identificou-se com a filosofia do mesmo e quis dar continuidade, ministrando oficinas nas escolas, mas essas não deram oportunidade por ele ser um ex-interno. Expressou a desmo-tivação que sentiu e as dificuldades que atingem um adolescente que sai dessa instituição.
Propostas Práticas

 

A partir de alguns dados da pesquisa e do depoimento na oficina, percebemos que:
1)Faz-se muito necessário que haja, após os adolescentes saírem da FEBEM (atual  FASE),  uma rede social constituída entre essa e instituições que os acolham, oferecendo alternativas construtivas como o ensino de uma profissão, a fim de que não reincidam no caminho do crime;


2) Seria muito importante que essas instituições cuidassem da parte emocional dos jovens, possibilitando que eles encontrem um espaço de fala e expressão das suas dificuldades, o que seria estruturante, como se mostrou no Movimento Hip-Hop. Tendo essa oportunidade, poderiam encontrar seu caminho de forma mais duradoura e consistente, transformando, fortalecendo e redefinindo, dentro do possível, suas bases emocionais, assim como ocorre no processo psicoterapêutico  eficiente;


3) Como nossa querida amiga e colega Fátima Fontes expressou em sua participação no Fórum, os grupos, muitas vezes, têm o poder de curar e resgatar as pessoas, fazendo-as descobrir talentos, qualidades e sentimentos que desconheciam. O contato com o Movimento, ter presenciado o relato da Fátima, o trabalho do Semear, lembrando ainda dos grupos que se formam nas igrejas, tornaram mais uma vez muito clara a importância da dimensão comunitária, em suas diversas formas, no processo de fortalecimento e restabelecimento da saúde integral do ser humano.

“ Somos todos anjos de uma asa só e só podemos voar quando abraçados uns aos outro”.
Luciano de Crescenzo

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Angele Bidone Lopes é Psicóloga Clínica e membro do CPPC em Porto Alegre-RS                                                                                                                   angelelopes@globo.com

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