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MOISÉS: O DEUS DOS 40 (E 20 DO CPPC), por Karin Wondracek

Artigos e Notícias

É com muita emoção que penso nestes 20 anos passados. Lembro do contato inicial com CPPC como estudante, cheia de ideais e interrogações. Senti naquela vez que me acolherem com ambos. E os anos se passaram com muitas experiências marcantes neste tempo – houve crises e crescimentos, numa dialética conduzida pelo Senhor Deus.
E agora, para onde vamos?
Podemos ver certa estabilidade na nossa vida, depois de todo este tempo. Estamos adultos, temos nosso saber e nosso trabalho articulados, as questões de fé e psicologia estão mais harmonizadas dentro de nós. E muitas vezes estabilidade dá margem a outro e, o de estagnação
E foi neste contexto, com medo deste segundo “e”, que comecei a separar mais tempo para me aprofundar na palavra de Deus. E me deparei com a história de Moisés, não o Moisés da infância, mas o Moisés que tem a nossa idade.
Neste momento de vida (Êxodo 3), ele está com família formada, cuidando do seu suprimento material ao apascentar as ovelhas do sogro. E no meio deste cuidado das ovelhas, quando vai buscar pasto do outro lado do monte, Deus fala com ele – do meio da sarça, um inço que não serve para nada – do meio do “nada importante” Deus o convoca para mudar o rumo da vida. Pede para se despir das velhas proteções, as sandálias, e sentir a presença de Deus com a nudez do pé. Deus quer dar uma outra base, outro chão, formado por Ele mesmo.
Aí vem a primeira questão – será que deixamos que Deus nos fale através dos inços do cotidiano? Ou nos conformamos com a vidinha de somente dar de comer a ovelhas sempre do mesmo lado, do lado material ?
Interessante que Deus se apresenta como o “Deus de teu pai”(3,6) – a primeira marca que recebemos de Deus é pelos pais, quer seja os biológicos ou os da fé. Mas nesta idade já está na hora de começar a ter as próprias vivências e não só se basear na herança recebida.
E quando Deus diz que viu a aflição do seu povo, e por isto escolhe Moisés para libertá-los, penso que Ele também está dizendo que vê a aflição do que dentro de nós e ao redor de nós está escravizado, entregue ao amassar tijolos do cotidiano, sem perspectiva de vida integral.
Talvez seja um clamor que nem escutamos mais, absortos no cuidar as ovelhas de cada dia. Mas Deus conhece o clamor do povo, diz a Bíblia, isto não lhe passa despercebido por isto convoca Moisés.
E qual a reação de Moisés? v.11: “Quem sou eu para fazer isto?”
QUEM SOU EU? A velha tentativa de se usar como referência. Nesta idade muitas vezes nos detemos a medir as coisas de acordo com nosso tamanho, achamos que já nos conhecemos o suficiente, ainda mais como PROFISSIONAIS de ajuda.
A resposta de Deus é paradoxal – Ele não afirma nada a respeito de Moisés, não constrói o seu eu, não lhe fornece autoimagem brilhante para que vá. Deus vai afirmar o essencial a respeito dEle mesmo – v.12: “Eu ESTOU contigo”. Há uma passagem do SER ALGO para o ESTAR COM. Nunca, na história que se segue, vai ser importante o que Moisés seja, mas sempre vai haver esta dimensão de remeter ao ESTAR JUNTO de um Deus que É. É nesta linguagem do SER que Deus manda Moisés se revelar ao povo: v.14,15: “EU SOU AQUELE QUE SEREI”, este é o meu nome para sempre, o nome do Deus de vossos pais.

Interessante esta dialética de atividade-passividade – Deus manda Moisés agir, mas totalmente baseado na capacidade do EU SOU. Talvez por isto escolha alguém com dificuldade de fala – isto impedirá Moisés de confiar demasiado em si. Ele quer que através do conhecimento dEle possamos ter também outra visão de nós mesmos e das nossas capacidades, e dos pontos fracos. Nesta idade já temos suficiente conhecimento dos nossos pontos fracos, e a tendência é de fugir deles. Como reagiríamos a um chamado que exporá estes pontos ao público? O Deus dos 40 é um Deus que nos tira do cotidiano, e nos chama ao deserto, à luta com o que escraviza, e para isto nos despoja do nosso saber que se dá bem com o que já funciona – Ele quer um culto num outro lugar dentro de nós – o lugar da libertação e também do nada: o DESERTO.
E quais os recursos que Ele põe na nossa mão?
Deus pergunta a Moisés: “O QUE TENS NA TUA MÃO?” Moisés responde: “uma vara”.
Novamente um paradoxo – é um símbolo de autoridade que também pode se transformar em cobra.
Cuidado com os símbolos de poder que Deus nos dá – podem morder e matar! Aprender a controlar também é um milagre de Deus! Transformar a cobra em guia é com Ele.
Quantas vezes, justamente nesta idade madura, se ouve de pessoas bem sucedidas que se deixaram “morder” pelos símbolos de poder em suas mãos. Confundiram, em linguagem lacaniana, TER O FALO com SER O FALO – um lugar impossível de perfeição, que só pertence a Deus. Desde o ano passado, no nosso Encontro Regional de Florianópolis em que recebemos um vaso de barro na despedida, tenho me perguntado o que significa “ter este tesouro em vasos de barro”. Novamente vejo um paralelo com a psicanálise, na medida em que conhecer o “Isso” que está em nós nos ajuda a torná-lo “Eu”. E ajuda a perceber o ataque da pulsão de morte, do desligado, do arcaico não domado dentro de nós que por vezes irrompe na forma de pecado, de erro de alvo.
Isto fica ilustrado pelo que acontece à mão de Moisés, quando a põe no peito e ela fica leprosa. É de dentro de mim que vem a doença, que pode me impedir de fazer a minha parte. E Deus cura esta mão, é a mesma mão de Moisés que mais tarde tanto vai mostrar de Sua grandeza.
Deus pode usar mais o que é gago e pesado em mim do que o fluente, pois isto revela a Sua grandeza e não qualquer pretensão minha. Submeter a Ele todas as coisas: o bastão, a mão leprosa e a gagueira – o que é forte, o que é doente e o que é defeituoso.
Ë o contato com a gagueira, com a lepra, e com a cobra que possibilita o preparo para o deserto. Deus diz “Eu serei com tua boca e te ensinarei”, e além disso envia Arão para auxílio. É o trabalho em grupo de Moisés e Arão que torna possível a missão – lição para o Corpo bem articulado do CPPC também.
Mas outro paradoxo está para acontecer: o povo não quer sair após as primeiras resistências (Ex.4)- querer mudar significa lutar contra o feitor, que apesar de escravizar, é conhecido. Depois da jornada de trabalho há algumas cebolas e carnes, e isto basta para o “povo”. Também basta para nosso lado “povinho”, que se contenta com algumas comidinhas que disfarçam a escravidão do cotidiano.
E aí vem uma pergunta atroz: O QUE NOS ESCRAVIZA, AFINAL? O QUE NOS IMPEDE DE SEGUIR PARA O DESERTO, PARA NOVAS REVELAÇÕES DO EU SOU?
O Egito não foi sempre mau – foi o lugar de salvação nos primórdios do povo de Israel, quando vieram em busca de alimento, e foi lhes dada comida, terra, as melhores condições para viverem.
Penso que isto dá margem a metaforizar que muitas vezes somos escravos de coisas que já foram muito importantes, até vitais para nosso crescimento. Mas o que servia na nossa infância não serve mais na maturidade – esta é a proposta de Deus para seu povo – é preciso largar a paixão pelo oral, pelo alimento concreto infantil e se deixar levar para o deserto. Penso novamente na figura da árvore, que precisa deixar cair suas folhas e frutos para que estes apodreçam e se tornem adubo para uma nova floração.
QUAL É MEU EGITO?
Não está sendo fácil largar esta terra do infantil e ir para o deserto. Parece que é preciso sofrer algumas pragas para “deixar ir”. Podem ser meus sonhos infantis, a respeito de uma vida maravilhosa, sonhos que serviram de alimento para as primeiras batalhas e sublimações. Mas depois de um tempo podem ter me escravizado, virado até numa obsessão. Será que eu continuo a amassar barro para estes sonhos-faraônicos que me escravizam?
E o povo teve de ser preparado para largar o Egito. E como foi longo este preparo …só 40 anos! Nem o Faraó, nem o povo acreditavam neste Deus que os convocava. Interessante que Deus remete a isto, quando diz que “…sob o meu nome, o “Senhor”, não me dei a conhecer a eles.”(6,3b) E Deus continua: “Conhecereis que sou eu, o Senhor que sou vosso Deus: aquele que vos faz sair das corvéias do Egito.”(v.7) Corvéia – trabalho imposto e pesado. Como trabalhamos pesado para alimentar os sonhos da infância!
Por toda Bíblia este convite para conhecer mais a Deus é repetido, como em Efésios 1,17: “Que o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai a quem pertence a glória, vos dê um espírito de sabedoria, que vo-lo revele e faça conhecer verdadeiramente…”
Ele nos amou primeiro (1Jo 4,10), Ele quer que estejamos arraigados no Seu amor. É o perfeito amor que lança fora o medo – por isto o conhecimento de Deus e do Seu amor é fundamental: precisamos saber quem É este EU SOU.

O que é conhecer Deus pelo seu nome? As tribulações, as pragas e as libertações são uma forma de conhecê-Lo. Quem não o conhece pelo nome prefere continuar escravo. Como está o nosso conhecimento de Deus? Novamente, qual a imagem que temos de Deus a esta altura da vida? Passamos tempo suficiente na sua presença para que Ele se revele de outras formas a nós?
Ou seremos endurecidos como o Faraó, para quem só a linguagem da última praga, da morte do mais amado, convenceu?
Quantas pragas para que o coração amoleça e deixe a alma e o espírito sair do amassar tijolos inúteis para cultuar a Deus no deserto! É um convite para que eu abandone tarefas vãs – os tijolos para o Faraó do Egito – e me despoje, saia para cultuar a Deus.
Creio que maturidade do CPPC, maturidade na nossa vida é chegar a “deixar cair” – “let it go” aquilo que já serviu e agora “já era”. Também em termos espirituais, muitas vezes nos mantemos presos aos rituais escravizantes – o amassar tijolo – só para gozar umas poucas cebolas!
E Deus leva o povo ao deserto, no meio de uma mudança de costume, os pães sem fermento da pressa – algo novo para lembrar aos filhos. E ali começa a instituição do “Cordeiro” como salvação; o sangue do Cordeiro que livra os primogênitos de Israel enquanto os primogênitos do Egito morrem.
O nosso lado Israel, as primícias do que Deus gera em nós, é lavado pelo sangue do Cordeiro de Deus. Nosso lado “Egito” precisa morrer para que sintamos a grandeza do chamamento de Deus. É a graça de Deus, com o Cordeiro que tira o pecado do mundo – não nós, por nossas habilidades, nossa capacidade de amassar tijolos ou dourar cebolas – é Ele que tem de abrir o mar para que o encontremos no deserto.
Encontro no deserto – tenho pensado muito nisto, é o lugar dos extremos. Ali Deus leva o seu povo, e por uma rota mais longa para que não se arrependam e voltem para os tijolos. (13,17) São as voltas que Deus precisa dar conosco para nos mostrar Sua vida.
Como terapeutas somos diariamente confrontados com o sofrimento, com a escravidão da psicopatologia. Tanta exposição pode produzir calos nas mãos e nos pés. Será que ainda conseguimos tirar as sandálias e pisar na terra santa da presença de Deus?
Deserto, lugar onde a dimensão do tempo muda, e o silêncio do humano se instala.
Penso que se não dedicarmos tempo e silêncio para encontrar Deus – silêncio interno e externo , tempo interno e externo, nossa vida espiritual tende a se superficializar cada vez mais. Progredimos teórica e materialmente nesta idade, e espiritualmente?
Gostaria de desafiar todas as gerações aqui presentes a ouvirem o convite de Deus para a festa no deserto.

E agora pedes para que eu saia deste Egito
tão cheio de significado
e te encontre no deserto,
e me deixe conduzir a uma nova terra.

Senhor, aqui há barro, açoite,
mas também há cebolas e carnes
e o que me espera no deserto?
Como muitas vezes prefiro a escravidão do conhecido
ao caminho novo que me propões.

Só te conhecendo mais é que consigo me confiar
à tua nuvem e tua coluna de fogo
neste caminho à tua Canaã.

Pois por vezes a areia e o sol quente
me fazem esquecer do mel e do leite
que me prometeste.

Só com tua presença
que renova minha veste
alimenta minha fome
sacia minha sede

é que conseguirei ir até o fim.
será que podemos responder:
lançar fora o medo
e contar unicamente com o EU SOU
assim dá para largar as cebolas e as correntes do Egito
e entrar no deserto do Sinai.

Karin Wondracek

karinkw@gmail.com

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