MAL-ESTAR NA SEXUALIDADE por Karin Wondracek

– Artur, um rapaz de 40 anos, solteiro, que inibiu qualquer atração e prática sexual, depois que o pastor disse que sexo é só para o casamento.

– Nádia, senhora de 50 anos, que na sua adolescência ouviu nas conversas de amigas que a mulher que sente prazer ao se tocar está condenada a ser prostituta

– Marcos e Liana,  casal de namorados, faixa dos 25 anos, se amam, se querem, não podem casar por dificuldades financeiras, e estão se perguntando pela possibilidade de terem relações sexuais.

– Mariana procura ajuda porque seu marido a obriga a manter relações anais, alegando o versículo bíblico de que o homem é dono do corpo da mulher.

– Andréia, adolescente de 15 anos, preocupada com suas sensações intensas no namoro, procura orientação sobre a sexualidade.
Vou começar pelo mais fácil – os excessos:
Tanto um silêncio mortal quanto um falar com idéia fixa mostram a mesma coisa, nos lembra Freud: Do silêncio que condenava as pessoas à ignorância durante a vida conjugal à palavra que condenava a curiosidade e o gozo sexual – ambos mostram uma visão de mundo desvirtuada, onde a sexualidade e seu  controle assumiram importâncias que não lhes eram dadas.

Para Carlos Dominguez Morano , – a imagem de Deus que se ocupa dos detalhes da sexualidade humana deveria ser chamada de Laio , e não de Deus. Sim – pois é no nível edípico que a sexualidade é ameaça, e adquire o tom caráter pecaminoso por seus desejos de possuir o objeto proibido.

Jesus não se ocupou tanto de sexualidade nos seus discursos, falava da vinda do Reino de Deus e da nova que é boa e leve, sem se preocupar com moralizar estes aspectos.
Será que a preocupação com o privado da sexualidade indica uma perda de rumo do coletivo? De Deus-Javé, a divindade encolheu para Laio, o pai que retira o direito ao gozo dos seus filhos?

Se olharmos para nossos colegas psi que tem aversão ao religioso, isto não decorre principalmente das “barbaridades” que lhes foram ditas na área da sexualidade, em nome de Deus?
Luis Cencillo , religioso católico, lamenta que a igreja tenha colocado um jugo tão pesado sobre a educação dos jovens – de domínio, de autocontrole, de não-fruição da corporalidade, – jugo esse que deveria, isso sim, ser colocado sobre as pessoas maduras – estas, sim, deveriam ter controle dos impulsos, no sentido amplo e também explícito da sexualidade.
A. De que forma, então, interligar sexualidade e espiritualidade?
Alguns ângulos para vislumbrar esta ligação:

1.  Nos encontros profundos de Jesus com a mulher samaritana; no acolhimento da mulher que ungiu os pés de Jesus e na pouca presença de normas sexuais nos discursos de Jesus, como com a adúltera, que não foi nem apedrejada com palavras: “nem eu te condeno; vai e não peques mais.”

2. Na concepção de sexualidade de Pfister: a sexualidade não é uma pulsão mais originária que outras – pulsão é um coletivo, que abarca desde o impulso para a sexualidade até a inclinação para a religião e para a liberdade. A natureza humana, na sua melhor acepção, abarca todas estas facetas. O ser humano é multiplamente constituído, em camadas sobrepostas que se interpenetram, nas quais os desejos mais primitivos se revestem de outros mais “elevados”. –  e vice-versa também!

3. Graças a Freud, podemos ver como a sexualidade sobe escondida também no púlpito, por exemplo, no impacto que um pastor sedutor quer causar através dos seus sermões e suas roupas.

Sexualidade não dimensionada também explica as “quedas” de pastores quando aconselham… bem como de analistas que não mantém a regra da abstinência.
B. Algumas questões práticas:

1. Podemos aprender com Freud a denunciar o excesso de repressão que provoca mal-estar, que leva à neurose, que leva à revolta contra tudo que tenha o tom religioso – a Igreja entra numa armadilha quando se vende como polícia dos bons costumes e não mais propaga a Nova que é boa – também para a sexualidade! É preciso ajudar a aceitar a pulsão sexual (Pfister)  – mas também não tomá-la como centro do viver, no sentido estrito.
Pfister já considerava que Freud auxiliava as pessoas a viverem o amor de forma mais próxima do Evangelho – por ajudar as pessoas a viverem sua sexualidade de forma sadia (psicologia).

Conforme Daniel Schipani, é preciso agregar à saúde a sabedoria – e ajudar as pessoas a viverem de forma sábia e não neurótica a sua sexualidade – olhando pelos referenciais culturais de cada um, mas também denunciando os estreitamentos feitos em nome de Deus.
2. Em âmbitos eclesiásticos – é preciso ponderar quando falar mais e quando falar menos. Mesmo com o temor de ser mal-interpretada, quero destacar alguns aspectos que defendo:

– Por uma retirada do aspecto dogmático da instrução sexual – educação sexual não tem o peso de salvação… Reino de Deus é mais amplo que corpo e sexualidade! Este é o reino de Laio, que incita à violência ou à repressão.

– Por um maior respeito à pluralidade cultural e também à pluralidade da cultura quanto ao sexual: Ex.: os noivos pomeranos mantinham deliberadamente relações sexuais antes do casamento para se livrarem do direito à primeira noite do senhor da terra.

– Questões de gênero – quer nos demos conta, quer não, o patriarcado está também presente no discurso eclesiástico – ao homem cabem mais direitos e menos sanções …

Jesus Cristo trouxe libertação para homens e mulheres, e isto significa direitos e responsabilidades iguais, direito ao gozo e ao corpo…direito ao corpo com ternura e erotismo, e que ambos sejam ajudados a reintegrar o estético juntamente com o ético.

– Resgatar a aproximação entre sexualidade e espiritualidade, como Carlos Hernández  e os místicos de todos os tempos nos provocam. Ou nossa espiritualidade continua “grega”, cindindo o corpo da devoção?

– Dar o devido valor à castidade – mas no seu sentido espiritual, mais próxima de um voto do que de uma norma moralista e controladora – ver nela um chamado a confiar em Deus antes de tudo.

– Colaborar na instrução sexual para todos, mas uma instrução que celebre a corporalidade e a criatividade humana como dádiva divina – a boa nova também para eros;

Ajudar a discernir o tempo “melhor possível” para cada experiência – este seria um dos caminhos com Andréia.

– Neste sentido, ajudar a promover depoimentos e testemunhos para as gerações posteriores, sobre a profundidade do vínculo conjugal que eleva a satisfação sexual – sexualidade com qualidade como contracultura à troca desenfreada que mais anestesia que excita.

– Esclarecer sobre abusos sexuais para menores e mulheres – isto também é Reino de Deus – às vezes, temos nos ambientes eclesiásticos o paradoxo de ficar controlando o corpo da classe média, para que chegue virgem ao casamento (talvez mais como valor de patriarcado?) e ser omisso nos abusos e maus-tratos em todas as classes, que ainda é mais forte nas camadas menos assistidas da população. Desta forma também deveria haver esclarecimento sobre os direitos sobre a honra, sobre o próprio corpo e o direito de dizer não – o caso de Mariana.
3. Desafios no âmbito acadêmico:

– Resgatar a profunda riqueza da herança judaico-cristã para a sexualidade, como nas histórias narradas e em Cantares, mostrando que a compreensão dualista mente-corpo não é a última palavra da riqueza da teologia bíblica.

– Usufruir das grandes contribuições que os estudiosos das questões de gênero podem trazer, e ressignificá-las para as questões da sexualidade e da corporalidade.

– Denunciar o abuso cometido, em nome da liberdade, na exposição precoce ao erótico de meninos e meninas – quantos de nós estão atuantes em comissão de menores e de direitos humanos?

– Denunciar a mercantilização do corpo feminino, não de forma moralista, mas de forma ética, promovendo outras formas de viver a feminilidade que não as induzidas pela mídia.

A simples repressão da sexualidade explícita muitas vezes induz à busca de satisfação nos modismos e no consumismo, mas não à vivência de espiritualidade no corpo. Este é o caso de muitas comunidades religiosas de classe média.
D. Alguns desafios para o âmbito da clínica da sexualidade:

– Não confundir seu espaço clínico com um espaço pastoral – em psicoterapia, a pessoa deve ter o direito de revelar fantasias e práticas, desejos de sonhos e de realidade.

Por vezes, isso significa ajudá-la a assumir a sexualidade com os cuidados necessários para não cair nas malhas do discurso repressor oficial – é necessário auxiliar cada um a assumir livre e responsavelmente o seu desejo.

– Desvelar manobras neuróticas encobertas por trás da racionalização religiosa – Este o caso de Artur. A hermenêutica da suspeita deve agir a favor de quem nos procura, e por isso também colocando sob dúvida o que seja apresentado como “dado” pela convicção religiosa.

Clínica não é espaço de encorajar farisaísmos, mas de desnudamento sincero dos desejos, para que estes sejam ponderados e direcionados para a dinâmica saúde-salvação.

– Auxiliar na instrução coletiva de saúde, principalmente sobre sexualidade – se Nádia tivesse escutado alguma orientação sobre a naturalidade do sexo, quantos anos de sofrimento poderiam ser poupados.
A clínica também pressupõe um trabalho sobre o terapeuta – tanto psicológico quanto espiritual: lá é o lugar onde mais aparecerá sua sexualidade inconsciente – o que está inscrito e bloqueado determina em grande parte o que escuta e pode trabalhar.

A clínica é o lugar da abstinência em nome do trabalho, que será mais fácil se houver um pacto de fidelidade com seu código de ética, com uma pessoa e com Deus.

O jugo mais pesado, como dito no início, é para pessoas maduras – tempo da consagração em todos os sentidos.

– Para aprofundar, algumas perguntas para quem é terapeuta: Como escuto os relatos da sexualidade

– excitação/ asco/ negação? Permito a transferência, sendo abstinente? Ou me nego a ocupar este lugar terapeuticamente … assumi-lo só será possível se as regras estão bem postas!

Como CPPC – um lugar que defende a saúde na sexualidade e a corporalidade como Dom divino – também é necessário fazer denúncias por ingerências de comunidades religiosas na vida privada – por exemplo, o voyerismo de pastores sobre jovens nubentes, mais próximo dos complexos pessoais do que da “sã doutrina”.

E.  A sexualidade do terapeuta

– Em termos de realidade – o que transmito? Para ser bom terapeuta e não satisfazer minhas carências na relação com o cliente, tenho buscado relacionamentos – sexualizados e sublimados – que supram minhas necessidades? Tenho levado estas necessidades para Deus, e me perguntado o que depende de mim?

– Como esta área foi trabalhada na minha própria terapia? Como estou com minha própria sexualidade? Busco uma direção espiritual que contemple estes aspectos também? O contato com seu próprio mundo pulsional leva a tornar-se mais humilde e menos julgador.

– Preciso me questionar se não estou buscando na sexualidade uma satisfação que seria de outra ordem – buscar no humano o que apenas o divino pode trazer. A partir da relação com Deus, fonte de água viva – já disse Jesus para a mulher samaritana de cinco maridos – posso me saciar, celebrar a satisfação e suportar as carências em todas as áreas.

– O “estrago” para um terapeuta cristão, por uma sexualidade mal administrada e não conduzida na junção com espiritualidade pode ser muito grande – pesará na sociedade,  na comunidade, perante cônjuge, filhos e clientes.

Um terapeuta precisa de boa terapia e de boa direção espiritual – com pessoas competentes e sábias, que também sejam humildes e não julgadoras, mas ministras da graça!

Mas, acima de tudo, saber que somos amados/as por Deus, não pelo que fazemos ou deixamos de fazer, mas porque somos Seus filhos! Se isto estiver “encarnado”, nossa ação terapêutica será ministradora de saúde e graça!

Karin Wondracek é psicóloga e psicanalista, mestra em teologia, professora na Escola Superior de Teologia em São Leopoldo. Membro pleno do CPPC.  karinkw@gmail.com