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INTERPRETAÇÃO PSICANALÍTICA DO CAPITALISMO¹, por Karin Wondracek

Artigos e Notícias

1. Limitações e alcances da interpretação psicanalítica

A psicanálise trata das raízes inconscientes do comportamento humano, e desta forma estabelece uma relação entre a história do indivíduo e a história dos grupos e sistemas sociais. Algumas ponderações iniciais para delimitar os alcances e também as recepções:

A psicanálise sabe que seus achados podem despertar resistência porque tocam em conteúdos sujeitos à repressão. Mas nem toda crítica a ela pode ser classificada nesta categoria.

A psicanálise corre o risco de ser reducionista na sua interpretação da realidade, e de psicologizar tudo². Por isso, a abordagem tem de ser feita no horizonte da interdisciplinaridade, sem desconsiderar, entre outros, os aspectos sociais, econômicos, biológicos, ecológicos e teológicos.

2. Alguns conceitos básicos de psicanálise – esboço³

– o ser humano não nasce pronto; ele é construído na relação com aqueles que cuidam dele. Nesta relação expressa sua ambivalência – amor e ódio – para com o outro;

– é um ser em conflito, entre a busca de prazer e as limitações da realidade, que englobam o outro e seus desejos, as leis, os limites da natureza;

– esta busca de prazer inicia autoeroticamente em zonas corporais: – oral; anal; fálica – aos poucos, o pequeno ser vai reunindo seus prazeres numa corporalidade total. Nos primeiros tempos, a pessoa que cuida do bebê não é reconhecida como ser humano, é apenas fonte de prazer ou de desprazer. (Ex.: seio da mãe)

– num primeiro momento de reunião das pulsões, a criança toma a si mesmo como objeto de amor – a esta etapa se denomina narcisismo;

– num segundo momento, o desejo passa a buscar o prazer no contato com o outro – primeiro este outro é considerando de forma parcial, no qual apenas as partes do seu corpo são visadas. Aos poucos, a criança passa a considerar o outro como um ser humano, o outro como alteridade que não está aí apenas para satisfazer os desejos, mas também é um ser que tem desejos e necessidades – este é o caminho até o amor maduro que engloba a busca de prazer sensorial com a capacidade de considerar a outra pessoa com empatia.

– a saúde se expressa, segundo Freud, na capacidade de arbeiten und lieben (trabalhar e amar). Trabalhar – que a curiosidade infantil pela sexualidade dos pais seja transformada em curiosidade pelo funcionamento do mundo e em criatividade para transformar este mundo. Amar – que o prazer do corpo infantil seja transformado em relações de ternura e em relações de amor sexuado, partilhando com outros seres humanos os ritmos de trabalho, descanso, procriação.

– No âmbito maduro, os conflitos entre o prazer e as condições de realidade são criativamente trabalhados, e fornecem a base para a invenção de novas formas de alcançar o prazer, e também de novas formas de diminuir a dor – todas as grandes conquistas da humanidade, segundo Freud, têm sua origem na evolução do desejo humano, na passagem da sensorialidade para a pesquisa, para a ética e para o amor.

– Nem todos conseguem percorrer este caminho ótimo e mais saudável de lidar com os conflitos – quando o prazer é muito intenso em uma fase, ou quando há muitas carências na satisfação básica, criam-se pontos de fixação – nestes, a pessoa pode permanecer e nem seguir, ou regredir a eles, quando as coisas complicam. Ex – comer quando se está ansiosa, limpar armários e gavetas quando preocupada, competir e ganhar jogos quando angustiada.

– A psicanálise compreende que todas as pessoas continuam com sua infância viva em estado latente, e quando os conflitos não são resolvidos, podem irromper no adulto na forma de sintomas neuróticos, que usam a realidade atual para gratificar impulsos primitivos, distorcendo o amar e o trabalhar.

3.  Raízes Infantis do capitalismo

Capitalismo: Sistema econômico baseado na legitimidade dos bens privados e na irrestrita liberdade de comércio e indústria, com o principal objetivo de adquirir lucro. Sistema social em que o capital está em mãos de empresas privadas ou indivíduos que contratam mão-de-obra  em troca de salário.4

Como ponto de partida da análise psicológica, surge a seguinte questão: O que acontece com a vida psíquica de pessoas e grupos que priorizam a busca do lucro? Que transformações o seu psiquismo sofreu para que já não lhes importem as necessidades da família nem dos empregados, e nem lhes doa exigir cada vez mais produção ou provocar a ruína de funcionários com trocas sumárias?

Para conseguir pensar desta forma, um sujeito assim constituído teve de operar umaregressão ao tempo em que a relação com o outro se baseava na capacidade deste fornecer prazer, e não era considerado uma pessoa inteira. Esta regressão assume formas diferentes nas três fases:

1.  Regressão à Fase Oral –  mamar – significa retirar do outro o que ele tem de precioso, sem considerá-lo como pessoa que também precisa de cuidados. Chamamos isto de relação autoerótica, onde o que importa é o prazer obtido, não importa como.

O psiquiatra Carlos Hernández comenta que a regressão capitalista à fase oral tem como pano de fundo uma distorção da passagem do seio para a mamadeira, isto é, quando a busca de satisfação já não é com a pessoa, mas com uma coisa. Se a criança faz dentro de si uma separação entre o objeto (mamadeira) e a pessoa (mãe) com quem o desfruta, está iniciado o caminho de apegar-se apenas à “coisa”, e, mais tarde, ao consumo de objetos. A relação que se estabelece é de “solidariedade mecânica” (a solidariedade dos objetos e das engrenagens), e a pulsão burocratizada se encontra em espelho com a sexualidade infantil parcial, aquela da propaganda.5 Os inícios da Revolução Industrial mostram estas cenas, nas quais os empregados e empregadas eram espoliadas e usadas até o final de suas forças, para então simplesmente serem substituídas por outras saudáveis. Próximo à oralidade está o narcisismo, isto é, o tomar a si como objeto de amor. A busca de lucro e de vantagem exacerba novamente este traço arcaico, no qual só se pensa em si e não no outro.

Aqui começa a importante função do limite e da lei para desenvolver na criança a noção de alteridade: a mãe que amamenta impõe o desmame e se mostra pessoa que tem limites e experimenta dores, e com isto ajuda seu filho a crescer e a experimentar culpa (saudável) porque machucou o outro – Desta forma, a fase oral sádica não progride porque desenvolve a culpa depressiva (culpa saudável), dois momentos fundantes para lidar com a agressividade.

Segundo Hernández, o impulso agressivo do bebê pode, com o limite imposto, transformar-se em imaginação criadora, em jogo e brincadeira (por exemplo: até ameaçar morder, mas então sorrir para a mãe e não fazê-lo). Se esta transformação não ocorre, o impulso agressivo se canaliza para o controle sobre as pessoas e a posse de objetos, para a busca de rendimentos mecânicos, e o afeto será gerenciado conforme o modo de relacionamento bancário: “o que eu lucro nesta relação?” O capitalismo, na sua pior versão, tem nesta frase sua mola-mestra.

Se seguirmos a Melanie Klein, psicanalista inglesa que teorizou sobre a vida psíquica dos bebês, o capitalismo representará uma regressão à intensa inveja que o bebê sente da capacidade materna, inveja que o levará a tentar se apoderar de todo bem, e nesta busca, achar que pode ter destruído a mãe.6 Por isso, o bebê experimenta culpa e desenvolve a capacidade de reparar criativamente o suposto dano. Em linguagem psicanalítica, pode-se dizer que as leis trabalhistas e os benefícios concedidos tentam coibir a criança regressiva que existe em cada patrão e em cada empregado, para que não se “devorem” sadicamente até a destruição mútua, mas garantam a sobrevivência de ambos. Com a atual globalização, estas leis protetoras estão sendo suprimidas, e já estamos assistindo ao “pior” do ser humano surgir e ser visto como valor de mercado.

2. O capitalista ferrenho também regrediu a outra etapa, na qual o prazer de acumularsupera o prazer de compartilhar. Este é o traço típico da fase anal – o prazer de reterdentro de si o produto do seu intestino, ao invés de soltá-lo na hora e no lugar adequado. Reter produz duplo  prazer, por um lado, o sentir acumulando “tesouros” dentro de si, por outro lado, um prazer sádico de privar o outro do que ele quer. Freud já estabeleceu a equivalência entre dinheiro e fezes,  de forma que o adulto sovina resgata o prazer sentido pela criança, no duplo sentido – acumular e frustrar o outro.

3.  Outra regressão estimulada pela atual globalização remete à fase fálica, onde o outro é visto como  rival – estes são tempos edípicos, onde o determinante é o tamanho para conseguir privilégios. Para a criança na fase fálica, só há lugar para um – aquele que detém o poder. Os tempos de submissão humilhante ao pai e aos irmãos mais velhos podem ser protagonistas de uma vingança executada pelo exercício do poder. Como exemplo, temos os chefes déspostas, temos o prazer de concorrer e de vencer que suplanta o valor da coisa em si. O capitalismo estimula a competição, isto é, estimula que a pessoa viva a partir desta fase regressiva de rivalidade com o outro e não experimente a inclusão e a colaboração.

Em resumo, o capitalismo se ancora em etapas primitivas do viver humano, e com isso corre o risco de empurrar as pessoas para atitudes infantis e narcisistas, atitudes que negam os direitos dos demais. A presença de leis nem sempre é suficiente para trabalhar a profunda disposição interna regressiva, presente em cada um.
Em termos éticos, vale a pena apenas comentar a crítica contundente de Cynthia D. Moe-Lobeda a respeito do poder debilitante de sistemas econômicos globais que desestimulam o amar e nos impelem a explorar a terra e o próximo.7

As propagandas – braço direito do capitalismo – são uma demonstração de que o ser humano continua vivendo suas fases primitivas: elas estimulam a regressão no ser humano, pois excitam justamente com a oralidade, a busca de prazer, o narcisismo, a acumulação e a rivalidade. As propagandas manipulam e forjam a mais-valia de certos produtos, ancorando-se nas carências irracionais da infância.

Carlos Hernández também comenta que chama a atenção que desde sempre o capitalismo desenvolveu um outro ângulo – o de apoiar ações que estimulassem a arte, a solidariedade e a religião. Pode-se considerar isto como aparição da pulsão criativa reprimida, que permite ao imaginário respirar outras dimensões que as do lucro e da exploração. Ali se faz presente a busca pelo belo e pelo espiritual, ali se busca saciar as fomes e sedes mais profundas do ser humano. Esta humanização se ancora na dimensão espiritual, na dimensão que une a todos os seres humanos.

4.   O papel do capitalismo na constituição do sujeito humano moderno

Gostaria, agora de inverter a abordagem, e tecer alguns comentários sobre os efeitos do capitalismo sobre a constituição do sujeito humano moderno – sujeito este que a psicanálise tentou compreender.

Poucas vezes nos conscientizamos de que o capitalismo forjou até o conceito vigente de família:

Grupo de pessoas vivendo sob o mesmo teto (especialmente o pai, a mãe e os filhos).8

Esta configuração – uma casa com pai, mãe e filhos –  fruto da revolução industrial, quando, pela primeira vez, a família nuclear teve de deixar seu clã e sua parentela para conseguir trabalho. Isto produziu profundas alterações nas relações, conforme detalhado pela psicanalista Nancy Chodorow9:

– O pai se encarregou sozinho do trabalho remunerado, e para isso teve de se ausentar por muitas horas de casa. Distante de casa e da família, este pai atrofiou sua capacidade relacional e generacional, e refugiou-se cada vez mais no trabalho e no consumo. O estereótipo desta realidade é o homem com jornal na frente da TV, alheio ao que sucede com filhos e com a esposa, incapaz de se comunicar sobre assuntos do lar; este homem é bem diferente do agricultor que trabalha a terra na comunhão entre filhos e esposa, ou do grupo de índios que caça em companhia dos filhos e vai treinando neles a habilidade para o trabalho, e que tem nos rituais da tribo os momentos coletivos de expressar a gama de emoções que acompanham a vida.

– A mãe da família capitalista teve de se encarregar sozinha da criação dos filhos, sem o auxílio do marido e da família de origem, e foi alijada do trabalho produtivo. Isto diminui sua auto-estima e sua identidade se reduz à função de reprodutora – “santa mãe”. Esta tarefa encontra seu fim na meia-idade, quando o sistema capitalista já não lhe concede lugar de produção, nem lhe concede valia longe da produtividade de trabalho remunerado. Este é um problema grande, merecedor de uma discussão em outro momento.

– Como conseqüência desta organização familiar, segundo Chodorow10, os filhos se apegaram muito mais à mãe do que nas gerações anteriores, e o pai passou a ser visto mais pelo valor simbólico na sociedade patriarcal do que pelo convívio direto.

– Segundo esta autora, os meninos sofreram uma forte cisão nas suas personalidades, pois, para se tornarem homens adultos, tiveram de abandonar o apego forte e exclusivo com a mãe por um pai distante e quase desconhecido. Para se desapegar da mãe, desvalorizaram a figura feminina, maior ou única fonte de afeto. Desta forma criaram umapseudoindependência, que consistiu em negar os sentimentos e substituí-los por objetos e atividades. Já não é importante amar e trabalhar, mas trabalhar e trabalhar.

– Para Chodorow, esta seria a causa da “frieza masculina”, racionalizada como norma na cultura ocidental, interpretada como doentia pela autora, ocasionada pela combinação de causas sociais e psicológicas.

– Esta pseudoindependência imatura torna a pessoa aberta para “fazer o que o outro quer”, o que fornece ao sistema capitalista o empregado ideal, que não trabalha vinculado a seus desejos mas toma os desejos do patrão como seus, e, alijado do seu mundo emocional, busca compensação na gratificação material – recebe dinheiro como substituição do afeto e da realização. Segundo Chodorow:

As mesmas repressões, negativas de afeto e apego, rejeição do mundo das mulheres e das coisas femininas, aquisição do mundo dos homens e identificação com o pai, que criam uma psicologia da superioridade masculina também condicionam os homens à participação no mundo do trabalho capitalista. … os trabalhadores desenvolveram uma disposição a trabalhar tantas horas por dia, e dias e dias seguidos, mesmo não precisando de dinheiro em certos dias.11

Por outro lado, a falta da vivência de afeto nos homens reaparece na busca das aventuras sexuais intensas, mas como estas são procuradas por sujeitos que sofreram uma cisão dentro do seu mundo afetivo, refletem esta ruptura, pois tentam manter apenas uma relação erotizada parcial (pornográfica), utilitarista e desvalorizadora da mulher como pessoa – a  mulher se torna objeto de consumo, e não parceira da intimidade.

Algumas linhas a respeito da mulher no sistema capitalista:  se permanece apegada à sua mãe, também se torna um ser humano desvalorizado por não estar na cadeia ‘produtiva’ – seu trabalho doméstico continua sendo o mais extenuante e o menos remunerado! Se, antes do sistema capitalista a mulher era valorizada por seu papel de dona de casa, esposa e mãe, um “retorno do reprimido” do status que gozava antes da era patriarcal, o capitalismo concluiu a obra de denegrir a mulher ao alijá-la do trabalho conjunto com o marido e ao atribuir valor apenas ao trabalho diretamente remunerado pelo capital.

No entanto, se a mulher não se identifica com a mãe que “apenas” cuidava da casa e dos filhos, e segue uma carreira profissional, pode incorrer, à semelhança do homem, em uma profunda cisão com sua identidade feminina – a produtividade não será ancorada na maternidade, mas na competitividade fálica – este o triste perfil das executivas “desnaturadas”, candidatas a enfartes precoces e outras doenças do trabalho. Candidatas também à vida em isolamento, na monolinguagem do trabalho.

Um outro caminho fálico que se abre à mulher é o histérico – exercer o poder através da sedução, através do tornar-se objeto de desejo, ou, na linguagem capitalista, objeto de consumo. Já não tem contato com seu próprio desejo, mas seu desejo é seduzir o outro, e, desta forma, ter “valor”. Este o objetivo das meninas-manequins, já apenas corpos e não mais seres inteiros, como retrata o poema de   Regis Bonvicino:

Seus dentes poderiam fazer merchandising
de maconha
embora façam de Colgate
dos lóbulos caem pingentes

to sell ou vender
seus pés não pisam em piso falso
e andam descalços
num clip ou num filme

(…)

não vende roupa
vende os lábios
os lábios vendem a boca,
cornucópia de si mesma

ouve techno e hip hop
digita no papelote
Não sabe escrever nada
Além do próprio nome12

Mulher sem nenhum saber, além do próprio nome… Regressão narcísica que, repetindo o mito, causa a morte da capacidade de amar e pensar.

Homens e mulheres insípidos de si e de encontros significativos… Chodorow escreve que desta forma se fecha o círculo que alimenta o capitalismo – trabalhadores alienados do seu eu se tornam potenciais consumidores que buscam na relação objetificada com pessoas e na aquisição de coisas a satisfação que não experimentam na intimidade. Esta alienação é habilmente explorada pelo marketing para atiçar o consumo, como relata David Shah, 53 anos, em  entrevista à Revista Época:

Marcas passam a ser como uma família – Elas tentam desenvolver um relacionamento com seu consumidor, construindo  um elo emocional. A marca toma o lugar do Estado, da Igreja, dando ao consumidor a mesma estabilidade emocional e as referências que ele procura.13

As marcas disfarçam o vazio existencial e relacional, e assim alimentam a objetificação do outro. Como derivação, vale a pena investigar o conceito de metrossexualidade, definição de masculinidade que já não se configura a partir da identidade de gênero em si, mas a partir da proximidade de metrópoles (por isso metrossexual), e das imensas possibilidades de cuidar do corpo e adquirir bens de consumo. 14

Para aprofundar em outro momento, agrego cinco pontos para consideração:

  1. A globalização, com suas grandes corporações, está tiranizando ainda mais a situação, e o surgimento de grandes líderes ou conglomerados corre o risco de repetir na história a função nefasta dos grandes líderes do passado – aos quais as pessoas entregavam sua consciência crítica em troca de proteção. A ameaça de desemprego sufoca a consciência e o afeto, e faz aceitar o jogo despersonalizante e tão danoso para a sociedade.15 Em termos de família, nunca houve uma geração de filhos tão abandonada à sua sorte, onde pais não têm mais condições de estar presentes, e com isto, segundo pesquisa da Universidade Colúmbia, abrem a porta para a sexualização precoce, a delinqüência juvenil e para as drogas16.
  2. Richard Sennett, no livro A corrosão do caráter,17 alerta para a profunda mudança no psiquismo dos trabalhadores com o novo capitalismo. O atual capitalismo não propicia a realização ambicionada e corrói no indivíduo as qualidades que criam laços entre os seres humanos e lhes conferem uma identidade sustentável. O novo capitalismo retirou o conceito de longo prazo da vida dos trabalhadores, produzindo a volatilização dos laços sociais atuais. Isto corrói a lealdade e o compromisso, e produz trabalhadores cada vez mais acuados em sua instabilidade. As incertezas criam sentimentos de deriva, falta de propósito no presente e no futuro. Para Sennett, este estado de coisas precisa ser enfrentado, pois “um regime que não oferece nem condições nem motivos para as ligações entre seres humanos não pode imperar por muito tempo”18.
  3. A agressão ao meio-ambiente também está relacionada com a depreciação do feminino – a “mãe” Terra foi desvalorizada pelo capitalismo, sendo exaurida ao extremo e tornada depósito de dejetos. O retorno do afeto e da consideração do outro também chega à consideração do meio-ambiente e todos os seus seres vivos.
  4. Vista com reservas pelos homens, está na hora de destacar que a contribuição das teorias feministas resgata o valor não só da mulher, mas também do homem como ser com direito ao afeto, ao relacionamento consigo e com o outro, e não apenas como força de produção19.
  5. À psicanálise falta fazer a “lição de casa”, refletindo sobre o quanto ela também se deixou seduzir pelas idéias capitalistas, por exemplo, tornando-se uma prática elitista – apenas para os que possuem recursos financeiros elevados – com a racionalização de que apenas os que pagam bem valorizariam o trabalho analítico. Que valor está embutido aí? Que reducionismo da condição humana acontece aí? De que forma as experiências dos pioneiros – análise para todos, gratuita e a preços módicos – tem de ser  contextualizada para sair da lógica do lucro? A outra parte do tema de casa psicanalítico consta de refletir se ainda conserva distância suficiente para analisar criticamente a visão de mundo individualista e competidora, própria da globalização, que afasta o ser humano da combinação harmônica do amar e trabalhar freudiano. Será que os substratos regressivos da personalidade, quando emergem dentro do atual sistema, ainda são assinalados e interpretados, ou já são tidos como “normais”?

5. CONCLUINDO

Os aspectos negativos podem chocar, e talvez quem não está acostumado com psicanálise possa estar se sentindo constrangido e incomodado. A intenção de Freud nunca foi de denunciar para humilhar, mas de auxiliar a lidar com os impulsos mais primitivos que subsistem em todos e que, se não conhecidos, dominam mortiferamente as relações humanas.

Não vale a pena apenas demonizar o sistema capitalista, pois a partir de Freud – e já bem antes, com a teologia cristã – sabe-se que o ser humano é ambíguo, e tem deturpado até o melhor sistema. Dar-se conta do desejo arcaico de “predar” o outro e retirar dele a condição humana é o primeiro passo para considerar a cada um como ser inteiro, portador de necessidades, sonhos, desejos e também de impulsos infantis. Para não tiranizar, é preciso crescer na humilhante confissão da tendência de elevar-se acima dos outros, o antigo “querer ser deus20“, tão presente no narcisismo que continua habitando capitalistas e socialistas. A única diferença é que o capitalismo abertamente estimula a regressão, enquanto que o socialismo exige do ser humano uma maturidade na partilha com o outro, mas nem sempre alcançada.

Oskar Pfister, pastor amigo de Freud, via na psicanálise um instrumento de libertação, pois, ao mostrar o “avesso” do comportamento humano, isto é, as tendências infantis, dava condições para, a partir dali, integrar o que fora reprimido e com isso tornar a pessoa, a família e as organizações mais voltadas ao bem comum. Também aqui “a verdade liberta21.

Espaços de reflexão como este Fórum fazem com que a pessoa e grupos inseridos no sistema capitalista se conscientizem de que sua vida consiste em mais ângulos que o do trabalho e do consumo, e, desta forma, abrirá espaço para “cerzir” a ruptura entre seu pensamento e sua vida afetiva, e poderá, através dos laços de amizade e de família, viver as dimensões que foram rompidas na infância. O trabalho em solidariedade estimulará a capacidade de amar.

Para encerrar, quero tecer uma relação interdisciplinar característica da epistemologia exercitada pelo Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos, a psicoteológica:

O teólogo Paul Tillich já expressava que a psicanálise nos auxilia a tomar contato com o potencial de queda e alienação que existe em cada ser humano, e, por conseguinte, se reproduz em cada sistema social e econômico. Por isso, é necessário contrapor a esta alienação da existência uma busca maior, uma busca de identidade que alcance mais longe que apenas o mundo material. Estou entrando na esfera da espiritualidade, que sempre foi um dos melhores contrapontos às doenças causadas pelas economias distorcidas.

Neste contexto, gostaria de fazer um paralelo entre a Lenda de Narciso – na qual este morre deslumbrado com sua própria imagem, e a Parábola do Rico Insensato, contada por Jesus Cristo no Evangelho de Lucas: ambas mostram que, quando o ser humano abdica de olhar para os outros ou para Deus e se volta para si e para o usufruto dos seus bens, está a serviço da pulsão de morte:

A terra de um rico produziu muito. Ele, então, refletia: ‘Que hei de fazer? Não tenho onde guardar minha colheita’. Depois pensou: ‘Eis o que vou fazer: vou demolir os meusceleiros, construirei outros maiores e aí amontoarei todo o meu trigo e meus bens’. E direi a mim mesmo: ‘Eis que possuis quantidade de bens em reserva para longos anos;descansa, come, bebe e te banqueteia’.
Mas Deus lhe disse: ‘Louco, esta noite pedirão a tua alma, e o que tens preparado, para quem será?’ Assim acontece àquele que ajunta tesouros para si mesmo, e não é rico para Deus23.

Jesus o chama de “louco”, pois perdeu a noção do que importa. Nem sempre haverá a morte física, mas morte do afeto, da ética, da vontade.

Uma triste versão moderna desta parábola aconteceu há pouco tempo, no incêndio de um supermercado no Paraguai, quando os filhos do dono ordenaram o fechamento das portas para que ninguém saísse sem pagar. Ninguém saiu mas também ninguém pagou, pois todos morreram sufocados pela ganância dos patrões que ordenaram e pela submissão sem crítica dos empregados que obedeceram. Este é um exemplo extremo do ganho que se torna perda, e que alerta para a loucura que consiste em se ater apenas ao lucro. Este é o risco maior: perder-se na contemplação dos seus bens e se isolar do outro e do divino.

À religião cristã também deveria ser mais recomendado terminar a “lição de casa”, pois sua teologia tem se travestido da lógica do lucro, do ganho, do mercadejar da fé. Faz falta uma expulsão dos mercadores do templo, como Jesus Cristo fez! Segundo o Evangelho, a lógica da vida está mais próxima de outra parábola, a do grão de trigo24 que, para viver, precisa se doar – e há testemunhos comoventes de instituições, empresas, cooperativas e até empresários que obtém a maior qualidade de vida através daquilo que doam – a dádiva toca uma dimensão mais íntima que a dos desejos infantis de posse. A dádiva toca o desejo maduro de gerar vida, e neste entramos em contato com a essência divina, que também se doou por nós. Segundo a teologia cristã, isto não é preceito para empregado, mas para patrão: “o maior seja aquele que vos sirva”. Este o antídoto contra a perda de visão que põe a perder capitalistas e socialistas.

PROPOSTAS SURGIDAS DURANTE A DISCUSSÃO NO V FÓRUM SOCIAL MUNDIAL:

  1. Despertar para a consciência crítica
  2. Ser vigilante sobre seus próprios impulsos e sobre o impacto da mídia
  3. Educar as crianças para a lógica da dádiva
  4. Conscientizar as pessoas para abdicarem do consumismo
  5. Promover ações que resgatem a auto-estima independente da posse, especialmente entre desempregados
  6. Aperfeiçoar as relações de gênero
  7. Acreditar, vigiar, unir-se, para resgatar os valores humanos
  8. Denunciar a mercantilização do Evangelho e suas falsas promessas consumistas.

1Oficina do Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos, no V Fórum Social Mundial, janeiro de 2005. Uma primeira versão foi proferida como  palestra na reunião-almoço do GEELPA, (Grupo de Empresários Evangélicos Luteranos de Porto Alegre), em setembro de 2004.
2A respeito do risco da psicologização, ver D SCHIPANI, O caminho da sabedoria no aconselhamento pastoral, cap. 4. São Leopoldo: Sinodal, 2004.
3Para compreensão maior dos eixos da psicanálise, sugere-se a leitura dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), ou das Cinco lições de psicanálise (1910), de Freud, ou de livros explicativos dos principais conceitos da psicanálise, como, por exemplo, o capítulo 2 de FADIMAN E FRAGER, Artmed, 2004.
4Instituto A. HOUAISS. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. São Paulo: Objetiva, 2001, p. 611.
5E-mail de 22.10.2004, para wondracek@brturbo.com.
6Agradeço ao colega José Roberto Franzen as sugestões sobre Melanie Klein.
7C. D. MOE LOBEDA – Healing a Broken World: Globalization and God. Minneapolis: Fortress, 2002 apud D. SCHIPANI (Op cit).  No Brasil, vide L. BOFF Saber cuidar:  ética do humano – compaixão pela terra.  Petrópolis: Vozes,  1999.
8I. HOUAISS, Op cit, p. 1305.
9Nancy CHODOROW, Psicanálise da maternidade, Rio de Janeiro, Rosa dos Tempos, 1990, p. 232.
10Id Ibid., p.232

11Id Ibid., p.232
12Régis BONVICINO. Folha de São Paulo, Caderno Mais!, 16 de janeiro de 2005, p. 8.
13Revista Época de 25 de outubro de 2004, p. 30.
14Cf. artigo da autora: O homem do espelho: metrossexual. Boletim Psicoteologia, 2004.
15A este respeito, ver capítulo “Crises e pós-modernidade”, em Aprendendo a lidar com crises. São Leopoldo: Sinodal, 2004, da autora e de C. HERNÁNDEZ.
16Segundo esta pesquisa, pais que acompanham seus filhos adolescentes de perto, (um dos itens pesquisados é se jantam regularmente com seus filhos), reduzem o risco de promiscuidade sexual, drogas e violência pela metade. Conforme artigo de Courtney C RADSCH para o New York Times, Estudo americano mapeia efeito das ‘más companhias’. www.ultimosegundo.ig.com.br/materias/nytimes. O relatório completo da pesquisa está no www.casacolumbia.org.
17R. SENNETT. A corrosão do caráter: conseqüências pessoais do Trabalho no Novo Capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 1999. Cf. L. L. ALMEIDA,  resenha publicada na Revista Entre linhas, do Conselho Regional de Psicologia. 2004, p. 12.
18Id ibid, p. 12
19A este respeito, ver L. BOFF & R. MURARO – Masculino e feminino: uma nova consciência para o encontro das diferenças. Rio de Janeiro, Sextante, 2002, e também M. STROHER, A. MUSSKOPF & W. DEIFELT. À flor da pele: ensaio sobre gênero e corporeidade. São Leopoldo: Sinodal, 2004.
20Gênesis 3.5
21A respeito de Pfister, ver Cartas entre Freud e Pfister. Viçosa: Ultimato, 1998; também O amor e seus destinos: um estudo de Oskar Pfister como contribuição ao diálogo entre a psicanálise e a teologia cristã. São Leopoldo: Sinodal, 2005, da autora.
22P. TILLICH, A coragem de ser. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.
23 Lucas 12.16-21. Agradeço ao professor e doutorando Pedro Puentes esta sugestão.
24João 12.24. Se o grão de trigo não morrer, não dará fruto.
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Karin Wondracek é psicologa psicanalista em Porto Alegre

karinkw@gmail.com

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