Freud, 1920: notas para inspiração em 2020
Dedicado aos que amam e trabalham em tempos traumáticos
Karin K. Wondracek
1919-1920 foram anos muito difíceis para as famílias na Europa, também para a família Freud. A Primeira Guerra deixara seus rastros de dor, inflação, falta de suprimentos em meio à economia combalida. Quem ler a biografia de Peter Gay2 vai encontrar Freud contando que perderam 95% de todas as economias com a desvalorização da coroa austríaca. Além disso, há carência de alimentos básicos e falta de infraestrutura nos transportes e nas comunicações. Sua família sobrevivia com víveres enviados pelos parentes dos Estados Unidos e Inglaterra, e Freud se encarregara pessoalmente das cartas com os pedidos e recomendações de envio seguro.
A família também recebia ajuda financeira de Max Eitington. Em linguagem operística Freud lhe escreve na primavera de 1919 “Os próximos meses, espero, serão repletos de atividade dramática. Mas não somos espectadores nem atores, de fato nem sequer o coro, mas meras vítimas!”3 Vítimas sim, mas não paralisadas: cuidar de sua família era uma forma de lidar com a impotência, bem como atender pacientes que o procuravam, especialmente os que conseguiam pagá-lo em moeda forte, sem o que, ele confessa, não teria condições de arcar com as despesas.
Nestas condições, o inverno de 1920 se torna ainda mais perigoso. A gripe espanhola continua a grassar pelo frio continente europeu. A correspondência entre Freud e Pfister mostra a rápida passagem de um cordial almoço de domingo para uma tragédia que os marcaria para sempre:
Viena, IX., Berggasse 19 27.1.1920
Caro doutor
O senhor enviou à nossa casa um rapazinho charmoso, que além disso se apresentou com as costumeiras dádivas de amor. No telefone sua voz soou tão parecida com a sua, que por bastante tempo não pude acreditar que ele fosse a segunda geração. À mesa no domingo ele já nem parecia estranho; também se portou tão desembaraçadamente, que ficamos alegres com ele. Na mesma tarde recebemos a notícia de que em Hamburgo nossa querida Sophie foi vitimada por uma gripe-pneumonia, arrancada assim de uma saúde florescente, da plenitude da vida como mãe esforçada e mulher delicada, no espaço de quatro ou cinco dias, como se nunca tivesse existido. Nós já estávamos preocupados com ela há dois dias, mas ainda tínhamos esperança; pois à distância é tão difícil julgar. E esta distância precisa continuar sendo distância; não podíamos, como queríamos, viajar logo após a primeira notícia alarmante, não havia trem, nem mesmo um comboio de crianças. A descarada brutalidade dos tempos nos aperta. Amanhã ela será cremada, nossa pobre filha do domingo! Somente depois de amanhã nossa filha Mathilde e seu marido podem por-se a caminho de Hamburgo, graças a uma inesperada combinação favorável em que serão levados por um comboio da Entente. Ao menos nosso genro não ficou sozinho, pois dois de nossos filhos, que se encontravam em Berlim, já estão com ele, e o amigo Eitingon viajou com eles. Sophie deixa dois filhos, de seis anos e de treze meses, e um homem inconsolável, que agora vai pagar caro pela felicidade destes sete anos. A felicidade existia somente entre os dois, não exteriormente: guerra, recrutamento, ferimentos, corrosão das posses, contudo eles se mantiveram corajosos e animados.4
Freud reconhece os pequenos “nichos” de felicidade que eram possíveis naquele tempo precário, mas agora extintos para o jovem casal. A dor é avassaladora, e aumentada pela falta de condições mínimas para o curso natural de lidar com esta perda. A brutalidade da morte súbita da filha e jovem mãe é acrescida da precariedade da locomoção pós-guerra e impede até a reunião dos Freud para a despedida …
Na continuidade da carta Freud indica seu modo de lidar com a dolorosa perda da filha:
Trabalho tanto quanto posso, e sou grato pela distração. Perder um filho parece ser uma pesada ferida narcisista; o que é luto, provavelmente ainda experimentaremos. Contudo, assim que as condolências forem superadas, chamarei Pfister Junior. Que culpa tem o bom rapaz? Ele também já enviou um cartão de condolências.
Certo de sua compaixão, com cordiais saudações,
Seu Freud
“Trabalho tanto quanto posso”… em gratidão pela possibilidade de não ser paralisado pela morte. Esta ainda virá na forma de luto, de ferida narcísica, de desamparo, de castração talvez.
Gay conta que Freud trabalhava muito atendendo os pacientes ingleses e americanos, extenuando-se com 4 a 6 horas de trabalho analítico diário em inglês. À noite sua energia estava totalmente gasta, as correspondências e os escritos foram transferidos para os domingos.
Estes anos foram parcos em textos, mas fecundos no embasamento das suas teorias. O esboço de Além do princípio do prazer já estava circulando entre seus pares, com as observações do jogo de fort-da de Ernst Wolfgang Halberstadt, filho de Sophie, dando a base para compreender a repetição das experiências de desprazer. Mas foi uma semana depois da morte da filha que o termo Todestrieb [pulsão de morte] é criado. Coincidência? Difícil de sustentar.
Freud trabalhou o quanto pode, grato pela possibilidade. O luto veio de várias formas, mas não o impediu de amar e trabalhar. A dor da morte de Sophie reaparece em cartas por muitos anos, e sua presença foi atada simbolicamente a Freud com o pequeno medalhão preso à corrente do seu relógio.
A família Freud em breve seguirá com a vida social, pois como escreveu a Pfister, os outros não podem ser responsabilizados pelas tragédias que os acometeram. Em 1920, Thanatos compareceu com força, mas Eros também. Que assim seja entre nós em 2020!