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FAMÍLIA, CRISE E VALORES, por Almir Linhares de Faria

Artigos e Notícias

No decorrer da história, os grupos humanos tiveram que enfrentar e conviver com diferentes realidades. A família, como uma instituição social, está sujeita às influências que a realidade cultural e histórica determinam. Atualmente é comum, devido ao divórcio, viuvez ou adoções de crianças por pessoas solteiras, encontrarmos famílias compostas de um adulto ( ao invés do casal) e as crianças.
A idéia que freqüentemente temos da família como um grupo relativamente bem estruturado envolvendo o pai, a mãe e os filhos, em um grande número de vezes não corresponde à diversidade dos modelos de família existentes e das realidades que as famílias vivem.
A família também parece ser uma instituição que freqüentemente atravessa crises. Quando Adão, segundo a narrativa do Gênesis, diz ao Senhor: “Foi a mulher que tu me destes”, eclode a primeira crise familiar. Aliás, a primeira família foi marcada por fortes crises, incluindo um fratricídio.
No decorrer da história humana a família padeceu diante de diferentes situações: escravidão, interferência do Estado, guerras, epidemias, mudanças de costumes, etc. Quando se ouve falar de crise na família hoje, talvez seja o caso de perguntarmos se a família não está permanentemente em crise! Pelo menos, uma certa idealização de família, com certeza está.

FORÇA E RESISTÊNCIA 
A família, tem, no entanto, se mostrado uma instituição muito resistente, capaz de adaptar-se e sobreviver a diferentes momentos históricos e mudanças culturais e a crises de intensidades variadas.
Muitas razões podem ser invocadas para justificar essa flexibilidade e resistência da família. Gostaria, no entanto, de chamar a atenção para uma em especial. Podemos entender a família como uma instituição que também se insere na ordem do mítico. Ela lida com uma questão primordial: a criação e manutenção da vida. A fantasia de uma família ideal, aquele lugar permanente de aconchego, proteção e amparo pode ser comparado a uma narrativa mítica, pois aponta para uma situação exemplar, que faz referência a uma realidade pertinente e significativa para o ser humano: a preservação da vida. A família é o lugar, por excelência, onde se trava a batalha pela vida. É na família que a vida se torna perene. Através das gerações que se sucedem a vida se perpetua. É por isso que as situações de doença e morte agridem tanto à família. Elas atingem a família no seu núcleo central, no que ela tem de mais sagrado: a vida. Não é incomum famílias que passam por enfermidades prolongadas ou que perdem um dos seus membros se desestruturarem completamente.
Uma das razões da vitalidade da família pode advir de conteúdos profundos de nossa mente que reconhecem e identificam na estrutura familiar um lugar muito especial e apropriado para que a vida seja gerada e preservada. E isto só pode ocorrer onde existem laços de afeto que unem as pessoas em apoio e auxílio mútuo, ou seja: na família.

A CRISE ATUAL
Como pessoas vivendo em uma determinada época, importa-nos analisar a crise que a família vive hoje. A crise atual tem múltiplas origens, mas todas elas decorrentes das grandes mudanças culturais e tecnológicas do nosso século. Eizirik, baseado em Van der Leeuw cita alguns aspectos importantes:
“1) um grande fluxo de informações, quantificação e crescimento maciço, o que leva à superficialidade, prejudica o pensamento independente e é acompanhado por um processo de nivelamento por baixo. Como conseqüência o silêncio, o estar só e a privacidade ficam ameaçados; o congestionamento perturba a experiência de espaço necessária para a vida de cada pessoa;
“2) mudanças no papel da família como base da sociedade, sendo a maternidade cada vez mais negligenciada;
“3) o papel dominante da publicidade sedutora, encorajando a gratificação imediata e criando a ilusão de que a gratificação total é possível;
“4) a busca crescente de excitação, estímulos, rápidas explosões emocionais, ao invés de cultivo de sentimentos cálidos e ternos, particularmente em relação às crianças;
5) como desenvolvimento positivo, a ruptura de padrões numa sociedade estática, tornou mais fácil assumir posturas indepen-dentes e adquirir experiências ca-da qual ao seu próprio modo “.
Essas e outras mudanças sociais têm provocado, no interior da família, uma série de modificações:
1 – A perda do valor da experiência e da autoridade: Em uma sociedade com grande velocidade de mudança e rápidos avanços tecnológicos muito do que se aprendeu com as experiências passadas perde o valor. Os pais já não detêm o poder e autoridade de “figuras do saber”. Muitas vezes é o contrário: os filhos é que ensinam os pais. Uma situação, embora caricata, mas que ilustra o que está sendo dito é a habilidade e inteligência com que as gerações mais novas lidam com aparelhos eletrônicos e informatizados, fazendo com que os mais velhos se sintam perplexos e ignorantes!
Um outro fator que tem contribuído para a perda da autoridade é o enfraquecimento da figura paterna. Com o espaço que a mulher conquistou na sociedade, inclusive participando da manutenção econômica da família, a figura tradicional e respeitável do pai como o provedor e protetor da família ficou abalada. Segundo nos indica Damasceno, o espaço de poder na família acabou sendo ocupado pelas crianças. Instalou-se um verdadeiro “creantiarcado”, que veio substituir o patriarcado. A rotina da família hoje não gira mais em torno do pai, nem tampouco da mãe, mas sim, em torno da necessidade dos filhos. Em muitos lares há uma “verdadeira ditadura” dos filhos.
2 – Desvalorização da maternidade: A figura da mãe, em um passado não muito distante, era constantemente exaltada e, para muitos, a função mais nobre da mulher. Hoje já não é mais assim. A mulher ocupa atualmente, de modo irreversível, um lugar mais amplo na sociedade. Ela tem interesses e objetivos que, em alguns momentos conflitam com a maternidade. A carreira profissional, a busca de independência econômica, são alvos que fazem com que muitas mulheres adiem a maternidade ou a coloquem em segundo plano. Há mulheres e casais, que, independente de qualquer circunstância, optam por não ter filhos. Não é incomum, também, um certo desdém e desprezo para com mulheres que optam por ser “donas de casa”.
3 – Vínculos superficiais, pragmáticos e utilitaristas: Devido a uma série de questões, inclusive o excesso de atividades e preocupações, e opções de lazer fáceis e à mão o tempo todo (como a televisão) tanto para pais quanto para filhos, o contato familiar acaba sendo reduzido ao acerto de questões práticas e superficiais ou se limitando ao atendimento de solicitações materiais. O aprofundamento e enriquecimento das relações acaba sendo prejudicado.
4 – Dificuldades no estabelecimento da identidade: Notam-se também dificuldades no processo de amadurecimento dos filhos. A adolescência parece se prolongar cada vez mais. O papel e as responsabilidades que um adulto pleno deve assumir são postergados, indicando a existência de identidades frágeis e pessoas muito inseguras.
6 – Carência de uma vida interior rica: A agenda sempre lotada, o excesso de informações, a intensificação da ansiedade, a busca obsessiva por companhia ou “programas” e atividades que preenchem todo o tempo livre não deixam espaço para o cultivo sereno de uma vida interior, na qual a riqueza da reflexão esteja integrada com a modulação dos afetos.

ENFRENTANDO A CRISE 
Como se vê, os desafios que a família tem hoje são imensos. Quais são as alternativas que a família tem para superar suas dificuldades presentes? É possível, diante de tantas mudanças, reafirmar antigos valores? Ou, o que é preciso é usarmos nossa inteligência e criatividade na busca de novos valores que possam dar sustentação e uma direção construtiva às transformações que estão em curso? Ou, quem sabe, uma mescla de ambos?
As respostas não são fáceis. A questão é muito abrangente e muitos aspectos são obscuros e nebulosos. É muito difícil julgar e discernir uma época, estando inserido nela. Mesmo sabendo dos riscos e dos limites, gostaria de fazer umas poucas ponderações e levantar certas questões.
A primeira delas refere-se à questão da autoridade na família e do enfraquecimento do papel do pai. Durante muitos séculos o homem esteve assentado tranqüilamente no lugar de poder, dentro da família e da sociedade. Não era preciso muito, bastava apenas ser do sexo masculino. Possuir o falo era suficiente. Os movimentos de libertação da mulher e o lugar que a mesma ocupa hoje na sociedade estão abalando seriamente essa confortável posição na qual o homem se encontrava. Elas têm-se mostrado capazes de dirigir países, empresas, desenvolverem-se profissional e economicamente. Além do mais, elas são mais hábeis no manejo dos relacionamentos e da afetividade. Ferenczi, discípulo de Freud, afirmava que a mulher, por ter sido submetida a séculos de opressão, desenvolveu um psiquismo mais refinado para lidar com uma série de situações que a vida exigia. Ao ter que caminhar por trilhas estreitas e tortuosas para sobreviver, acabou por adquirir uma habilidade e flexibilidade que não se encontra no psiquismo masculino. A mulher, hoje, conquistou o espaço externo ao lar, que antes era privilégio masculino, sem com isto perder o lugar de importância que ela ocupa na família. Já o homem, dividindo agora com a mulher o que antes era o espaço exclusivo do qual originava o seu poder (o trabalho fora de casa e o sustento da família) tem encontrado dificuldades para se inserir como alguém também de grande importância na família, sem ter que recorrer a expedientes autoritários que funcionaram bem no passado, mas que hoje já não encontram eco. Será que a solução dessa crise passará por uma mudança masculina? O homem terá que aprender a ser mais flexível, dar mais importância para as relações e para o afeto para recuperar claramente o lugar de importância que lhe cabe na família? Ou, dito de outro modo, assim como a mulher ocupou com competência o espaço antes considerado masculino, o homem terá que ocupar um espaço que outrora era tido como tipicamente feminino?
A autoridade na família deverá ser exercida, então, de modo mais compartilhado e tanto o homem como a mulher terão que aprender a exercer um comando conjunto, tal como muitos casais já fazem hoje em dia? Neste compartilhar é preciso incluir também os filhos? Será preciso achar um espaço para que eles possam ser ouvidos, sem que com isso eles se tornem os donos da casa? Muitas indagações surgem na nossa mente. Talvez, o que para alguns seja uma grave crise de autoridade pela qual passa a família, na verdade é apenas um período de transição e ajuste sobre o exercício da autoridade na família e na sociedade. Neste caso, será preciso estarmos nos preparando para assumirmos novos valores e paradigmas em relação à família de modo que as transformações ocorram com equilíbrio e bom senso, concorrendo para o bem estar da família e de seus membros.
Se, por um lado, pode ser necessário estarmos preparados e dispostos à mudanças, de outro lado pode ser o caso de reafirmarmos antigos valores. Sabemos que a vida religiosa é uma poderosa incrementadora do desenvolvimento interior. A meditação, a oração, o compartilhar, o louvor são práticas que enriquecem a vida das pessoas. Na época em que vivemos, o vazio interior, a superficialidade dos afetos e das relações, e o empobrecimento interno parecem estar contaminando a própria família. A tradição cristã é portadora de inúmeras práticas que são instigadoras ao crescimento pessoal e comunitário e portadoras de sentido para a vida das pessoas.
O reforço de alguns aspectos da tradição cristã, tal como o culto doméstico, é viável? Será que ele pode oferecer à família de hoje um espaço afetivo, onde o compartilhar reforça os vínculos, estimula o aprofundamento da reflexão e da compreensão de si e do outro, além de proporcionar referências em um mundo carente de sentido? Ou a família de hoje, premida pelo tempo e pelo excesso de preocupações e compromissos, terá que se contentar, quando muito, com a leitura corrida de algum texto bíblico ou de um guia devocional? Haverá espaço nos lares de hoje para o encontro fecundo dos membros de uma família em torno da palavra de Deus?
A questão da maternidade também exige reflexão. Ao mesmo tempo que se multiplicam as pesquisas e observações acerca das relações mãe-bebê e se confirma a importância para o ser humano dos primeiros vínculos afetivos (conforme Spitz já havia demonstrado), mais as crianças, cada vez mais precocemente, são entregues a babás, creches e escolinhas. Será que estas pessoas e instituições têm condições de desempenhar com o mesmo grau de habilidade e eficiência o papel materno no estabelecimento e modulação dos vínculos afetivos? O pai pode de algum modo ajudar mais a mãe a desempenhar o papel materno?
Os desafios de nossa época podem exigir de nós tanto a abertura criativa para encontrarmos novas formas de convivência familiar quanto a capacidade de preservar e lutar para manter aquilo que é de valor inestimável e por isso deve ser preservado, apesar de todas as dificuldades.

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Al lmir Linhares de Faria é psicoterapeuta, professor de Psicologia Geral na Puc-Campinas e membro do CPPC.

 

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