ÉTICA DE PAULO A FREUD, por Karin Wondracek
Fala de ética quem tem autoridade para tal – um velho, um sábio, uma pessoa experiente. Nesta posição me sinto confortável com meu desconforto, porque acho que falta muito para isso.
Fui ver o conceito de ética, e tive uma interessante surpresa com a etimologia da palavra: segundo Mário Gonçalves Viana, a palavra “ética” designava, a princípio, “residência, morada, lugar onde se habita”. Nos primeiros tempos, a palavra foi usada preferencialmente na poesia, referindo-se aos lugares onde habitavam os animais. Depois, por extensão, passou a referir-se também à morada dos homens e dos povos.
Em segundo lugar, passou a designar “aquilo que o homem traz dentro de si: atitude psíquica em relação a si próprio e ao mundo”.
Em terceiro lugar, passou a designar “modo de ser, caráter”, a partir de Aristóteles, que a integra na filosofia. Com algumas nuances variadas, ética passa a designar “as disposições do homem na vida, o seu caráter, os seus costumes, e a sua moral.”
Bonhoefer comenta que só se fala de ética quando a vida sai do seu eixo, quando toca as margens e encontra desafios. A virada do milênio e o fim da modernidade têm-se apresentado como tais. Confesso que me sinto totalmente sem base para argumentar a partir do significado destes eventos, e por isso vou transitar a partir do meu vivido, como cristã e como psicanalista.
Lembro-me de uma situação na faculdade que desafiou minha ética evangélica. Estávamos numa prova, e a colega sentada do meu lado estava muito angustiada. Passara a noite em claro, o filho pequeno doente exigira seus cuidados. Olhava para a folha de questões e não se lembrava da matéria. Sussurrando, perguntou-me algo. Eu fiquei calada. Ela perguntou novamente. Para mim, “dar cola” era um pecado que destruiria meu “testemunho”. Continuei muda; ela também emudeceu. Eu saí desconfortável da sala, mas a certeza de ter agido corretamente sepultou este acontecimento depois de alguns dias. Interessante que justamente agora, ao repensar questões de ética, veio a lembrança.
Rubem Alves comenta sobre a ética protestante e sua semelhança com a moralidade kantiana:
a consciência ignora totalmente a categoria de finalidade e propósito. A ética não é uma reflexão que busca meios adequados para que certos fins sejam atingidos. Não é a finalidade ou a intenção da ação que lhe confere a sua dignidade moral. Ao contrário: uma ação é moral quando e somente quando a vontade que a executa se deixa determinar de forma absoluta pelo imperativo do dever. (Protestantismo e Repressão, p. 253)
Parece que, dentro destes parâmetros, eu poderia dormir sossegada com a minha “ética”.
Logo mais, o contato com Freud trouxe o descortinar de novas impressões sobre meu modo de ver a vida e sobre minha religião. Freud mostrou que além do motivo racional há um motivo inconsciente, derivado da pulsão. Ele denunciou que a pulsão e o desejo podem fazer acordos com uma projeção de um deus bravo, para impedir a angústia frente a questões polêmicas. Freud diz que a repressão dos desejos provoca um mal-estar, necessário para a vida em grupo. E, neste caminho, pode-se reprimir até os sentimentos mais “naturais”, como seria o de ajudar minha amiga cansada, em nome do pertencimento ao “Deus da verdade”. E, continua Rubem Alves, o protestantismo acaba por assemelhar-se ao positivismo, por reduzir o comportamento à fidelidade ao estímulo dado. Uma consciência que se controla sistematicamente, no sentido de só refletir os fatos, só pode produzir um dizer que seja a reduplicação dos fatos. A verdade, como adequação da palavra à coisa, necessariamente produz a atrofia da imaginação; e da criatividade e da bondade também. E nossa ética e nossa espiritualidade ficam com uma perigosa e doente semelhança à dos fariseus do Novo Testamento e dos obsessivos de Freud.
Freud, criado dentro da ética judaica, causa um rombo na moral ocidental ao mostrar a trama do desejo por detrás dela. Junto com Marx e Nietzsche cria o que Ricoeur chamou de “hermenêutica da suspeita”. A psicanálise descentra a consciência do seu lugar de verdade, mostrando que há um “existo” além do que “penso”. Como comenta Ricoeur:
O homem é esse ser que é capaz de realizar seus desejos à maneira do despistamento, da regressão e da simbolização estereotipada. No homem e pelo homem, o desejo avança mascarado. A psicanálise vale na medida em que a arte, a moral e a religião são figuras análogas, variantes da máscara onírica. Toda a dramática do sonho encontra-se, assim, generalizada às dimensões de uma poética universal.”
“Se o método da interpretação dos sonhos jamais foi traído, mas somente ampliado e aprofundado, é porque o próprio tema do “despistamento”, tema central da interpretação dos sonhos, viu-se ampliado e aprofundado em todos os registros onde as pulsões dinamizam seus representantes e seus rebentos. Entre essas máscaras do desejo, análogas aos sonhos de nossas noites, deveríamos reencontrar os ídolos que entulham nossos falsos cultos. “Do ídolo como sonho acordado da humanidade”, eis o subtítulo que poderia ser dado à hermenêutica da cultura.
E a ética também “sofre” do mesmo destino: mascarar o desejo, revestir os ídolos com os acordos das pulsões.
Pfister já antevira, em sua amigável controvérsia por ocasião do lançamento do O Futuro de uma Ilusão, o risco que a psicanálise trazia em seu bojo, o de converter-se em uma visão de mundo. Freud o negou categoricamente. Descobrir o sentido inconsciente, para Freud, era ampliar o conhecimento das causas e assim poder utilizar defesas mais elaboradas do que a negação ou a repressão contra a fome da pulsão. Freud até fala do julgamento de condenação, onde o representante da pulsão vem à consciência para ali ser julgado e até condenado. A liberdade que Freud queria era a do pensamento, alargando o conceito de racionalidade para que incluísse a racionalidade do inconsciente.
Mas, assim como as melhores descobertas científicas foram utilizadas para a guerra, também os melhores achados psicanalíticos o foram, para alimentar a guerra pulsional na cultura e na ética. Jurandir Freire Costa no seu artigo Os descaminhos do Caráter, (FSP, 25/07/99), comenta o lançamento de dois livros: de Richard Sennet – A Corrosão do Caráter e de Pierre Hadot – O que é Filosofia Antiga. Estas obras denunciam a transformação, neste século, do conceito de caráter (como atribuição de valor de uma pessoa) para o de personalidade. Já não se escuta “este moço tem bom caráter” – e com isto todos sabem o que essa pessoa faz ou deixa de fazer. Escuta-se “fulano tem personalidade assim”; isso lhe dá o direito de massacrar os demais, descuidar dos outros, negar padrões éticos. Cito-o:
Na modernidade ocidental, como fez ver Sennett, ocorreu uma radical alteração do “ethos” antigo: o cuidado com o caráter deu lugar à preocupação com a “personalidade”. o outro deixou de ser o fiador da fidelidade do sujeito ao bem comum para se tornar o cúmplice ansioso ou “voyerista” de suas idiossincrasias psicológicas. A privacidade burguesa criou a “tirania da intimidade”, e nos levou a crer que a felicidade consiste, quase exclusivamente, em satisfazer as aspirações da vida afetiva. O bem-viver não era mais descrito como realização das virtudes públicas, mas como satisfação sentimental.
A cultura da intimidade, ao deslocar o centro da identidade pessoal do público para o privado, gerou um fator de instabilidade permanente na consciência de si. Os afetos, em especial os afetos sexuais, se mostraram incapazes de fornecer critérios éticos do que somos ou queremos ser, dada a própria maneira como se constituem.
Não há dúvida de que aqui tem o dedo da psicanálise. O inconsciente, de habitante do porão, passou para a poltrona especial da sala. Como sair dessa? Imaginei uma conversa impossível, e gostaria de compartilhar minha fantasia com vocês: imaginei Freud conversando com o apóstolo Paulo.
O que eles têm em comum? Ambos denunciam o fracasso da pessoa como guardiã da ética: Paulo, do fracasso da lei como valor para a salvação; Freud, do fracasso da cultura como domesticadora da pulsão.
Imagino que poderiam conversar assim:
Paulo: Freud, fiquei feliz com a apreciação que você demonstrou por mim por ocasião do estudo de Pfister. Ouvir “Paulo, um caráter tipicamente judeu, sempre teve minha especial simpatia”, vindo de um judeu como você, me emocionou.
Freud: Obrigado, Paulo; você sabe como tenho procurado ser aberto para todas manifestações da verdade, e, tal como você, também tenho combatido meu bom combate. Aliás, me inspirei em você em outro momento difícil, quando tive de enfrentar Adler. Ele se imaginou um mundo sem amor, e você, Paulo, foi um dos que mais denunciou que “se não tivermos amor…”
Paulo: É verdade, Freud, e também apreciei sua denúncia do legalismo, da culpa e da ênfase na acusação para esconder os próprios desejos. “Tu que julgas, a ti mesmo te condenas..” sabes como tenho sido um adversário das leis como promotoras da felicidade. Mas, Freud, apesar de suas grandes conquistas e do seu gigantesco esforço para libertar as pessoas desses jugos, vejo um pessimismo tomar conta da sua vida, quando você reflete sobre os rumos da humanidade.
Freud: Sabe, Paulo, à medida que tomei contato com a tendência mortífera da humanidade durante a Primeira Guerra Mundial, deparei-me com a pulsão de morte. Depois vi a fragilidade do superego humano perante um líder de massa e deparei-me com a relatividade da sua moral; fiquei desanimado. Quando a pulsão de morte se alia ao desejo, este não reconhece mais no outro um ser vivo, mas apenas um objeto para satisfazer sua necessidade, destruindo a ética e a civilização. Poucos podem fugir de si mesmos, do lobo que os habita e devora.
Paulo: Eu já dizia: “miserável homem que sou, o bem que quero, esse não faço, mas o mal que não quero, esse faço”. Gostou dessa “psicanálise do primeiro século”, Freud? E então, qual o antídoto que você construiu para essa triste constatação?
Freud: Você sabe como eu discutia isso com Pfister, colocando para ele que meus deuses Logos e Ananke – Razão e Necessidade – não tornavam as coisas muito fáceis. Não me preocupei com soluções – a psicanálise não tem essa pretensão, Paulo; isso eu deixo para vocês teólogos. Eu imaginei caminhos que favorecessem a liberdade de julgar e de realizar: que a libido ligada na energia de vida protegesse a pessoa, que a pulsão sexual capaz de ser vivida e sublimada favorecesse a neutralização da pulsão de morte. Que o ego, através do princípio da realidade escolhesse caminhos harmônicos que satisfizessem as exigências da pulsão, do superego e do mundo externo. Também tive muita esperança com a ciência: que o conhecimento científico – energia sexual sublimada – trouxesse luz para a humanidade… mas confesso que ao deixar esta vida vi espoucar a Segunda Guerra Mundial, e isto me fez perder a esperança de que a humanidade encontrasse seu caminho seguindo os trilhos de Logos e Ananke.
O que vejo é que, tal como a humanidade fez uso das descobertas da ciência para tornar-se mais agressiva e feroz, também o fizeram com os meus achados – as descobertas da psicanálise não foram usadas para que as pessoas pudessem amar e trabalhar, mas sim para que dominassem e agredissem umas às outras. Por exemplo, quiseram levar a liberdade de dentro de uma sessão analítica para a fala cotidiana, e isto não é construtivo. Ou quiseram usar as descobertas da psicanálise para manipular as massas, dopando sua consciência social através do sexo explícito e da violência. Assim evitam que as pessoas sejam solidárias, elas já não se ajudam, o outro fica sendo um objeto de satisfação, ou pior, de descarga. E você, Paulo, tem alguma outra solução?
Paulo: Eu não, Freud; sabes que declaro toda minha herança judaico-greco-romana como esterco – veja como remeto à fase anal, preferida de muitos devotos… Meu deus Logos não fez parceria com Ananke, para assim tentar levar a humanidade por um caminho ético: este caminho é insuficiente, pois a necessidade faz com que se tenha no outro somente um objeto de satisfação; e você mesmo disse que o objeto da pulsão é o mais variável de todos os componentes dela…
(E para não parecer que Paulo evangelizaria Freud, eu prefiro interromper o diálogo aqui, e arriscar uma síntese.)
Na etimologia da palavra “ética” vimos que esta designava originalmente “morada dos animais”. Penso que Freud mostrou que nossa ética e nossa moral englobam também a morada do animal em nós – nosso mundo pulsional, que por vezes irrompe e desinstala os costumes e a moral.
O século vinte acostumou-se a levar em conta o inconsciente, e tem sido mais indulgente com suas manifestações. A troca de ênfase de “caráter” para “personalidade” já demonstra isso. O que freiará a expressão do pulsional?
Talvez aí possa-se remeter aos achados de Freud quanto à instalação das primeiras barreiras éticas: a criança pequena renuncia à expressào pulsional direta do auto-erotismo – sugar o seio, defecar, chupar bico – por amor à sua mãe. Para não perder o amor, substitui estas expressões diretas por outras, derivadas. Assim estabelece-se o recalcamento originário e certas expressões pulsionais ficam fixadas no inconsciente para sempre. Em resumo, não são as proibições da mãe, mas é seu amor que consegue a proeza de transformar algo extremamente prazeiroso em algo rejeitado.
O apóstolo Paulo mostra este caminho, resumido em I Cor 13, sob cuja bandeira até Freud se coloca na luta contra Adler. O que falta a Freud – e pelo fato da psicanálise não ser visão de mundo isto é coerente – é que este amor em Freud significa libido, cujo objeto varia e por isso produz inconstâncias éticas, tão comuns nos tempos pós-modernos.
O desvio ocorrido é que a teoria psicanalítica serve de desculpa à “troca de objeto”, explicando-se que “a libido não investe mais nessa ou naquela relação”. O conceito econômico entra como explicativo do ético, e aí está uma derivação da psicanálise para ser visão de mundo, o que Freud não pretendeu.
Retomo Paulo, e digo que ele apresenta um caminho que é mais que uma ética, é um caminho de relação: quando faz de amar um verbo transitivo, dá a pista. Para Paulo, amar a Cristo é a chave, que impede a troca de objeto. Não pelo risco de perder a Cristo – visão utilitarista infantil – mas pelo desejo de andar na sua presença, usufruindo dela. É isso que os místicos do início do Cristianismo já viveram, é isso que torna possível a um criminoso de Bangu I tornar-se um inofensivo porteiro de uma igreja, como relatado recentemente na Revista Veja.
Amar a Deus, a Cristo, submetendo nosso agir ou não agir ao amor que nos constrange; isso faz com que a parábola do Bom Samaritano possa converter-se em ética prática atual, e provavelmente mudaria meu comportamento na faculdade. O amor de Cristo nos constrange – constrange a levar esta máxima ao centro da existência, para que as questões éticas sejam aquecidas por este amor.
Ricoeur encerra seu livro sobre Freud com uma dupla resposta – convidando-nos a aceitar as idéias freudianas até certo ponto e a negá-las como verdade absoluta:
É assim que, até o fim, tendo a construir o sim e o não que pronuncio sobre a psicanálise da religião. A fé do crente não pode sair intacta dessa confrontação, mas tampouco a concepção freudiana da realidade. Ao dilaceramento de uma responde o dilaceramento da outra. À cisão que o sim a Freud introduz no âmago da fé dos crentes, separando o símbolo do ídolo, responde a cisão que o não a Freud introduz no âmago do princípio freudiano de realidade, separando da simples resignação a Ananké o amor da Criação.
Encerro com uma questão para todos os que crêem e têm feito do relacionamento pessoal com Cristo seu objetivo maior:
Temos nos deixado trabalhar por nossa fé? Temos submetido as questões centrais da vida – pulsões, desejos, aparelho psíquico, relacionamentos, profissão, inserção social – ao autor da ética da segunda milha? Ou deixamos nossa fé trabalhar apenas as questões periféricas, as da moral e dos bons costumes? Creio que somente se houver exercício espiritual constante nas questões centrais – termo tão caro para Loyola – haverá uma prática ética no momento de tensão e tesão.
Para variar, deixo com os místicos a palavra final, …eles “sabiam”:
Trindade eterna, tu és um mar profundo, no qual,
quanto mais procuro, mais te procuro.
Tu nos sacias de maneira completa, pois, no teu abismo, sacias a alma de tal sorte, que ela fica para sempre
com fome de ti.
Que poderias dar-me mais do que tu mesmo?
És o Fogo que queima sempre e nunca se consome.
És o Fogo que consome no teu ardor todo amor-próprio da alma.
És o Fogo que tira todo frio, que ilumina todas as inteligências e, pela tua luz, me fizeste conhecer a verdade.
Santa Catarina de Sena
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Karin Wondracek, psicóloga e psicanalista em Porto Alegre