ESPIRITUALIDADE, FAMÍLIA E ÉTICA, por Uriel Heckert
“Todos eles eram homens que conheciam bem os fatos daquele tempo, e sabiam qual o melhor caminho para seguir” (I Crônicas 12:32).
Eis aqui reunidas algumas das mais instigantes questões do nosso tempo: ética, família e espiritualidade. Poucas décadas atrás, seria difícil prever que, mesmo depois do impacto trazido pelas críticas formuladas por Nietzsche, Freud e Marx, a sociedade estaria envolvida com dilemas outrora tidos como superados. Entretanto, já no final do Século XX, verificamos que velhos desafios se fazem novos, voltam a ocupar o interesse das pessoas e ganham espaço nas discussões.
No entanto, não convém que se repitam equívocos do passado, nem no campo científico, nem no religioso. Na condição de cristãos atentos aos questionamentos que nos circundam, sabemos que o mundo não é o mesmo depois que vieram à luz formulações tão contundentes como aquelas dos autores acima mencionados. Senão, vejamos.
A ética depois de Nietzsche
Dos três autores citados, Friedrich Nietzsche (1844-1900) é, sem dúvida, o menos divulgado. Mas nem por isso ele deve ser considerado menos influente no pensamento do nosso século e na problemática que hoje enfrentamos.
A sua crítica concentrou-se sobretudo sobre a conduta cristã, chamada por ele de moral de escravos, pois privilegiaria a passividade e a postura dependente. Entendendo assim, concluiu que os ensinamentos de Jesus Cristo teriam sido desastrosos para a humanidade, pois estimularam um comportamento oposto àquele dos guerreiros e heróis da Idade Antiga.
Ao mesmo tempo, ele constatou que já nos seus dias a religião perdera sua força e a própria idéia de Deus não fazia mais qualquer sentido para a maioria das pessoas. Deus estava morto, essa foi a sua constatação máxima, meio entusiasmado, meio assustado. Só restaria ao homem, dali em diante, assumir seu próprio destino e estabelecer uma ética calcada em novos valores, sem qualquer apelo ao Absoluto. O ser humano estaria livre para expandir as suas possibilidades, para dar vazão à sua vontade, vontade de potência (ou de poder), construindo assim o homem do futuro, o super-homem.
Sabe-se que este pensamento foi usado pelo nazismo e outras ideologias fascistas para fundamentar sectarismos e regimes autoritários. Por isso mesmo, existe hoje uma certa decepção com a afirmação unilateral da força humana. Alguns entendem que a pós-modernidade teria encampado esse sentimento e que os tempos agora são outros. Os que assim pensam apontam que Deus teria “dado a volta por cima”, que o debate ecológico demonstrou a dependência que temos da natureza, que as pesquisas espaciais definiram a real dimensão do ser humano no cosmos. Nietzsche é que estaria morto, dizem os mais apressados.
De qualquer forma, em nossos dias não é mais possível invocar uma ética de inspiração religiosa para uso de toda a sociedade, como se fazia na Idade Média. Pelo contrário, o que aparece aos nossos olhos é a penetração do pragmatismo moral nos próprios meios cristãos. Algumas correntes teológicas parecem apenas usar o nome de Deus, submetendo-o à vontade das pessoas e ao seu próprio poder de manipulação.
Isto sem falar no que se vê no mundo secular, onde impera claramente a lei do mais forte, maquiada pelos rótulos da competência, da qualidade, da competitividade. Não será difícil demonstrar a influência do pensamento e da ética proposta por Nietzsche (ou a sua deformação) na sustentação da propalada globalização, das decantadas virtudes do livre mercado e nas aplicações das políticas neo-liberais. O darwinismo social mostra seus tentáculos cada vez mais explicitamente.
A família depois de Freud
Entretanto, não foi somente o pensamento de Nietzsche que impactou este nosso século. Sigmund Freud (1856-1939) é um nome mais conhecido, principalmente pelos estudiosos da Psicologia. Ele elaborou seu pensamento em torno da teoria da libido, considerada como a energia propulsora da vida individual e coletiva. Assim, demonstrou o papel da sexualidade como força motriz do desenvolvimento da personalidade individual e das relações interpessoais.
A sociedade vitoriana que o circundava ofereceu combustível para uma profunda crítica à moral sexual e, por extensão, à organização familiar tradicional. No entendimento geral, o modelo cristão clássico de família estava comprometido com aquela estruturação social. Assim, logo vinculou-se a prática da fé cristã com atitudes repressoras das manifestações do prazer, fazendo-a alvo de menosprezo e desdém. Essa atitude, como é fácil perceber, mantém-se nos tempos atuais. A família continua sendo alvo de desconfiança e críticas advindas de profissionais que a vêem como fonte de repressões e doenças.
Desenvolveram-se, a partir de então, novas formas de organização familiar, muitas delas incômodas ao entendimento tradicional da fé cristã. De qualquer maneira, não podemos desconhecer o abalo profundo que a psicanállise deixou no modelo clássico de família.
Também sobre esta questão, entendemos que é inútil insistir no retorno aos tempos passados. Se assim o fizermos, poderemos estar sacralizando modelos de relacionamento tidos como anacrônicos, aos quais atrelamos o adjetivo de cristãos. Além disso, mostrar-nos-emos insensíveis às profundas mudanças presentes na organização atual da sociedade, à qual desejamos servir.
Família, pois, constitui-se num tema dos mais atuais. Nós cremos que ela tem uma origem divina e um significado marcadamente cristão. Mas entendemos que ela pode organizar-se de formas distintas segundo a cultura em que está inserida e as características do momento histórico vivido. Assim, precisamos estar abertos a novos modelos de família e às novas formas de organização da dinâmica interna dos grupos familiares. Desta maneira, não nos fecharemos às ações do Espírito Santo neste mundo carente da virada do século e não colocaremos barreiras para muitos que se aproximam da mensagem cristã.
A espiritualidade depois de Marx
Dos três citados, Karl Marx (1818-1883) talvez seja o que alcançou maior popularidade. Ele mostrou com maestria como a História é construída por mãos humanas, no embate vigoroso dos interesses econômicos. A forma pela qual se organizam os meios de produção determina as relações interpessoais e a estruturação da sociedade. Dessa forma, as classes dominantes valem-se da cultura e da religião para repassar a ideologia que lhes interessa, visando manter-se no poder e continuar usufruindo os privilégios dele decorrentes. Seguindo esse entendimento, a espiritualidade passou a ser vista como instrumento de alienação, algo que deveria ser banido. Ela atuaria na direção contrária à conscientização dos oprimidos e à conseqüente e desejável luta pela justiça social.
Este pensamento teve profundo impacto sobre a humanidade no correr de nosso século. É certo que a maioria das experiências práticas com o marxismo parece terem fracassado. Porém, não se deve pensar que a queda do chamado socialismo real desfez a influência daquele pensamento sobre a nossa cultura. A espiritualidade que ressurge nos dias atuais nunca será como a de antes. Persistirá sempre, principalmente nos meios intelectuais, um descrédito por toda proposta desvinculada de uma forte inserção histórica. O discurso religioso tradicional não mais encontrará eco, pois sabidamente apontava para soluções escapistas.
As manifestações religiosas que hoje reaparecem são vistas sob suspeição nos meios considerados esclarecidos. Pergunta-se logo pelas suas origens, pelos interesses que estão acobertando, pelas implicações sociais e políticas que delas advirão. Toda espiritualidade desenraizada do seu contexto social e cultural é considerada alienada e profundamente mal vista nos meios influentes da sociedade.
Diante disto, se queremos ver a espiritualidade cristã impactar a sociedade, devemos abraçar a tarefa urgente de inseri-la profundamente na cultura da nossa gente. Cabe-nos ter a coragem de concebê-la historicamente, considerando-a ainda em suas expressões econômicas, sociais, políticas. Assim fazendo, será forçoso considerar as vinculações que suas expressões tradicionais têm com estruturas de poder, quer sejam nacionais ou internacionais. Se assim não fizermos, correremos o risco de vermos o interesse religioso atual passar como uma onda sem consistência, o que determinará, num futuro próximo, o desprezo ainda mais radical da esperança cristã.
Uma contribuição cristã atual
Já no final do Século XX, vivemos ainda sob o impacto destas influências que marcaram a nossa cultura. Nesse contexto é que somos chamados a oferecer contribuições criativas e contemporâneas, a partir da nossa qualificação técnico-profissional e da experiência da fé cristã.
Nós cremos na ação renovadora do Espírito de Deus, agindo constantemente na História, impulsionando a construção do Seu Reino. Ele quer nos levar a uma vivência-ação consciente e saudável, inserida nas questões do nosso tempo e enraizada na cultura em que vivemos. Só assim seremos capazes de exercer nossa missão com fidelidade e promover repercussões duradouras, em nome do Senhor Jesus Cristo.
O convite à participação nesta tarefa ingente é dirigido a todos. Como estudantes e profissionais cristãos, somos chamados a assumir a condição de ministros de Deus junto a nossa geração. Da posição privilegiada em que nos encontramos perante o povo brasileiro, ouvimos o desafio do profeta: “Os lábios do sacerdote devem guardar o conhecimento, e da sua boca devem os homens procurar a instrução” (Malaquias 2:7).
Temos tido a experiência fantástica de receber pessoas que vêem a nós em busca de ajuda e perguntamos com humildade pela nossa competência. Constatamos, então, que o conhecimento nos vem do estudo sério das ciências que nos são afins e da revelação de Deus, a Sua Palavra, ambas fontes igualmente valorizadas da verdade. A instrução que passa através de nós deverá ser plena da sabedoria produzida pela comunhão com o Pai e com os irmãos de fé que encontramos no caminho. Assim, desejamos estar motivados e bem capacitados para servir ao povo do nosso país, às comunidades cristãs e a cada pessoa nas suas necessidades.
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Uriel Heckert; Médico psiquiatra em Juiz de Fora