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DA EXCLUSÃO SÓCIO-FAMILIAR À POSSIBILIDADE DO AFETO, por Fátima Fontes

Artigos e Notícias

Workshop Psicodramático no III Forum Social Mundial

Introduzo este texto sobre a oficina apresentada no III Forum Social Mundial, na qual apresentei  o trabalho que venho desenvolvendo desde março de 2001, inicialmente na cidade de Sorocaba, e desde julho 2002, também em São Paulo, com uma citação do filósofo Vauvenargues, do seu livro “De l’esprit humain”:
“Desses dois sentimentos unidos, isto é, do das nossas forças e da nossa miséria, nascem as maiores paixões; já que o sentimento de nossas misérias nos impele a sair de nós mesmos e o sentimento dos nossos recursos nos encoraja a isso e nos  transporta com esperança. Mas aqueles que sentem somente a sua miséria sem sua força não se apaixonam nunca o bastante, porque nada ousam esperar; nem se apaixonam aqueles que sentem a sua força sem a sua impotência, pois têm demasia do pouco a desejar; é preciso assim uma esperança de coragem, de fraqueza, de tristeza e de presunção”.
De posse, então, desses dois sentimentos é que apresento, apaixonadamente, essa proposta/ação/pesquisa, que é dirigida aos adolescentes autores de atos infracionais, que cumprem a medida sócio-educativa da Liberdade  Assistida e suas famílias.

Tem como objetivo favorecer a potencialização e o estudo dos afetos nessas famílias e seus adolescentes, como instrumento  de enfrentamento, em sua luta de protagonistas de uma dor social: a endêmica violência que nos atinge a  todos.

 

Percorrendo um pouco o nosso intricado mundo de violência focando na dimensão da violência e da criminalidade no Brasil, nas duas últimas décadas, pode-se compreendê-la como que de uma  “violência endêmica”, (Pinheiro, 1996:Caderno Mais do Jornal Folha de São Paulo), em parte como conseqüência das políticas econômicas que aprofundaram a concentração de renda e condenaram milhões à pobreza e à exclusão social.

 

Observa-se que as crianças e os adolescentes no Brasil representam a parcela mais exposta às violações de direitos pela família, pelo Estado e pela sociedade – exatamente ao contrário do que define a nossa Constituição, que reza em seu artigo 227:  É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissio-nalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

 

Contrapondo-se a este quadro de realidade, boa parcela da sociedade mobiliza-se para enfrentá-lo, coibi-lo e modificá-lo. Contudo, fica claro também como a mobilização com forte apelo emocional é muito mais voltada à criança.

 

Os adolescentes em conflitos com a lei – e saliento que o fato de nomeá-los assim deve-se à busca de retirá-los do estigmatizado lugar de infratores, delinqüentes, pivetes ou mesmo “pequenos predadores”, visto que a prática do ato infracional não é incorporada à sua identidade, mas entendida como uma circunstância da vida que pode ser modificada – não encontram eco para a defesa de seus direitos pois, pela condição de terem praticado um ato infracional, serão desqualificados enquanto adolescentes.

Parece ser bem difícil, para o senso comum, unir as idéias de segurança e cidadania. Reconhecer no agressor um cidadão tem se mostrado um exercício, para muitos, inapropriado.

 

Com vistas a encontrar um caminho que cuide desses adolescentes da maneira o mais justa possível é que se criaram os dispositivos legais das medidas sócio-educativas que comportam aspectos de natureza coercitiva (uma vez que são punitivas aos infratores) e aspectos educativos no sentido da proteção integral e oportunização, e do acesso a informação.

 

Dentre as medidas sócio-educativas está a Liberdade Assitida que se caracteriza pelo acompanhamento personalizado, no qual está garantido (ou previsto) os aspectos de “proteção, inserção comunitária, cotidiano, manutenção de vínculos familiares, freqüência à escola e inserção no mercado de trabalho e/ou cursos profissionalizantes e formativos”.

Contudo, a realidade obtida com essa medida está longe dos seus objetivos. Pode-se acompanhar este quadro, verificando-se os números fornecidos por uma matéria produzida no Caderno “Folha Cotidiano”, de agosto de 2002: “Diariamente, um jovem atendido pelo Programa de Liberdade Assistida no Estado de São Paulo comete novo crime e vai para o sistema penitenciário.

 

A quantidade de adolescente nessa situação aumentou 119% em todo o estado entre maio/2000 e maio/2001, enquanto a população atendida pelo programa cresceu 70,2%.

Aqueles que escapam da rotina da prisão costumam dever sua sorte à família e à qualidade do Programa de Liberdade Assistida ao qual estão ligados” (ATHIAS, Gabriela e Biancarelli, Anselmo 2000: Folha Cotidiano).

Percebe-se, então, uma das possíveis direções resolutivas: instrumentar as famílias desses adolescentes. Talvez possa ser este um  cipó que auxilie a remover, desse pantanoso terreno em que se encontram os Programas da Liberdade Assistida, os adolescentes autores de atos infracionais, suas famílias e os que se dispõe a enfrentar esta árdua tarefa.

 

Para uma ação ética
Sem dúvida, a proposta filosófica e metodológica de Moreno contém uma ética que, dentre outras coisas, é pautada no encontro, na dignificação e crença na pró-atividade do homem: “O homem deve assumir seu destino e o destino da humanidade, a nível da criatividade, como criador. Não basta que ele se confronte com a situação através do controle técnico (armas defensivas) ou de controle político – governo mundial; DEVE CONFRONTAR-SE COM ELE PRÓPRIO E COM SUA SOCIEDADE NO STATUS NASCENDI…. (Moreno,  Quem Sobreviverá, vol. III: 174).
Somos, como cristãos, pautados por uma ética judaico-cristã,  na qual o Senhor nos incita a “soltar aqueles que foram presos injustamente, a tirar de cima deles o peso que os faz sofrer; a pôr em liberdade os que estão sendo oprimidos, a acabar com todo tipo de escravidão” (Isaías 58:6), como caminho de restauração e de transformação: “Então a luz da minha salvação brilhará como o sol, e logo vocês todos ficarão curados. O seu  Salvador os guiará, e a presença do Senhor Deus os protegerá por todos os lados” (Isaías 58:8).
De posse dessas certezas (que também eram minhas) e de um forte desejo de auxiliar as famílias e seus adolescentes em conflito com a lei, aceitei ao convite que me foi feito por uma ONG parceira da FEBEM, nos programas de Liberdade Assistida, para atender às famílias do referido programa.
Propus e venho realizando Socio-dramas Tematizados com essas famílias e seus adolescentes, em encontros mensais, ao longo do cumprimento da medida, que é de seis meses.
Procurei incluir nesses temas os grandes dilemas das trocas familiares: as idealizações na família, as trocas afetivas, as questões de limites, diferenças individuais e valores.
Os resultados se evidenciavam a cada encontro: os adolescentes, que inicialmente se mantinham mais reservados e resistentes, começaram a mostrar no palco psicodramático seus conflitos, revoltas e necessidades.
De igual forma, pais que jamais haviam pensado em suas falas, exigências e desatenções iam pouco a pouco se movendo em novas relações interacionais. E ao final da medida, os depoimentos colhidos pelas técnicas iam desde: “nunca havia abraçado meu pai” até: “não vai dar para continuar do mesmo jeito agora!”
O que experimentávamos transcendia a experiência e seus resultados; tudo isso era grande demais, precisava cruzar as fronteiras dessa experiência. Será que essa experiência daria conta de alterar a trajetória de marginalidade já iniciada por esses adolescentes?
Só um estudo mais aprofundado poderia responder a isso, e sem dúvida ele precisaria ser feito no ambiente acadêmico. Por isso transformei o projeto de ação em projeto de pesquisa, sob o título: “A Força dos Afetos nas Famílias dos Adolescentes Autores de Atos Infracionais em Liberdade Assistida – Uma experiência Sociodramática de Cidadania”, para o Mestrado no Programa de Pós Graduação em Psicologia Social da PUC-SP. Fui aprovada na seleção para o mestrado e vi meu projeto aprovado e acolhido pela Dra. Sílvia Tatiana Maurer Lane como orientadora, justo ela, a grande iniciadora da Psicologia Sócio-Histórica no Brasil (Psicologia esta que se propõe a acoplar sua produção à materialidade do mundo, criando a possibilidade de uma ciência crítica à ideologia, posicionada a favor das melhores condições de vida, necessárias à saúde psicológica dos homens na nossa sociedade).

Conclusão
Gostaria de finalizar essa reflexão incluindo o trecho de uma canção; chama-se “Coração Civil”, escrita por Milton Nascimento e Fernando Brandt. Ela nos convoca a sonhar e vislumbrar que “UM OUTRO MUNDO É POSSÍVEL”, como foi tão brilhantemente tematizado nosso III Forum Social Mundial .
Essa canção também muito me toca, porque é um convite aos sonhos e sonhadores teimosos. Dizem os autores, nas últimas linhas da canção :
“Assim dizendo a minha utopia/ eu vou levando a vida,/ eu vou viver bem melhor/ Doido prá ver o meu  sonho teimoso um dia se realizar”.
Moreno acreditou e viveu a teimosa revolução criadora, capaz de nos transformar e às nossas realidades, e nos convida a isto! Jesus viveu, morreu e ressuscitou por isto!
Que estas palavras, somadas às várias vozes que complementam esse coro e percurso realizador, aqueçam nossos corações e mentes.

CORAÇÃO  CIVIL
Milton Nascimento e Fernando Brandt
Quero a utopia, quero tudo e mais
Quero a felicidade dos olhos de um pai
Quero a alegria, muita gente feliz
Quero que a justiça reine em meu país
Quero a liberdade, quero vinho e o pão
Quero ser amizade, quero amor, prazer
Quero nossa cidade sempre ensola-rada
Os meninos e o povo no poder eu quero ver
São José da Costa Rica, coração civil
Me inspire no meu sonho de amor Brasil
Se o poeta é o que sonha o que vai ser real
Bom sonhar coisas boas que o homem faz
E esperar pelos frutos no quintal
Sem a polícia, nem a milícia, nem feitiço, cadê poder?
Viva a preguiça, viva a malícia que só a gente é que sabe ter
Assim dizendo a minha utopia
Eu vou levando a vida, eu vou viver bem melhor
Doido pra ver o meu sonho teimoso um dia se realizar.

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Fátima Fontes é Psicóloga Psicodramatista em São Paulo.
E-mail: fatima@pobox.com

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