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CUIDANDO DE HOMOSSEXUAIS EVANGÉLICOS: uma trajetória em três papéis, por Fátima Fontes

Artigos e Notícias
Cuidando de homossexuais evangélicos: uma trajetória em três papéis
“Não quero apenas soluções, mas reflexões. Eu não necessariamente preciso saber qual a solução para tudo no mundo, mas apenas desejo que pessoas juntas possam pensar. Para que várias pessoas pensem, é necessário a desconstrução do pensamento, do senso comum. É perceber as contradições, é desesperar-se, para depois, juntos imaginarmos soluções. E que nunca nos cansemos de tentar.”
(Vinícius Costa Fontes, Retalhos de Pensamentos,
 São Paulo: no prelo, agosto de 2007).
Introdução
É com muita alegria, paixão e alguns temores que compartilho nesta apresentação um pouco de minha trajetória pessoal/profissional nos cuidados às pessoas que carregam o desejo homoerótico e são evangélicos, bem como de suas famílias.
Esta trajetória é marcada por “bons encontros”, no sentido Espinosano da palavra, ou seja, encontros carregados pela grande alquimia de corpos em relação que se afetam positivamente e que ocorreram em meu percurso pessoal/profissional a partir do privilegiado desempenho de meu papel de psicóloga nos enfoques clínico, institucional e familiar.
Terei somente vinte minutos para essa exposição, fato que me obriga a apresentar-lhes uma narrativa sintética de um processo que vem se desenhando ao longo de décadas.
 Os Bons encontros como Psicoterapeuta
“O tormento de uma alma não tem peso, não tem cor,
 não tem prescrição, nem remédio,
não tem predicado nem sujeito. Simplesmente é.”
(Vinícius Costa Fontes, Retalhos de Pensamentos,
São Paulo: Livro Pronto, a ser publicado em agosto de 2007).
Há quinze anos, aproximadamente, fui “intimada” por Deus a ser cuidadora emocional de pessoas em absoluto tormento de alma, por carregarem um “pesado fardo” de desejarem amorosamente e sexualmente pessoas do mesmo sexo apesar de sua experiência de conversão religiosa evangélica.
Quando usei a palavra “intimada”, confesso aqui que pedi muito ao Senhor que me poupasse de duas situações de sofrimento com as quais não me sentia apta a cuidar: pessoas com câncer e homossexuais evangélicos.
Aprouve a Deus e seus desígnios não atender, também esse meu pedido (Ele fez e continua fazendo isso ao longo de minha vida) e cheguei a “recusar” algumas pessoas com esses dois sofrimentos. Neste ponto, identifico-me com Jonas e sua “desobediência”: Não Senhor, Nínive não. Seguirei para Tarsis disse ele insubordinadamente ao Senhor.
E também tive direito à minha “escura noite no ventre da baleia” e de lá também fui esguichada para junto de pessoas com essas duas problemáticas. E aí sim, do lugar da “obediência” e disponível para os bons encontros que poderiam vir daí, tenho sido moída, triturada, virada do avesso, enriquecida e transformada pelas relações com essas pessoas.
Precisei desenvolver várias atitudes que me tornaram melhor pessoa no mundo, a primeira delas foi a humildade. Quem eu pensava que era? De que barro especial eu me cria ter sido concebida? Como poderia eu, face à forte dimensão da torturante dor de pessoas que queriam morrer, por suicídio ou outras formas de morte, pela dura realidade de não se sentirem ouvidas em suas orações para que Deus tirasse aquele “desejo errado” de seus corações, permanecer a mesma, com a mesma “protetora couraça simplificadora da condenação religiosa”? Eram crentes fiéis, muitos nascidos em “berço evangélico” e tendo lutado arduamente para mudarem a direção de seu desejo erótico. E para eles face a essa impossibilidade, só a morte.
Também me deparei com muitas pessoas heterossexuais na direção de seu desejo, mas que carregavam uma hostilidade consciente e mais forte ainda a “inconsciente” ao sexo oposto, fato que os levava a desenvolverem relações familiares adoecidas e adoecedoras: quantas esposas “despedaçadas” por um “núcleo homossexual” trancado e reprimido dentro de seus maridos, que as traíam com qualquer mulher (apesar de membros de Igreja Evangélica e de todo sucesso profissional e social que tinham).  Quantas “filhas” traidoras compulsivas nasceram de lares como esse, citando só alguns dos áridos cenários com os quais precisei conviver ao lado desses homens, proibidos de viver o desejo que carregavam.
Talvez a cena que mais me chocava era a auto-depreciação que essas pessoas experimentavam. Todo seu valor humano, sua dignidade de filhos amados de Deus se apresentavam corroídos. E creio ter sido esse o principal ingrediente de minha transformação: não, Deus estava muito triste com aquilo tudo, Ele não mandara Jesus morrer por aqueles quase-humanos, destituídos da Imago Dei e Ele precisava de meu trabalho de “tapeceira” para fiar com agulha e linhas da alma, os enormes buracos que se criaram na psique e vida dessas pessoas.
E essa tem sido minha grande aventura de “fiandeira” psíquica dos últimos sete anos: tenho presenciado e participado do “milagre transformador” na vida das pessoas de quem venho cuidando e que a despeito de serem homossexuais e evangélicos, têm se erguido deste sombrio escura da não valia para o claro mundo da revaloração. De lá têm podido, dentre outras coisas, fazer escolhas amorosas homossexuais consistentes e que têm tornado suas vidas enriquecidas, como o fazem os bons encontros.
Os Bons Encontros como Psicóloga Institucional – a experiência UPG
Como as bênçãos em minha vida costumam vir bem acompanhadas por outras bênçãos, há três anos tenho vivido a desafiante possibilidade de ajudar a “matrizar” um grupo de ajuda mútua para homossexuais.
Neste outro “bom encontro de minha vida” tenho vivido a máxima de Jacob Lévy Moreno de que “um homem é o maior agente terapêutico de outro homem”. E de fato, se já era realizador participar da transformação que descrevi acima na vida de algumas dessas pessoas, tem sido espetacular a experiência de vê-los avançarem na direção uns dos outros, de buscarem seus irmãos homossexuais evangélicos que “caíram no mundão” já que estavam “condenados” a ter que matar sua outra identidade: a de evangélicos.
E tem sido essa a grande missão proposta pelo grupo de Ajuda Mútua: UPG – Unidos pela Graça, que eu conheci recém-nascidos, ainda sem nome. Não esperei ser convidada, me ofereci com a cara e a coragem para ser uma das consultoras do grupo, queria ter a oportunidade de contribuir para dar um enquadre mais formal ao grupo, cuidando de sua liderança, o G6, que depois virou G5.
Em encontros bimensais ou trimestrais, temos podido juntos tratar de configurar o grupo, trabalhar as várias fases de desenvolvimento do grupo, seus impasses e o aperfeiçoamento da proposta. Temos trabalhado com o G5 em vários formatos: reuniões de discussão, grupo focal e Sociodrama Comunitário. Desenvolvemos e treinamos um modo de discutir as questões de ajuda mútua, sem fazer Psicoterapia de grupo, o que fugiria da proposta de ajuda mútua, e as nomeamos de “Encontros compartilhados”. E seria nesses encontros que se materializaria a grande proposta do grupo.
Exatamente essa proposta dos “encontros compartilhados” tem sofrido, nos últimos meses, certo esvaziamento, e já estamos parindo novos arranjos para enfrentar essa fase do grupo. E é esse o meu maior fascínio com essa experiência: esses homens e mulheres em processo de crescimento, não se abatem em suas impossibilidades e me deixam ajudá-los na superação de cada um dos obstáculos que lhes aparece.
Foi também em um desses nossos encontros com o G5 que surgiu a dura realidade do sofrimento familiar da maioria das famílias desses homossexuais evangélicos, que se sentia, quando sabia da homossexualidade de seus filhos, em falta, em erro, destruídas no alicerce de suas crenças: no que eles haviam falhado diante de Deus, para experimentarem um sofrimento deste tamanho? Dentre outras angústias.
Outra vez me dispus a fazer aquilo que mais me fascina fazer como Psicóloga: cuidar das famílias em sofrimento. E essa é a terceira e última experiência que contarei a seguir.
Os Bons Encontros como Terapeuta Familiar – Os chás com as famílias
“Ponde, pois, estas minhas palavras no vosso coração e na vossa alma;
 ataia-as por sinal na vossa mão, para que estejam por frontal entre os olhos.
Ensinai-as a vossos filhos, falando delas assentados em vossa casa,
E andando pelo caminho, e deitando-vos e levantando-vos”.
Deuteronômios 11:18-19
Retomando um pouco da dinâmica do sofrimento dobrado que se infringe sobre os homossexuais evangélicos, torna-se desolador acompanhar a dor dos pais evangélicos ao saberem que algum de seus filhos carrega o desejo homoerótico.
Tivemos no nosso primeiro encontro com as famílias que intitulamos “Chá com as famílias” a clara explicitação desse cenário desolador. Usando a Metodologia Sociodramática, intitulei esse Sociodrama de: “A família que somos a família que desejamos ser”, que faz parte de uma série de encontros familiares que visam desidealizar as relações familiares e instrumentar melhor as famílias para superar seus impasses e desenvolver suas potencialidades.
Aquecidos pelo precioso conto de Rubem Alves intitulado: “O gato que gostava de cenouras”, os vários familiares presentes foram subdivididos em grupos para compartilharem suas experiências. A seguir foram convidados a representarem dramaticamente o que compartilharam e foi nessa etapa que vimos desenrolarem-se as mais variadas expressões da dor vivida por essas famílias.
Elejo uma dessas cenas para demonstrar o cenário sócio-emocional dessas famílias. Nesse grupo havia uma mãe e três homossexuais masculinos (que não eram seus filhos) e a cena apresentada foi a de uma mãe “desabando” e seus filhos tentando segurá-la. Foi sofrido e muito tocante acompanhar o choro compulsivo dessa mãe nesse momento, que descobrira a poucos dias que seu filho era homossexual.
Mas também foi possível dar continente à sua dor, ajudá-la a se sentir menos impotente e menos “culpada”. Mas a capacidade de partilha e ajuda mútua que é suscitada numa vivência dessas torna-se numa experiência de humanização transformadora. Ao final desse nosso primeiro encontro, um pai, um senhor já de certa idade pediu a palavra e chamou o seu filho para o centro da roda, em seguida explicou: “gostaria, nesse momento, de dar um abraço no meu filho como forma de abraçar todos vocês, cujos pais não estão aqui, e que talvez não tenham condições de abraçá-los, eu o faço por eles”.
No nosso segundo encontro com as famílias, cujo Sociodrama intitulou-se: “A família como espaço de afeto e respeito”, recebi outra vez bênção dobrada além das mães presentes, havia uma avó (e as pessoas que me conhecem sabem a importância que tem na minha vida esse personagem avó, e o quanto o vínculo avós e netos me é caro sendo inclusive o meu objeto de estudo de doutoramento).
Aquecidos desta vez por uma deliciosa “dança circular” que esquentou nossos corpos (estava fazendo 13 graus na cidade) e coração, outra vez as famílias foram divididas em grupos, e aí meu coração exultava por sentir a riqueza do compartilhar de mães, das quais uma com quase oitenta anos explicava ao seu sub-grupo a grande amorosidade de sua filha em prepará-la para ter a notícia de sua homossexualidade. Relatou que foi sofrido, mas foi libertador saber da verdade sexual da sua filha e que se o Senhor Deus não havia nos condenado por nossa condição de limitações, ela compreendera que também poderia seguir amando e respeitando sua amada filha.
Neste encontro as famílias foram convidadas a dramatizarem seu compartilhar e que rica situação, quanta qualidade dramática todos mostraram. Vimos se apresentando dramaticamente a força do vínculo afetivo na família que nem sempre acertava em seus movimentos, mas cuja grande tônica era realmente o afeto e o respeito.
Conclusão
“Não é somente porque não se vê a luz no fim do túnel,
que a saída não existe”.
(Vinícius Costa Fontes, Retalhos de Pensamentos,
 São Paulo: no prelo, agosto de 2007).
Finalizo essa apresentação compartilhando por fim de minha preocupação pessoal e profissional sobre o quanto ainda precisaremos caminhar muitas milhas em busca de “saídas” e “meios” para ajudar tanto os homossexuais evangélicos quanto a nossa Igreja Evangélica que nos pede subsídios para lidar com a questão homossexual em seu meio.
Mas, conclamo a todos nós a que tenhamos humildade e coragem para adentrar nesse “túnel escuro” com muita vontade de enxergar todos os elementos que compõem a complexidade dessa questão. Que possamos ter a vontade de contar sobre nossos percursos e descobertas e assim engrossar a fileira reflexiva, afinal necessitamos estar atentos para “perceber as contradições” e necessitamos ter condições de nos “desesperar-nos”, para depois, juntos imaginarmos soluções. E que nunca nos cansemos de tentar.”
(Vinícius Costa Fontes, Retalhos de Pensamentos,
 São Paulo: no prelo, agosto de 2007).
Fátima Fontes é Psicológa, Psicodramatista e-mail:  fatima@pobox.com

 

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