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Covid-19: a dor de não poder dizer adeus aos nossos mortos

O que causa aos enlutados a falta do ritual do adeus, do rito da passagem

Introdução 

“Pouco sabemos do sutil intercâmbio entre vivos e mortos, de sua dinâmica na atualidade (ano de 1976 – quando o livro foi publicado – grifo meu). Parece que esta relação continuará a mudar como função de nosso sistema de remoção dos mortos. O que quer que façamos dos mortos terá algum impacto em nossos sentimentos”.

(Robert KASTENBAUM, Ruth AINSBERG, livro: “Psicologia da Morte”. São Paulo: Novos Umbrais/Editora da Universidade de São Paulo, 1983).

Sigo, com um aperto no coração, refletindo com vocês, queridos leitores sobre nossa frágil situação de pandemia por Covid-19, que dizimou nossos 50.058 irmãos e irmãs em nosso solo brasileiro, até hoje dia 21 de Junho de 2020, dia em que celebramos nosso “solstício de inverno” no hemisfério sul, que marca nosso “novo tempo”, em que os dias demorarão a clarear e nossas noites se prolongarão. E como, esse nosso atual cenário, reflete sobre e em nossas inter-relações.

A luta continua, em várias frentes de batalhas: seja nos cuidados pessoais para diminuição do contágio social, pelo distanciamento social, seja nos planos, bastante atabalhoados e desencontrados de todos os graus de governança política, desde os comunitários, passando pelos municipais, estaduais e se superando em estupidez e negligências, pelo atual Governo Federal.


Os profissionais da saúde prosseguem na luta: bravos guerreiros! 

Mas a luta prossegue nos outros fronts, como o de todos os profissionais que seguem, como bons guerreiros, enfrentando os riscos de morrerem da doença, saindo de suas casas, ou muitos, nem voltando para elas, há meses, para darem suporte aos doentes, e sobretudo, apoiando a incessante luta dos que precisam trabalhar, diuturnamente, para que os outros trabalhadores sejam transportados, para que a economia se mova, para que nossas casas e logradouros, não apodreçam com seus lixos produzidos sistematicamente, para que nossos pedidos sejam entregues, de acordo com nossas necessidades, para que nossas tecnologias funcionem, para que nossa energia elétrica não colapse, para que tenhamos água suficiente para que possamos lavar as nossas mãos, “n” vezes ao dia e também possamos lavar nossos corpos exaustos, por tudo o que estamos atravessando. Louvamos e celebramos a vida de cada um de vocês que nos ajudam a viver.

Elenco, ainda, a luta de voluntários, organizações e instituições, que não estão esperando os comandos oficiais e governamentais, que são o mais das vezes, estapafúrdios, que mais desorientam que orientam, e para além desse caos governamental, saem de suas trincheiras para levar auxílios básicos a todos os milhares de concidadãos nossos, que “excluídos” da condição cidadã, pela injusta e desumana distribuição de riquezas e recursos entre nós, vão “aonde o povo está”, e os socorre, em cuidados mínimos e básicos.


A todos esses heróis e guerreiros, a nossa eterna gratidão

Mas, quero refletir, mais amiúde, nesse texto, sobre a batalha dos que estão perdendo seus amados e amadas, sem que possam dar o último beijo e o último adeus. Corpos ensacados, e rapidamente enterrados. Dor da dor, que estrangula o grito e dilacera a alma.

E, num texto seguinte de alguma forma, desejo legitimar, também, a dor dos que estão perdendo seus empregos e com eles, suas esperanças por um mundo melhor. Essa dor, dói demais também. Sejam fortes e também lhes conto que vocês podem fraquejar, acolham suas dores, elas também são legítimas. Mas teríamos um texto muito longo, ele virá na próxima reflexão.

A falta do ritual de adeus: morte sem corpo X Profissionais da Saúde que acompanham o último suspiro dos convalescentes por Covid-19

Não há como não nos entristecermos pela situação atual de enlutamento que atravessamos nessa pandemia.

Havíamos, há cerca de 20 anos, retornado ao tempo em que “morrer não era mais um caso sanitário e médico”. A medicina, “inimiga da morte”, desde a era moderna, criara um feudo de prescrições em que morrer deixou de ser um direito e um ato comunitário, e passou a simbolizar o “fracasso da onipotência curadora”, e precisou rever esse “lugar de onipotência”, a partir de muitas pesquisas e estudos, criando, assim, a área médica dos “cuidados paliativos”, que trocando em miúdos significa: deixaremos vocês morrerem fora das UTIs, podem ser retirados fios e tubos que os “obrigam” a seguir “vivos” e mortos, ao mesmo tempo.

Essa reconquista encontrou-se em 2020, com a pandemia por Covid-19, e aí tudo se revirou outra vez… desta vez, como em tempos de guerra, a morte passou a levar os homens e mulheres aos milhares, em toda a terra, e essa tremenda reviravolta, sequer permitia os “cuidados”, quanto mais os “cuidados paliativos”.

Por que o papel de todos os profissionais da saúde transcende à medicina   

A violência e o sofrimento provocados pelo contágio desse vírus, têm exaurido os atuais profissionais da área da saúde, que têm voltado, aí sim, ao seu verdadeiro papel: o de lutarem pela vida humana, pela minoração de sofrimentos e dores. E nesse complexo cenário temos visto os médicos e profissionais da área médica e saúde, carregarem em seus jalecos, não os escudos e capas de super-heróis, mas sim o coração que insiste em sentir: compaixão e solidariedade.

Eles têm sido os que, sem preparo para a função, têm feito o que padres, capelães, religiosos e íntimos dos “moribundos” faziam, auxiliam os que morrem a morrer. Pegam em suas mãos, e como podem e sabem, ajudam as pessoas a viverem o “vale da sombra da morte”, a darem o último suspiro e a partirem.

Mas eles precisam entregar o corpo dos que morrem em sacos, que impedirão o ritual do adeus familiar e coletivo. Sem poder vestir e preparar esse que morreu de Covid-19, diante de um caixão fechado, só os familiares poderão, em pequeno número, afastados um do outro, darem o último adeus ao que parte.

O que causa a falta do rito da passagem? 

Essa falta de “rito de passagem”, adoece vidas em toda a sua integralidade: física, emocional, social e espiritual. Os ritos ajudam os humanos a atravessarem seus ciclos, e sua supressão “impede”, dentre outras coisas, a entrada no momento seguinte do ciclo vital.

Precisaremos aprender a viver um “novo rito”, onde o adeus vá ser dado, pela memória, pelo acolhimento dessa “impossibilidade do adeus real”, precisaremos prantear muito, até que seque o nosso pranto e assim, possamos entrar no ciclo de vida seguinte.

Caminho para enfrentar os sofrimentos do adeus que não pudemos dar: a esperança de um novo amanhecer

Terá que ser “despacito, muy despacito”, como o dizem nossos irmãos latinos, precisaremos aprender a sermos “inaugurais”, nesse novo modo de viver a travessia do adeus e da morte.

E como tudo o que é inaugural, precisaremos de muita autocompaixão e autoperseverança. Afinal, errar, desesperar, melhorar, piorar, se angustiar, melhorar, piorar, se revoltar, se indignar… serão ciclos repetitivos, até que nos sintamos realmente, mais aliviados desse fardo imposto a cada um de nós.

Qual é a principal atitude que devemos tonar, neste momento, em relação a nós mesmos?

Por isso, o principal a fazer é o acolhermos a nós mesmos, aos nossos estados, à nossa instabilidade. Assegurando, a cada momento, a nós mesmos que: tudo passa, e que não há dor que perdure para sempre, nem bem que não se acabe.

Então, quando conseguirmos, poderemos criar um lindo “jardim de boas memórias”, de acesso restrito: só você verá as imagens ali projetadas: os melhores momentos, as pequenas, médias e grandes alegrias, a gratidão e a gratidão por tudo o que essa pessoa lhe passou, lhe desafiou e lhe deu.

Um coração agradecido, guarda um bálsamo, que é cicatrizante para nossas tristezas e saudades. Agradeça, agradeça e outra vez agradeça e viva a cada dia o seu mal, como nos orientou Jesus Cristo, em seu Sermão do Monte.

E para terminar…

Nossa, estou bem cansada ao final desse texto, minhas costas ardem, o tema foi difícil, mas pude abordá-lo. Para isso nasci: guerreira, de uma mãe menina/guerreira de quatorze anos. Lutar, me foi incorporado ao viver, como o cuidar e o me esperançar, também.

Desejo ter podido cuidar um pouco de mim e de vocês nessa reflexão e gostaria de finalizar com uma canção esperançosa, eu a recebi hoje, de meu filho mais novo, e imediatamente soube que ela seria nossa canção de encerramento, do texto que ainda não escrevera, mas que tinha em mente.

Ela se intitula “Clareou”, é do Diogo Nogueira, em seu CD Alegria, e como já contei a vocês em outros textos, segundo o filósofo do século XVII, Baruch Spinosa, se a tristeza é um afeto que baixa a potência de ação, é o afeto da Alegria, aquele que aumenta a potência de ação. Mas não se trata de uma alegria leviana, de “hiena” que se alegra, negando a dor. Mas os convido a uma alegria ético-política, que nos ajuda a nos reinventar nesse momento, e que aumenta nossa esperança, confiança e nossos esforços por um amanhã melhor, que insiste em nascer, sempre.

Assista ao clipe da música:


Fatima Fontes, Psicóloga Clínica pela UFPE, Especialista em Psicodrama e Terapia Familiar; Mestre em Psicologia Social PUC/SP; Doutora em Serviço Social PUC/SP, com Estágio de Estudos de Doutoramento no Centre Edgar Morin, Paris, Doutora em Psicologia Social, USP. Pesquisadora do Laboratório de Psicologia Social da Religião- PsiRel USP. Professora de Pós-Graduação e Coautora e Co-organizadora de vários livros: Ex: Religiosidade e Psicoterapia, Editora Roca 2008

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