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COMO JESUS CUIDAVA DAS PESSOAS, por Karin Wondracek

Artigos e Notícias

Em português temos dificuldades para caracterizar a ajuda a outra pessoa. Várias palavras têm sido oferecidas: cura de almas, aconselhamento, terapia, pastoreio, poimênica… cada uma com seus méritos e limitações. Ultimamente, a expressão cuidadotem comparecido com maior freqüência, e auxiliado a compreender a amplitude que envolve o auxílio a alguémEsta palavra se aproxima da palavra alemã Seelsorge – Seeleé alma; Sorge tem conotações de “cuidar de”, “preocupar-se por” e “providenciar sustento” . Juntando estes significados chega-se perto da expressão “cuidar da alma”. Mas para não ser dualista e separar psiquismo e corpo, é preferível suprimir o adjetivo alma, e ampliar a questão: Como Jesus cuidava das pessoas que encontrava? Seu modo de acolher e tratar sofredores contém lições que servem tanto a terapeutas como a religiosos. Esta será a nossa questão.

 

CUIDADO-SURPRESA

Uma das características do cuidado que Jesus praticava era o de surpreender a pessoa com suas atitudes – relembrem Marta e Maria, Zaqueu, a mulher que ungiu Jesus, a samaritana no poço – em  psicanálise se diria que Ele não se deixa fixar pela transferência, isto é, pelas expectativas infantis que as pessoas projetam sobre Ele.

Com este surpreender, Jesus traz para primeiro plano o que estava na margem – a “boa parte” de Maria, irmã de Marta, o coração sofredor de Zaqueu, o amor da mulher que o ungiu, a sede interna da mulher do poço. Desvelar o oculto lembra as parábolas que Jesus contou sobre encontrar o que estava perdido em Lucas 15.

As ações de Jesus Cristo consagram-no como aquele que cuida do nosso ser, resgata em nós o que estava perdido, oculto pelas aparências, pelas defesas. Sem pretender igualar um saber com o outro, mas apenas para ilustração, volto à linguagem psicanalítica, e através desta se diria que Jesus desvela o que está no inconsciente. Mas atenção: o cuidado de Jesus não é no sentido de revelar o pecado oculto, não, muito pelo contrário, tem como alvo mostrar o afeto que estava oculto – a capacidade de amar, a sede de ser amado – lembrem Marta e Maria, Zaqueu, a mulher do perfume, a mulher do poço.

Como conseqüência, o pecado até aparece, mas em outra dimensão que a da acusação – o pecado é ligado com o amor oculto, interpretado como desvio do alvo original, como tentativa falhada de buscar o que faltava – este o significado do dinheiro de Zaqueu e dos maridos da samaritana.

Em psicanálise se diz que a cura acontece quando o sintoma é ligado ao conteúdo que estava reprimido, porque desta forma o sintoma perde o sentido. Algo semelhante acontece com as pessoas que são cuidadas por Jesus – Zaqueu devolve o dinheiro, a samaritana sabe do que tem sede, Marta reorienta seu desejo de adorar pelo servir..

O cuidado pela via do amor desmancha a carcaça de defesa que estas pessoas montaram ao redor de si e, desta forma, “pega-as pelo contrapé”. Pode-se imaginar o que teria acontecido se Jesus tivesse ido pelo caminho – infelizmente muito usual nos meios cristãos – de denunciar diretamente o pecado: como seria a conversa com Zaqueu? E com a mulher do poço? Teria levado a este impacto? Resultaria em mudança de vida?

Mas o que estava por detrás da atitude de Jesus? Será que é algo que podemos aprender, ou faz parte de capacidades sobrenaturais que só Ele tem?

O Evangelho de João registra na oração de despedida de Jesus, uma espécie de resumo do seu ministério e do que realmente importa: a vida eterna é esta: que eles conheçam a TI, o Deus único e verdadeiro e aquele que enviaste, Jesus Cristo. O cuidado ministrado por Jesus tinha como objetivo maior revelar a Deus como aquele que tem o poder de reconectar a pessoa com sua essência, e, desta forma, saciar a sede interior. Jesus não usava seu tempo para revelar o pecado em si, mas para mostrar o amor do Pai, e deixar que a percepção deste amor iniciasse a restauração e livrasse a pessoa dos caminhos insensatos.

Mais um pouco de psicanálise: muitas pessoas têm dificuldades em receber e dar amor. Este olhar crítico é característico de uma das doenças mais comuns dos tempos atuais – a neurose obsessiva. Teoricamente, trata-se de uma pessoa que regrediu da fase edípica para a fase anal sádica. Isto, porque experimentou impulsos amorosos e agressivos intensos e por isto ameaçadores, a ponto destes sofrerem severa repressão e serem deformados para formas de expressão da fase anterior. Da combinação do amor reprimido e das defesas contra o surgimento do mesmo resultam estas características estranhas: a pessoa trata a si com rigor torturante, preocupa-se até as minúcias para cumprir regras, acusa-se meticulosamente de tudo, controla a si e aos outros, leva tudo ao plano intelectual, não sente nem expressa afeto.

A deformação neurótica também contamina a religiosidade: ao invés de amor e alegria, há controle, repressão, sufocamento do afeto, culpabilização de si e dos outros. Este quadro combina com as denúncias feitas por Jesus contra os fariseus – chamou-os de “sepulcros caiados” – pessoas que sufocaram os impulsos e descoloriram sua vida. Por dentro há morte, há enrijecimento da vida, restando apenas o controle mecânico e o apego às regras. Pfister[1] agradecia a Freud por resgatar para os tempos atuais muitas das verdades proferidas por Jesus Cristo – para a teologia cristã e para a psicanálise, esta é uma forma de distorção do amor. A religiosidade obsessiva, tão controladora de si e dos outros, expressa toscamente, na forma de sintoma, a perda da conexão íntima com o ABBA Pai.

O cuidado de Cristo, em última síntese, quer ajudar a pessoa a perceber o  amor do Pai e a reconectar-se com esta fonte de amor maior. Neste sentido Jesus se apresenta como via de religação: Eu sou o caminho, a verdade e a vida: ninguém vem ao Pai senão por mim.

 

CUIDADO-ICONOCLASTA

O convite para se deixar amar nos leva para outra questão – qual a representação de Deus que construímos em nós? O terceiro mandamento, de não fazer para si imagens de Deus, tem de ser compreendido também simbolicamente: talvez não façamos esculturas de pedra, mas por vezes construímos imagens mentais de Deus mais duras que a rocha, tão frias que impedem que nós e as pessoas ao redor percebam o amor do Pai.

No templo de Jerusalém, o lugar da morada de Deus, o Santo dos Santos, era completamente escuro. Lá acontecia o encontro com o Sagrado. Será que conseguimos nos despir das velhas imagens e encontrar Deus totalmente no escuro? Foi o que Maria fez ao aceitar a proposta “indecente” do anjo de ficar grávida enquanto noiva e dizer: “Faça-se em mim segundo a tua palavra.”

Para experimentar a ausência de imagens, imaginemo-nos caminhando de olhos vendados durante alguns minutos. Qual a sensação? Que temores e fantasias nos sobrevêm?

Fechar os olhos causa-nos desconforto; é difícil abrir mão das representações visíveis e seguras, ligadas a buscas de consolo durante o desamparo infantil. O convite da escuridão é para abandonarmos os canais de percepção costumeiros e nos abrirmos para outros modos de escutar, cheirar, tatear e saborear a presença de Deus.

O desafio maior será convidar outras pessoas a fazerem o mesmo, sem precisar que adorem a imagem mental esculpida por nós. Cuidar do desenvolvimento espiritual não  é mostrar a nossa representação de Deus para o outro – isto somente Jesus podia fazer com fidedignidade – mas ajudar esta pessoa a se abrir para que Deus mesmo se revele pelo seu Espírito. O Espírito testifica ao nosso espírito quem é Deus.

Por estes riscos é temerário se fixar em práticas definidas por ‘aconselhamento’ – estas implicam muitas palavras da nossa parte – Maria disse “que se cumpra a Tua palavra”, mostrando a abertura para o novo.

Em psicanálise encontramos o alerta para que o terapeuta não influencie a pessoa com seu desejo, pois ela está depositando nele muito do seu amor e ódio infantil – está “transferindo” sobre ele estes sentimentos arcaicos, em clima de muita dependência. Isto  situa o analista num lugar de muito poder e responsabilidade, e é preciso lidar com cuidado com este feixe de afetos.

Richard Rohr[2] ressalta que o Deus-Pai do filho pródigo se parece mais com uma mãe – sempre disposta a acolher e a perdoar. O autor conclui que muitas atitudes de Jesus se mostram mais próximas do universo feminino que do masculino, e justamente por aparecerem num homem é que surpreenderam: untar o olho do cego com saliva e barro, tocar a língua com saliva, contar parábolas sobre situações domésticas, como fermento, lâmpada, se alegrar com as vizinhas, acolher o filho que estava perdido.

Considerando o resgate das dimensões femininas do Evangelho, podemos nos perguntar: permitimos que nossa ternura seja usada para expressar os aspectos mais maternos de Deus? Encarnamos o “enxugar toda lágrima do olho”[3]; colocar debaixo das asas como uma galinha, deixar a alma amamentada”(Sl 131)?

Como está nossa imagem de Deus – é pai e mãe? Ousando um pouco mais, o Santo dos Santos não será como o útero, o lugar escuro no qual fomos tecidos, como expressa o Salmo 139? Até a expressão traduzida por misericórdia tem, no hebraico, a raiz da palavra útero[4]. André Chouraqui traduziu o ser misericordioso por capacidade de matriciar, isto é, de ser

um daqueles que assumem entre seus irmãos a função principal de IHVH [Javé], que é a de ser a matriz do Universo. (…)  A matriz recebe, mantém e dá a vida, oferecendo ao feto, a cada segundo, tudo de que ele precisa para viver. Assim ElohÎms, matricial, tem função de matriz para o Universo e cada uma de suas criaturas. O mesmo acontece com o que ama IHVH, que só vive para matriciar o mundo. [5]

Deus é útero, quando nos faz nascer de novo, para nos recriar e dar a identidade de filho e filha de Deus. Deus nos encontra no escuro das crises, e Ele próprio, através do seu Filho, passou por situações de extrema escuridão e desamparo.

Cabe perguntar: quando estamos conversando com uma pessoa feita à imagem e semelhança de Deus, deixamos que nossa fala e gestos simbolizem os lugares corporais que remetem ao processo materno de cuidar?

Pela psicanálise, este é o caminho para o desenvolvimento da capacidade de gerar vida. Para crescer, a menina precisa abandonar a fantasia de casar com o pai, renunciando a tê-lo exclusivamente para si. Ali inicia um longo caminho que consiste em voltar-se novamente para a mãe e identificar-se com ela e com sua fecundidade. Desta forma, a menina solidifica as características femininas e forma a base para crescer como mulher e mãe.

Para o menino, o desafio consiste em renunciar à pretensão de ter a exclusividade do amor da mãe, e passar a se identificar com o pai e a desenvolver afetos sublimados para com ambos. Os estudos feministas apontam que o homem estará mais inteiro se resgatar sua ligação de ternura com a mãe, pois assim não precisará mais desvalorizar o feminino como defesa perante ela[6]. Se a característica divina de misericórdia se apóia na raiz da palavra útero, há um percurso a fazer no homem e na mulher, no resgate da capacidade procriadora e geradora.

Será que no desenvolvimento da fé madura conseguimos que a representação de Deus faça este longo caminho? Permitimos unir aos aspectos mais racionais o nosso afeto? Deixamos que nosso ser – tanto homem quanto mulher – adquira “ternos afetos de misericórdia”? Desenvolvemos estas qualidades de Jesus para que possamos cuidar amorosamente dos outros?

Nosso psiquismo está fundado em representações, o 3º mandamento é uma tarefa impossível no plano mental, mas precisamos nos conscientizar destas imagens ligadas à nossa história infantil e transformá-las, ao chegarmos sempre mais a Deus e conhecermos melhor quem Ele é. Neste sentido, a psicanálise confirma o Evangelho, ao encorajar a fala e o conhecimento dos próprios impulsos e idéias. Tornar consciente nossa representação de pai e de mãe, com suas deformações pode ser fator libertador, pois possibilita mudanças nos relacionamentos com o mundo interno e externo.

O cuidado cristão, isto é, o cuidado em nome de Cristo, trabalha para tornar consciente o amor que se escondeu em meio aos temores infantis, e assim possibilita que se chegue a imagens de Deus menos ligadas aos medos de retaliação e castigo. O cuidado cristão quer ajudar a aprofundar a ligação com o ABBA-PAI – paizinho.

Pfister comentava, numa carta a Freud, que o acolhimento amoroso de Deus na parábola do Filho pródigo tinha como pano de fundo “uma regressão para aquela fase infantil, na qual a criança ainda não é tratada segundo a medida do bem ou do mal, mas simplesmente é servida com amor e bondade”[7]. São tempos nos quais pai e mãe apenas cuidam, sem impor condições. Este cuidado primordial, cuidado-matriz, se situa no tempo e no espaço próximo à matriz-útero, é o protótipo que melhor representa a misericórdia de Deus.

Como desenvolver esta capacidade? Jesus deu a conhecer o Pai por suas palavras, histórias, mas principalmente por estas atitudes surpreendentes. O falar corre o risco de alimentar a neurose obsessiva, pela racionalização, intelectualização, isolamento. Está certo, Deus nos deu a Sua Palavra, mas além disso ele deixou algo bem mais vivo – seu Espírito.

Estranho à linguagem patriarcal, o Espírito Santo, no original, é do gênero feminino – é aConsoladora que revela ao nosso espírito quem Deus é. Atitude feminina terna, um sopro, que remete o outro – o Pai. Ruah, a Consoladora[8], remete ao papel de cuidadora, de aconchego, de sopro de vida. Quem tem o Espírito não precisa de conselhos, precisa de alguém que o ajude a ouvir este Espírito falando a seu espírito, precisa de silêncio para escutar em si mesmo e na Palavra a voz que lhe ensina quem é Deus.

Neste sentido, a atitude analítica de escutar mais do que falar parece mais indicada, ela confia que a pessoa tenha capacidade própria de discernir, e com isto deixa livre caminho para o Espírito Santo convencer o espírito humano.

Vale a pena reler os evangelhos e procurar neles o modo como Jesus revelou o Pai – temos nos preocupado com tantas coisas menos essenciais que “crescer na graça e no conhecimento de Deus.”

Jo 17:3  Ora, a vida eterna é esta: que eles te conheçam, a ti o Deus único e verdadeiro e aquele que enviaste, Jesus Cristo.

v. 6 manifestei o teu nome aos homens que do mundo me deste. Eram teus e mós deste e eles guardaram a tua palavra.   v.7,8 Agora reconheceram que tudo quanto me deste vem de ti, porque as palavras que me deste eu lhas dei e eles as acolheram e reconheceram verdadeiramente que saí de ti e creram que me enviaste.

v.26 Eu lhes dei a conhecer teu nome e lhes darei a conhecer ainda mais a fim de queo amor com que me amaste esteja neles e eu neles.

A finalidade maior do cuidado de Cristo era de que o amor do Abba-Pai estivesse em nós. Tudo isto foi dito por Jesus às vésperas de morrer, de transformar em atos o maior amor. Foi este o modo supremo de “dar a conhecer ainda mais.”

 


[1] Cf. O amor e seus destinos: A contribuição de Oskar Pfister para o diálogo entre psicanálise e teologia, da autora. São Leopoldo: Sinodal, 2005.

[2] ROHR, Richard. Simplicity: the freedom of letting go. Crossroad, 1991/2003.

[3] Apocalipse 21.4.

[4]  rahamíms (misericórdia) deriva de réhem, ‘a matriz’, o útero da mulher.

[5] A Biblia: Matyah – O evangelho segundo Mateus. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 87.

[6] Cf. L. BOFF & R. MURARO – Masculino e feminino: uma nova consciência para o encontro das diferenças. Rio de Janeiro, Sextante, 2002; M. STROHER, A. MUSSKOPF & W. DEIFELT. À flor da pele: ensaio sobre gênero e corporeidade. São Leopoldo: Sinodal, 2004 e N. CHODOROW, Psicanálise da maternidade, Rio de Janeiro, Rosa dos Tempos, 1990.

[7] Carta de Pfister a Freud, de 30.7.1030, Cartas entre Freud e Pfister, Viçosa: Ultimato, 1998, p. 145.

[8] A este respeito, ver Pe. Alberto IBANEZ, S.J. .Ruah Santa: a terceira pessoa divina.Rio de janeito: Comunidade Emanuel : Louva-a-Deus, 1994. Tradução de Terezinha Dutra.

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Karin Hellen Kepler Wondracek

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