A IMPORTÂNCIA DA INTERVENÇÃO EM CATÁSTROFES, por Esly Carvalho
A Importância da Intervençao em Catástrofes: novas abordagens para o acompanhamento
Esly Regina Souza de Carvalho, MSc, LPC
Além da caridade natural humana, por quê devemos nos preocupar em fazermos intervenções em situações de grandes catástrofes? Há muitas razões para isso, mas quem sabe a metáfora da mulher de Ló seja a que pode nos explicitar isso de forma mais prática e atual.
Lembro-me bem de uma apresentação do Dr. David Seamands, autor de um dos livros pioneiros da cura interior , em Toronto em 1991. Entre outras coisas que ele falou, citou a passagem de Jesus em Lucas: Lembrem-se da mulher de Ló. Em algum momento as coisas do passado precisam virar passado. Relendo a história da destruição de Sodoma e Gomorra, sempre me pergunto, como boa Bibliodramatista, o que será que fez com que a mulher de Ló olhasse para trás? Será que ela ficou curiosa e queria ver o que estava acontecendo? Será que ela quis dar um olhar de despedida a uma cidade onde ela morou durante um tempo da sua vida? Será que havia alguém importante que ela estava deixando para trás? Será que ela ficou apavorada com o barulho, com o cheiro, e se desnorteou? Nunca saberemos, mas fico com essa metáfora do trauma: alguém que se congelou ao olhar a tragédia, eternamente presa à imagem da destruição.
As pessoas que sofrem uma tragédia como as que vivemos no Brasil nestes últimos anos também correm um alto risco de se “congelarem” nos seus traumas. Quando vivemos uma experiência tão “over” que não conseguimos digerir tudo que nos aconteceu é muito fácil congelar. Aliás isso acontece não apenas emocionalmente. Quem sabe a emoção congelada seja na verdade a lembrança congelada neuroquimicamente em um cérebro que não conseguiu fazer o processamento normal e natural que deve fazer com as nossas vivências diárias. Todos conhecemos o ciclo do sono e que quando sonhamos também temos o movimento ocular rápido ou sono REM (Rapid Eye Movement sleep, em inglês). Estes movimentos oculares nos ajudam a processar as coisas que nos acontecem e que arquivam nossas experiências de forma que vão se tornando passado. Mas quando vivemos uma experiência traumática como essas nem sempre nosso cérebro consegue “metabolizar” tudo que nos aconteceu. E nos tornamos “estátuas de sal” – pilastras congeladas eternamente presas, olhando à destruição do passado. Mesmo que externamente consigamos ir para frente, dentro de nós – uma parte nossa, um papel meu, se consegelou, e ficou preso a esta experiência passada.
Se pudermos começar a entender o peso dos traumas nas nossas vidas, poderemos começar a buscar ajuda adequada para nossa recuperação. Acredito que nunca nos recuperamos do grande trauma que foi sermos expulsos do Eden: obrigados a viver uma vida imperfeita, para a qual jamais fomos destinados; não conseguimos acostumarmos com essa imperfeição, e isso em si, gera muitos dos nossos traumas. “Esperamos” que as pessoas nos tratem bem – e não o fazem. Não podemos acreditar que uma amiga possa nos trair a confiança – mas isso acontece. Não podemos acreditar que a natureza possa ser tão poderosa a ponto de destruir tudo e todos que amamos – e vem a enchente, ou o deslizamento de terra que arrebenta com a normalidade das nossas vidas em um instante. Não podemos crer que Deus possa permitir tudo isso – e Ele permite.
A consequência destes “congelamentos neuroquímicos” faz com que comecemos a ter papéis em nossas vidas que ficam amputados. Não temos mais acesso aos recursos que estes papéis deveriam nos dar. Se a tragédia aconteceu quando eu tinha 13 anos, há alguém que mora lá dentro que também tem 13 anos e continua olhando para o terror do que aconteceu. Enquanto não encontrarmos formas de “descongelar” essas lembranças – estas áreas cerebrais que guardam estes traumas – este papel continuará congelado, empatando minha capcidade de gerar novas soluções adaptativas para a vida, ou mesmo condutas mais funcionais.
Hoje em dia podemos dizer que não se faz mais psicoterapia como antigamente. Temos as ferramentas necessárias para começar a desvendar os mistérios do cérebro, e encontrramos uma das portas de acesso ao reprocessamento de lembranças. Através do EMDR (Eye Movement Desensitization and Reprocessing – Dessensibilização e Reprocessamento por meio dos Movimentos Oculares) e do Brainspotting , ambas psicoterapias de reprocessamento, podemos ter acesso direto às áreas no cérebro onde essas lembranças estão guardadas e ajudar ao cérebro reproduzir o reprocessamento necessário para arquivar essas memórias em seu devido lugar – o passado.
Isso posto, o que tem tudo isso a ver com intervenções em tragédias de grande escala? Tudo. Quando as pessoas vivem essas experiências sem o devido acompanhamento é possível que todos os traumas anteriores não-resolvidos venham à tona. Sabemos que quando vivenciamos uma perda, todas as outras perdas mal resolvidas na nossa vida também vem nos visitar. Os traumas também. Mesmo que o trauma tenha acontecido com uma pessoa mais preparada, a própria tragédia pode ser tão grande que o cérebro não consegue digerir tudo. E esses congelamentos, essas “mulheres de Ló”, essas pilastras congeladas dentro das pessoas impedem o bom desenvolvimento pessoal, social e espiritual dos indíviduos.
Por essa razão, junto com a descoberta do EMDR no final da década dos 80’s nasceu o movimento de ajuda humanitária com essa abordagem. Centenas de terapeutas EMDR tem se deslocado a lugares e até paises estrangeiros com o entendiemtno que 1) as pessoas que sofrem precisam de ajuda; 2) hoje existem ferramentas eficazes para tirar as pessoas do perigo traumática com rapidez e eficiência na grande maioria dos casos, 3) podemos prevenir quadros patológicos resultantes de traumas severos se fizermos uma intervenção em tempo hábil, 4) a prevenção ajuda a impedir catástrofes posteriores de ordem social (violência intrafamilar, alcoolismo e outras adições, suicidios, homicidios e assaltos, etc.) O EMDR tem também um poder preventivo. Em Israel aplica-se o EMDR em salas de emergência hospitalares logo após ataques terroristas para evitar um posterior quadro de TEPT- Transtorno de Estresse Pos-Traumático.
Ao passo que anterioremente havia apenas as ferrmentas verbais do de-briefing, do ouvir empático, do ombro amigo (todas muito válidas e necessárias), hoje temos ferramentas que podem evitar a instalaçao do trauma a nível cerebral, ou mesmo reprocessá-las nas semanas e meses subsequentes a fim de amenizar e evitar quadros patológicos de condutas. Por exemplo, se entendemos que muitas vezes a adição (alcoolismo) é uma forma disfuncional de “medicar” a dor emocional (ou o trauma, ou simplesmente, as farpas do coração), então podemos imaginar que se pudermos curar essas farpas, então não haverá mais a necessidade dessa “medicação”, e então poderiamos evitar certos quadros de alcoolismo cujo desenvolvimento poderiam se dar pós-tragédia. O luto mal resolvido pode desembocar em depressões profundas (evitáveis) ou tentativas de suicidio. (Quem pode culpar uma pessoa que queira se matar depois que perdeu todos os 15 membros da sua familia e todos seus bens?) Estes são exemplos simplistas porque as patologias humanas são complexas e cheia de surpresas, mas começam a nos dar as pautas necessárias para termos uma nova compreensão do que acontece e como podemos trazer novas soluções a estes temas vinculados a vivências traumáticas.
O trauma e suas consequências
O trauma nos prejudica de muitas maneiras… mais do que muitas pessoas imaginam. E não só “traumas óbvios” como sequestros, estupros, mortes violentas, experiências de guerra, terremotos, furacões destruidores. Quando falamos de traumas falamos também daqueles que se enquadram em experiências dolorosas que não necessariamente vão se encaixar nos diagnósticos oficiais de médicos e psicólogos. Traumas light também fazem estrago.
Falemos um pouco sobre as consequencias de experiências e lembranças dolorosas e traumáticas:
1. O trauma congela as lembranças no cérebro a nível neuroquímico. Os estudos mais recentes com tomografias sofisticadas (CAT, PET, SPECT, fMRI, etc.) demonstram como o conteúdo arquivado de forma disfuncional compromete a atividade neurocerebral. Tem partes do nosso cérebro que possuem arquivos cheios de conteúdo guardados de forma neuroquimicamente disfuncional. As partes “congeladas” não se comunicam com as partes funcionais. Às vezes não há mesmo palavras para explicar o que aconteceu porque o trauma reside no hemisfério direito do cérebro e as palavras se encontram no hemisfério esquerdo (área de Broca). Os dois hemisférios não estão “se falando” portanto não tem como assignar significado àquilo que aconteceu. As informações maladaptativas se encontram dissociadas das ferramentas que poderiam ajudar a processar e arquivar adaptativamente aquela lembrança ruim. Justamente o que vai ajudar a curar essas lembranças é a possibilidade de reprocessar e integrar adaptativamente o conteúdo dessas lembranças. É o que fazem as novas terapias de reprocessamento, tais como EMDR e Brainspotting: criam novas conexões cerebrais permitindo o surgimento de novas informações e insights, e transformam as lembranças traumáticas em novas percepções resolutivas.
2. O trauma é sequela de vivências de perigo (real e/ou percebido) que não conseguimos resolver adequadamente. É sabido que quando nos deparamos com uma situação de perigo provávelmente vamos reagir de uma de três formas normais: fugir, lutar ou congelar. Quando uma raposa encontra um coelho na floresta, o coelho sabe que tem que reagir ou vai virar jantar. Se for acuado, vai lutar porque é a única chance de sair das garras da raposa. Se ele achar que pode correr mais que a raposa, ele foge. Mas, às vezes, na corrida, quando a raposa se aproxima, o coelho pode congelar: cai como que morto num estado fisiológico que faz a raposa acreditar que o coelho morreu de susto. Como carne morta não interessa à raposa, ela bate em retirada. Quando o coelho percebe que o perigo passou, ele começa a tremer e se sacudir como forma de sair deste estado de congelamento. O risco é tão alto que se ele não fizer isso direito pode mesmo até morrer. Terminado o processo de descongelamento, o coelho vive para ver outro dia sem sequela do trauma (coisa que dificilmente os seres humanos conseguem fazer igual.).
Os seres humanos têm muitas dessas mesmas reações, e as estátuas de sal muitas vezes nada mais são que um papel dentro de nós que não conseguiu “se sacudir” de forma apropriada. A experiência “não passou” (não foi arquivada no passado que é seu lugar devido) e o perigo é sentido como eternamente presente.
3. Uma das coisas que o trauma nos tira é a capacidade de escolha. Fomos criados para ter livre arbítrio. A saúde sempre implica na possibilidade de escolher como responder ou atuar. O trauma acaba com essa capacidade de escolha e nos obriga a repetir comportamento. Quem sabe isso nos ajuda a entender por que certas pessoas repetem condutas destrutivas, mesmo quando não querem fazer isso. Vale a pena averiguar sua história de vida e ver em que momento essas lembranças começaram a se congelar. Estátuas não nos oferecem alternativas de conduta.
4. O trauma faz com que acreditemos em mentiras a nosso respeito. Uma das coisas que acontece quando vivemos uma experiência dolorosa e não conseguimos processá-la (“digerí-la” ) é que a lembrança fica guardada não só com a sua dor, mas também com o que se pensa, sente fisicamente e os cheiros, os sons, as cores – tudo isso fica guardado nessa lembrança no arquivo do nosso cérebro. Estes pensamentos costumam ser irracionais e falsos, leia-se, as mentiras em que acredito a meu respeito. Há uma parte dentro de nós que diz que tudo isso é mentira, mas a parte que viveu a experiência e continua “olhando” para a destruição não consegue acreditar na verdade a respeito do que aconteceu e permitir que sesolte a lembrança. A estátua nem sempre acredita no que lhe dizemos em nosso papel adulto.
Aliás, uma das características pouco reconhecidas dos eventos traumáticos é que se tratam de respostas normais a situações anormais. Anormal é ser assaltada, seqüestrada e estuprada a mão armada; perder toda a família num desastre; enfrentar um perigo inesperado e trágico repentinamente. Normal é ficar apavorado achando que este perigo não vai passar nunca mais. Às vezes, a gente consegue digerir e metabolizar tudo isso espontaneamente através dos nossos recursos e resilências internas… mas nem sempre isso é possível, e é aí que mora o perigo do congelamento traumático. Ter estátuas internas como conseqüência dessas coisas é normal. O nosso cérebro simplesmente não conseguiu processar a enormidade do que nos aconteceu.
5. O trauma nos traz pensamentos obsessivos/intrusivos. Não conseguimos deixar o trauma no passado. Ele fica perturbando diariamente. Falo para mim mesma: “Não vou pensar mais nisso. Vou mudar de assunto interno”. E muda… por um pouquinho. De repente quando se dá conta, outra vez está ali, nhê-nhê-nhê, nhê-nhê-nhê, e pronto, o assunto em pauta volta a ser a experiência difícil.
É difícil lidar com estes pensamentos intrusivos. Nos momentos mais inesperados quando estamos numa boa de repente algo dispara um pensamento desses e estamos de volta no passado. Não “chamamos” o evento e nem estávamos pensando naquilo. Às vezes é mais sutil. Não entendemos por que mudamos de humor, por que ficamos tristes sem aparente razão, ou irritados ou mal-humorados. É que alguma coisa no presente disparou algo que nos aconteceu no passado e algum dos nossos papéis internos veio fazer visita de maneira inesperada e indesejada.
6. Temos condutas de evitação. Experiências difíceis fazem com que não queiramos chegar perto “daquilo” de novo. Se foi naquela esquina que tive um acidente de carro, então começo a fazer outro caminho para o trabalho. Se foi naquele restaurante que tive a briga final que acabou com meu casamento, então evito de comer lá de novo. O problema é quando essa conduta evitativa começa a se generalizar e começamos a evitar um número cada vez maior de lugares, coisas ou até pessoas.
7. A nossa capacidade para a aprendizagem é bloqueada/afetada. Gente traumatizada não consegue aprender direito. Não tem espaço cerebral e emocional para isso. É muito comum receber pacientes que se dizem burros. Nunca foram bem na escola. Quando pergunto como era sua vida naquela época me contam uma longa história de humilhações escolares, que os pais que se separaram naquele tempo, a falta de apoio e amparo, e assim por diante. Explico que quem tem este nível de “barulho interno” não tem espaço para aprender. O problema não foi que lhes faltou inteligência. O que faltou foi a possibilidade de poder ouvir a lição externa porque o ruído interno era tão alto. Quando curamos o barulho interno, abrimos espaço para uma real aprendizagem. As estátuas de sal estavam ocupando o espaço da álgebra.
8. O trauma abre a porta para a maldade. O que significa isso? Em termos mais simples a violência gera violência. Não é simplesmente que as pessoas são más ou ruins. Examine suas histórias de vida. Costumam ter histórias traumáticas de abuso, de violências de exploração, de injustiças, de falta de cuidado. Não é à-toa que estão num papel de bandido ou mau: não conhecem outra coisa. A boa noticia é que muitas vezes se conseguimos curar o jardim de infância que faz parte dos nossos papéis temos a possibilidade de resgatar o que a pessoa tem de bom. Nem sempre é possível, mas vale a pena a tentativa se a pessoa se dispuser a pagar o preço da sua cura emocional.
9. A vida nos rompe a todos, mas alguns se tornam estátuas de sal. Todos temos lugares dentro de nos que congelaram feito estátuas. Mais uma vez, é uma questão de dose. (Os homeoptatas dizem que a difrençaz entre o remédoi e o vneeno é a dose.) Quanto mais papéis congelados tivermos de nós, mais prejudicado fica a nossa vivência. A vida não é equitativa na distribuição dos traumas e experiências dolorosas. E como cada um lida com essas coisas também depende de quem é, do seu temperamento, o seu desenvolvimento (e dos déficits neste desenvolvimento na medida em que foi crescendo), o seu contexto familiar (ou falta de…), enfim, das peculiaridades de cada um, seu temperamento e sua história de vida.
10. A vida também rompe a quem assiste tragédia. Não ficam traumatizados apenas aqueles que vivem a catástrofe, mas também aqueles que fizeram as intervenções e acompanharam os desfechos, quem levou para o hospital, quem ficou do lado enquanto alguém agonizava. Facilmente nos esquecemos de bombeiros, policiais, médicos e enfermeiras que acompanham estes casos inúmeras vezes e vivem a impotência de não salvar uma criança, ou alguém que lhe roga por ajuda e ainda assim se perdeu. O sofrimento vicariante também deixa sequela naqueles que ajudam. Chama-se fadiga da compaixão (compassion fatigue): o cansaço de quem não aguenta mais acompanhar tanta desgraça e se traumatiza também.
11. Finalmente, sem cura para o coração não há qualidade de vida. Imagine tentar viver arrastando essas estátuas de sal pela a vida afora! Quanto mais curado, melhor integrados estiverem os papéis internos, melhor a vida, maior a qualidade de vida também. Quem sabe esta é a razão principal para buscar essa integração emocional dos papéis internos: para que se possa fazer melhores escolhas na vida; poder responder de forma mais adequada aos desafios que a vida (e as pessoas) nos trazem; poder desfrutar das alegrias e dos triunfos alcançados; amar melhor e aprender a se deixar amar. O trauma nos rouba essas possibilidades. Quando curamos nossos papéis internos, resgatamos aquilo que há de mais essencial e importante para o ser humano: a convivência saudável na relação de amor e respeito mútuos dentro e fora de nós.
Quando pudermos entender os efeitos e consequências dos traumas na vida das pessoas, poderemos nos apressar também a buscar formas de curá-los. Sabendo que o trauma produz estes resultados, temos mais razão ainda para buscar intervenções a fim de evitar as catástrofes sociais que podem resultar das trágedias da natureza. Temos estes desafios pela frente, mas temos também o consolo de saber que agora temos ferramentas eficazes que podem nos ajudar a dar passos mais seguros e eficientes na resolução da vivência traumática.
Esly Regina Souza de Carvalho, Mestre em Psicologia, é especialista no tratamento de traumas, e treinadora de EMDR e Brainspotting e oferece cursos de formação nessas novas modaldiades de terapias do reprocessamento. Atualmente exerce uma pratica privada em Brasilia, depois de morar muitos anos nos Estados Unidos, Equador e Bolívia.