A CURA DE UM SURDO-MUDO, por Karin Wondracek
Jesus saiu do território de Tiro e voltou para Sídon, em direção do mar da Galiléia, atravessando o território de Decápole.Trazem-lhe um surdo, que falava com dificuldade, e lhe suplicam que lhe imponha a mão. Tomando-o à parte, longe da multidão, Jesus pôs os dedos nos ouvidos dele,cuspiu e tocou-lhe a língua. A seguir, erguendo o olhar para o céu, suspirou. Edisse-lhe: “Effatá”, isto é: “Abre-te”. Logo se lhe abriram os ouvidos, a língua se lhe desatou, e ele falava corretamente.
Jesus recomendou-lhes que não falassem disso com ninguém: mas, quanto mais recomendava, tanto mais eles o proclamavam. Eles ficaram muito impressionados e diziam: “Ele fez bem todas as coisas: faz os surdos ouvirem e os mudos falarem” Marcos 7, 31-37 Na religião judaico-cristã a palavra ocupa um lugar central. Por isso, a cura deste surdo-mudo, relatada de modo tão discreto em Marcos 7, 31-37, adquire um significado maior do que aparenta. Não nos é dito se esta pessoa era um judeu, mas o relato se faz no contexto deste povo. Para um judeu, poder ouvir a Deus e poder orar a Ele fazia parte da sua identidade – “ouve, ó Israel” – o hebreu é o povo que ouve o seu Deus irrepresentável, e que repete todos os dias o Shema Israel – , o texto de Deuteronômio 6,4-9, que determina que o viver diário, em todos os seus âmbitos, esteja permeado desta escuta. Esta prática foi ligada diretamente com a saúde – nosso tema destes dias: em hebraico, o Shema Israeltem 248 palavras, que correspondem aos 248 órgãos que se cria formarem o corpo humano. Recitar estas 248 palavras representava fazê-lo pelos 248 órgãos do corpo; isso era fonte de saúde. Não é só a boca que orava – mas o fígado, o rim, a bexiga, cada músculo e cada tendão… Para o hebreu, ser surdo e mudo significava estar alijado da essência da devoção, incapacitado de realizá-la pelo ouvido e pela palavra. Para a psicologia, não escutar nem falar significa não desenvolver a característica mais intrínseca do ser humano, o acesso à linguagem. Este o pano de fundo para tratarmos dessa cura, que será feita de acordo com as linguagens de compreensão do enfermo. Nem sempre um cuidador segue esta dica de Jesus, e tenta enquadrar aquele que busca auxílio na linguagem que domina, e declara os demais de incuráveis ou rebeldes. Estudar as curas de Jesus também nos inspira, como cuidadores e curadores, a sermos sensíveis e versáteis. Com o surdo-mudo Jesus vai usar uma linguagem não-verbal. Esta é classificada como mais arcaica, pois remete a um período mais precoce – anterior à palavra, tempo no qual a relação do bebê com sua mãe passa pelas linguagens dos outros órgãos dos sentidos. Para o bebê, é este contato na intimidade que o constrói como ser humano – pelos gestos da mãe, por seu olhar, aconchego e alimento, ele vai sendo humanizado. A cura do surdo-mudo vai ser feita em seis passos, cheios de simbolismo: 1. Jesus, no início da cura, “conduz-o à parte, longe da multidão” – imaginemos a cena desta condução – uma condução não-verbal, um afastamento da multidão, para longe da massificação. Deixar-se conduzir exige uma confiança mais primitiva, originada não na fala, mas em outros signos. E lá, na intimidade do contato, o doente é cuidado na individualidade das suas dores 2. “Pôs os dedos nos ouvidos” – literalmente, “pôs o dedo na ferida”. A mão é fonte de contato, é canal de passagem do poder curador. Mas, também tem sua ambigüidade, pois pode ser meio de agressão. Deixamos que Jesus ponha a sua mão onde dói, ou fugimos, traumatizados com o passado, do toque necessário para a cura? 3. Cuspiu e tocou-lhe a língua – Tocar com saliva é gesto de mãe que aplaca a dor e limpa a ferida do filho com suas secreções. Não é o distanciamento da palavra que sai da sua boca, mas o líquido – remetendo a uma comunicação por líquidos, tal como no útero. André Chouraqui[1] traduziu o clamor “tem misericórdia de mim” em uma linguagem uterina – “matricia-me“: “restitui-me a ligação primordial”. Paul Tillich diria – “reconecta-me com a minha essência, que foi criada para estar em contato com o Incondicionado”.[2] Freud fala que nosso sofrimento vem da sensação de desamparo, a partir da hora em que somos expulsos do paraíso do ventre e estamos sujeitos à natureza e seus fenômenos. Jesus Cristo, ao acolher nosso pedido de matriciar-nos, restitui-nos, não o paraíso perdido – muitas vezes, este é ilusoriamente vendido pelos mercadores do religioso – mas restitui uma conexão que nos faz suportar o desamparo com amparo. 4. A seguir, erguendo o olhar…. Jesus Cristo olha para o alto, em direção ao Pai. Com o olhar para o alto, encaminha-o para além de si. Foi matriciado, mas, se ficar preso simbioticamente nesta dimensão, não se instala como sujeito. É preciso remetê-lo ao Pai, origem de toda vida. Com o olhar, Jesus o introduz no Shema Israel: “O Senhor é o nosso único Deus” 5. Jesus Cristo suspirou – com o sopro, pode-se expressar tanto: o sopro solidário pela dor; o sopro do Espírito, presença invisível de Deus. Mas também pode ser anúncio do sopro, que depois passará pelas cordas vocais e pela língua, para ser transformado em palavras – um processo que no bebê acontece por imitação e aproximação fonética. 6. E disse-lhe “Effatá” – abre-te. Depois de tantos passos no não-verbal e primitivo, linguagem do bebê, a palavra. E o surdo-mudo desata sua língua e começa a falar – insere-se nos devotos que ouvem a Deus e proclamam que Ele é o único, com todos os órgãos do corpo. Sua cura revela que “o reino de Deus se aproximou.” PARA PENSAR O que não consigo ouvir? – Em mim, do meu caos de impulsos, afetos e desejos? – Do meu próximo – seu grito de dor, seu clamor, seu desamparo, sua alegria? – De Deus – do Seu caminho, do Seu chamado, da Sua bênção, da Sua cruz? E o que está mudo em mim? Que linguagem está presa, que órgão fonador não se articula com o sopro do Espírito, para pronunciar as palavras impulsionadas por Ele? Que palavras são emudecidas e alojadas no corpo, na forma de dores, doenças, tensões musculares, inibições de prazeres e sentires? Que afetos são sufocados na forma de mutismos, angústias, raivas, tristezas e depressões? Que palavras são inibidas e transformadas em condutas de agressão – ativas e passivas – contra outros e contra mim? Que órgãos são esquecidos? Nossas entranhas ainda são consultadas, como no tempo dos salmistas? Podemos deixar o “Ouve, ó Israel” ser orado com todos os órgãos do corpo? Deixamos que nos toque o convite para irmos à parte, para sermos matriciados, elevarmos os olhos, sentirmos o Sopro e o suspiro, para começar a ouvir e a falar? Ou nos quedamos surdos e mudos, e desta forma nosso ouvido e nossa língua, mesmo expressando sons revela-se como surda e muda do Sopro Divino, incapaz de levar o matriciar de Deus, o anúncio da chegada do Reino em palavras e gestos? [1] André CHOURAQUI. Matyah: o evangelho de São Mateus. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 87. [2] Paul TILLICH Teologia Sistemática, São Leopoldo: Sinodal, 1987. |
Karin Wondracek
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