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A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DE DEUS, por Karin Wondracek

Artigos e Notícias

Introdução

Estamos vivendo numa época feliz para as relações psicanálise-teologia. Nas últimas décadas houve várias tentativas bem-sucedidas de aproximações, resultando em produções teóricas fundamentadas que serviram para avançar o diálogo, retirando o mal-estar entre os campos.
Meu propósito nestes breves minutos é comentar três momentos da história judaico-cristã da construção da imagem de Deus, e relacioná-los com o psiquismo. Aprendemos com Freud esta possibilidade de fazer pontes entre a história grupal e a individual.

O DESAMPARO
O povo de Israel está no deserto. Moisés sobe ao monte Sinai, ausentando-se por 40 dias. A Escritura relata que o povo começou a se sentir desamparado. E, para se consolarem, entregaram suas jóias e pediram ao sacerdote Arão que as derretesse e moldasse um bezerro de ouro para que fosse um deus que ande à sua frente. ( Êxodo )
Em resumo, no desamparo construíram uma imagem de Deus e isso os acalmou. Penso que podemos tomar esta experiência coletiva do povo de Israel como uma analogia do que Freud descreve que o bebê tenta fazer no seu desamparo. A massa, como Freud descreve em Psicologia das Massas e Análise do Ego, comporta-se como uma criança.
Quando a mãe, que é fonte de amor e alimento, demora, o bebê também constrói uma imagem, a partir das suas “jóias” internas, suas lembranças das mamadas anteriores: o bebê alucina a situação satisfatória de mamada, e esta alucinação o acalma por um tempo, até que a fome se manifeste de um modo tão atroz que seja necessária a alimentação e a presença concreta da mãe.

Retornando à esfera religiosa, penso que o início da nossa relação com Deus também é nesta via: na presença do desamparo, alucinamos uma imagem, feita à nossa imagem e semelhança, fruto das jóias preciosas das nossas vivências infantis. Freud trabalhou brilhantemente este tema:

Foi assim que se criou um tesouro de representações, nascido da necessidade que tem o homem de tornar tolerável seu desamparo, e construído com o material das lembranças do desamparo de sua própria infância e da infância da raça humana.
E, por muitas gerações de psicanalistas, a religião foi tratada tendo como padrão único a construção do bezerro de ouro – imagens internas convertidas em concretudes calmantes. Religião foi considerada como sinônimo de material primitivo, que seria erradicado pela análise do infantil, tal como o bezerro fora erradicado do meio do povo.

Mas, na abordagem da alucinação do bebê, Freud sinalizou outros caminhos.

Esta primeira alucinação também se torna fator de crescimento, base para a fantasia e a capacidade criadora. Lentamente se estabelece o princípio da realidade, que utilizaria os derivados das primeiras alucinações como fantasias criadoras a serviço do ego.
Neste sentido, como Gilberto Safra enfatizou, Winnicott trouxe uma importante contribuição com seu conceito de objeto transicional:

Entre o subjetivo e aquilo que é objetivamente percebido existe uma terra de ninguém, que na infância é natural, e que é por nós esperada e aceita. O bebê não é desafiado no início, não é obrigado a decidir, tem o direito de proclamar que algo que se encontra na fronteira é ao mesmo tempo criado por ele e percebido ou aceito no mundo, o mundo que existia antes da concepção do bebê.

Alguém que exija tamanha tolerância numa idade posterior é chamado de louco. Na religião e nas artes vemos essa reivindicação socializada, de modo que o indivíduo não é chamado de louco e pode usufruir, no exercício da religião ou na prática e apreciação das artes, do descanso necessário aos seres humanos em sua eterna tarefa de discriminar entre os fatos e a fantasia.

Na religião e nas artes, permite-se fantasiar. Gilberto Safra relaciona a função do ícone com esta capacidade transicional:

O ícone, assim como o objeto transicional, permite que o sujeito encontra a consolação para superar a separação original que o constituiu. Tanto um como outro representam a capacidade criativa do ser humano, levando o sujeito à experiência estética e à vivência do sagrado. Ambos são elementos articuladores de um sentido de transcendência, alcançada pela transformação do ser. Ambos são veículos do desvelamento do Ser.(1998,p.180)

A patologia desta fase pode desenvolver-se em direções opostas:
– por um lado, expulsar a capacidade imaginativa, na forma de iconoclasmos mentais. Processo empobrecedor do psiquismo, reduzido a esvaziar sem criar.
– por outro lado, endeusar a capacidade de formar imagens – quer mentais ou concretas. Tendo como protótipo a alucinação psicótica, tomar as criações próprias como “a” realidade, como a única forma válida de representar Deus. A história da Igreja está repleta dessas “psicoses” coletivas.

 

Mas, será que não podemos criar imagens de Deus mais próximas ao princípio de realidade? Para Freud, isto seria um absurdo. Para os místicos, não. Uma discussão válida aqui seria de nos perguntarmos – afinal, qual o conceito de realidade que tomamos? Para fundamentar seu “princípio de realidade”, Freud tomou o conceito da ciência positivista da época.
Hoje já há possibilidade de fundamentar outros parâmetros de realidade – basta ver a nova física. Qual será o nosso, cristãos que tem na fé – certeza das coisas que não se vêem – o seu fundamento básico? Como avançar para além da ilusão?

Segundo Morano, no seu belo livro Orar depois de Freud, temos de nos conformar com ter a ilusão como ponto de partida. Não temos outro canal inicial a não ser nosso tesouro de fantasias e marcas mnêmicas das experiências de satisfação.
Nossa fala com Deus, seja de que modo for, não pode partir senão de nosso mundo interior, com toda a sua complexidade, suas zonas anônimas e secretas, suas aspirações sinceras ou desvirtuadas, seus auto-enganos ou suas meias verdades.(1998,p.10)
Mas, esperemos que o ponto de partida não permaneça como único ponto de chegada – isto seria andar em círculos, e para as idéias mais reducionistas da psicanálise, permanecer com imagem de Deus eqüivale a isso.
Talvez poderíamos dizer que aquele que não permite que seus “bezerros de ouro”, construídos a cada experiência de desamparo, sejam destruídos e pulverizados, corre o risco de andar em círculos na sua caminhada de fé. Círculo vicioso e neurotizante.

 

A LEI DO PAI

Mas, no caminho do povo de Israel, Moisés destruiu o bezerro e apresentou a lei. E o povo de Israel passou a cultuar um Deus invisível, que se apresenta mediado pela Palavra. Freud, no Moisés e o Monoteísmo apresenta este fato como um progresso mental.
…pois significava que uma percepção sensória recebia um lugar secundário quanto ao que poderia ser chamado de idéia abstrata – um triunfo da intelectualidade sobre a sensualidade, ou, estritamente falando, uma renúncia pulsional, com todas as conseqüências psicológicas necessárias. (1939, p.135)

Para Freud, com este avanço a pessoa migra do reino da mãe – sensório – para o reino do pai – psíquico. Passa-se da identidade de percepção para a identidade de pensamento. A renúncia à descarga direta da pulsão torna o psiquismo mais apto para sublimações.
Segundo Ricoeur, a passagem do ídolo para a capacidade simbólica é um caminho que retira o povo da prisão. O símbolo ligado à palavra permite criar e recriar, retirando da fixidez do sensório.
Mas o próprio Ricoeur fala que todo símbolo corre o risco de novamente transformar-se em ídolo, aprisionando e limitando a multiplicidade semântica. Isto lembra-nos o desvio patológico do neurótico obsessivo, que, sentindo a ameaça de castração, utiliza sua capacidade simbólica na formação de sintomas ritualísticos.

Morano também discorre sobre a conseqüência deste desvio na representação de Deus:
Trata-se de uma lei sagrada que perdeu sua natureza mediadora, que substitui o próprio Deus e desloca para um segundo termo a celebração gozosa, o encontro festivo e a comunicação com o Outro, assim como a proclamação libertadora e profética de sua palavra.(1998,p. 60)

A história judaico-cristã está recheada de exemplos desta deturpação. Usando a terminologia lacanianda, diria-se que a lei do Pai, em vez de organizar e incluir, transforma-se em mecanismo paralisante excludente. A angústia de castração do pai terrível é fonte de temor e distanciamento. Isto vale para obsessivos, fóbicos e histéricos. Na neurose, a lei, em vez de organizar a devoção, obstaculiza. Haverá possibilidade de sair do aprisionamento da lei sem o abandono do religioso?

Para nós, cristãos, depois da Lei vem a Graça. E que imagem de Deus nos viria pela graça?

 

A GRAÇA
Logo me recordei das parábolas de Jesus, sobre achar o que se havia perdido. Há um tom de surpresa para a atitude do pai que acolhe o filho que retorna estropiado: em vez de objetos consoladores ou leis, há um modelo de relacionamento pai-filho com elementos novos. Paul Vitz chamou Jesus de Anti-Édipo, mostrando que a História Sagrada não corresponde à história edípica. O pai do filho pródigo não corresponde a Laio, pai de Édipo. Há lugar para pai e filho; não há vingança, mas restauração da filiação. Jesus nos apresenta uma imagem de Deus que desconcerta, que desconstrói o sabido, retira do eixo das próprias projeções. Inicia com a imagem terrena – pai -, mas desconcerta pelas diferenças.

O homem perde a voz ativa de construir a imagem de Deus somente a partir do seu interior e passa para a voz passiva de conhecer como é conhecido. Sai da posição ativa de fabricar o caminho a Deus pelas suas próprias obras – quer pela construção de imagens ou pelo cumprimento da Lei – para a voz passiva de aceitar o caminho já dado pela graça. Parece que, no decorrer da história, este tem sido o eixo da Boa Nova – é novo, não vem do nosso interior, nos é dado.

E isto desconcerta, desconstrói, retira-nos do centro da história. Esta construção já não acontece nos moldes das fantasias infantis de fusão com a mãe, nem coincide com a representação edípica do pai.

E, paradoxalmente, equivale ao que Lacan propôs como “supremo bem”: aceitar a castração, a incompletude. A partir desta, conhecer a Deus não significará voltar a ter a completude perdida com Ele. Este é outro critério para discriminar uma fé alienante, patológica, de uma fé progressiva. Segundo Meissner, citado por Morano:

 

A verdadeira experiência mística não somente não destrói a identidade pessoal mas, de fato, possui uma enorme capacidade de estabilizar, sustentar e enriquecer essa identidade. Pode perfeitamente remeter ao passado mais antigo e primitivo e até favorecer regressões parciais, mas a partir dessas se podem estabelecer novos caminhos para voltar a um presente que, desse modo, apresenta-se ampliado, esclarecido e enriquecido.(apud Morano, p. 67)

 

Religiosidade a serviço do princípio da realidade, mas uma realidade que transcende o conceito positivista que embasou Freud. A devoção madura une os aspectos infantis aos adultos, perpassa e dá sentido à realidade, sem ignorá-la. Ajuda a simbolizar esta realidade e não aliena dela.

Não abre mão das imagens mentais nem da lei, mas não transforma-as em supremo bem.

E, talvez como São João da Cruz diz, possa haver momentos de noite escura da alma em que nem a imagem nem a lei acompanhem – sem pai nem mãe, diríamos em bom português.

A necessidade de pulverizar ídolos se fará necessária sempre que uma imagem se cristalizar como absoluta, sempre que impedir o contato com o Totalmente Outro. Este me pede que ande pela fé, e não pela vista – sem imagens e sem sandálias protetoras.
Penso que é isto que Adélia Prado expressa neste poema:
Exercício Espiritual

Maria
roga a Teu Filho que me mostre o Pai
Imagens sobrevêm:
homem, vinheta, instrumento,
o que ameaça ser um leque de penas
e é uma cabeça de naja,
a perigosa serpente.
Quero ver o Pai, insisto,
roga a Teu Filho que me mostre o Pai.
Um dente, uma vulva,
um molho de nabos comparecem,
gerados como eu, do nada.
De onde vêm os nabos, Maria?
Onde está o Pai?
De onde vim?
Move-se na parede um cavalo de sol.
É o Pai? não,
é só uma sombra e já se desfaz.
O Pai, então, é uma usina?
Meu Pai dizia: Ó Pai!
E levantava os braços respeitoso.
Também meu avô: Deus é Pai!
E tirava o chapéu.
Assim, um pai remetendo a outro
e mais outro e outro mais,
enfim, a milhões de pais até Adão,
que sou eu acordando de um sonho,
apenas “raia sangüínea e fresca”
a madrugada, filha de parnasiano,
que me encantava quando eu era mocinha,
filha de ferroviário, cansada agora
como feirante ao meio-dia:
ai, meu pai, me ajuda a torrar o resto
deste lote de abóboras, me tira da cabeça
a idéia de ver Deus-Pai me dá um pito e um café.
Oráculos de Maio, p. 124

 

BIBLIOGRAFIA

BÍBLIA SAGRADA
FREUD, Sigmund – O futuro de uma ilusão(1928)
FREUD, Sigmund. Psicologia das Massas e Análise do Eu(1921)
FREUD, Sigmund. Moisés e o Monoteísmo.(1939)
MORANO, Carlos Dominguez – Orar depois de Freud. São Paulo, Loyola, 1999.
PRADO, Adélia Oráculos de Maio. São Paulo, Siciliano, 1998
RICOEUR, Paul. DA INTERPRETAÇÃO: ENSAIO SOBRE FREUD, Rio de Janeiro, Imago, 1977.
SAFRA, Gilberto. “Sacralidade e fenômenos transicionais: visão winnicottiana. In: MASSIMI, Marina e MAHFOUD, Miguel. Diante do mistério: psicologia e senso religioso. São Paulo, Loyola, 1999.
VITZ, Paulo – Jesus, the Anti- Oedipus . Internet, 199

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