A ANAMNESE por Anavera Heringer Lisboa
Na rotina diária dos consultórios, a anamnese é uma questão ainda incompleta e insatisfatória. Um indivíduo apresenta-se buscando ajuda e tratamento, alguém que seja capaz de resolver sua demanda em saúde e, acima de tudo, um ser humano que o ouça. Nesse primeiro contato inicia-se uma relação – momento de avaliação do tratamento a ser realizado, orçamento e anamnese.
A questão é o que se consegue desta relação e o que se faz a partir daí.
Na anamnese, as perguntas não devem funcionar como parte de mais uma técnica a seguir ou metodologia a ser aplicada – apesar do seu inquestionável e conhecido valor, pois ela ( a anamnese) comporta dimensões muitas vezes inesperadas. A maneira de abordar o paciente é muito importante.
Partindo das observações e relatos sobre a insatisfação desta relação “profissional-paciente”, faz-se necessário repensar uma prática mais humana dos profissionais de saúde, promovendo saúde de maneira integral.
A anamnese é recordar o que foi esquecido – trazer à memória – e sabe-se que há um processo para este rememorar. A memória não é cronológica nem linear e sim um conjunto de experiências que ocorreram em espaço e tempo diversos do presente. Nela, o passado vem à tona como força subjetiva, ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante. Imagens do passado são suscitadas pelo momento vivido no presente e expressas através de signos também utilizados no presente como vocabulário, gestos, olhares.
O momento que movimenta esta memória é a anamnese, que deve ser solene e descontraída.
De um lado, o profissional de saúde – entrevistador – é encarado como o dono do saber, uma autoridade acadêmica, e de outro o paciente – entrevistado -, que concorda em desnudar sua história diante de pessoas normalmente desconhecidas, desencadeando muitas vezes sentimentos e emoções fortes que devem ser tratados com cuidado.
Então, o papel do profissional que busca informações e dados deve ser cauteloso, pois muitas vezes aproxima-se, tangencia, o papel do psicólogo, pelo fato de trabalhar com percepções individuais.
E um indivíduo que se dispõe a falar da sua vida para outros, sendo ao mesmo tempo estranhos e cúmplices em um projeto comum, cria um laço de presença, de tal forma que põe em movimento os sentidos corporais e espirituais que são próprios desta relação – envolvimento e cumplicidade.
É necessário reconhecer um espaço familiar, íntimo, que traga um sentimento de segurança, um “querer fazer” para levar adiante o exercício da ajuda.
Mas, para que profissional e paciente deixem de ser indivíduos estranhos, estabelecendo um início de história, com todas as emoções que esse momento pode suscitar, é necessário saber fazer o outro falar, saber ouvir o que é dito e assim ver a história ser recontada, revivida. Ver a história do paciente é torná-la visível, e isto torna material ao alcance das mãos, assim produz sentido.
Ouvir é um sentido fisiológico e basta certa integridade biológica, associada a um bom desempenho neurofisiológico de funções. Escutar é outra coisa.
É um ato psicológico, uma disposição interna de acolher signos, ora claros, ora obscuros, e buscar alcançar algum registro que viabilize trocas, admitindo espaço para o subjetivo. Não significa haver dissolução de um no outro e sim que haja reconhecimento do “território” do outro, sua verdade de vida, garantindo a ética do entrevistador, seu lugar, permitindo-o fazer a história, fazer um acontecimento, uma interação.
Essa anamnese permite ao entrevistado a reformulação de sua identidade, se apercebendo “criador da história”, questionando elementos de sua vida individual e social, passando a ser sujeito e percebendo sua parcela, sua responsabilidade.
A maioria dos pacientes têm dificuldade de se expressar. Cabe ao profissional criar uma “oportunidade” para abrir os sentimentos, iniciativa motivada pelo desejo de ser instrumento de ajuda para aquele indivíduo.
Então, como se aproximar do outro ou com que se aproximar? Primeiro como ser humano, com debilidades, como criatura esculpida pela história pessoal de minha vida. A visão do mundo determina profundamente a bagagem que é trazida ao encontro do outro.
Enxergar o mundo sem possibilidade de melhoras torna a atitude negativa ou de pouca importância. Em segundo, com um objetivo a ser alcançado, respeitando o paciente sem impor uma forma de ver as coisas, concebendo a saúde plena como objetivo principal – incluindo espírito, emoções, pensamentos, forças, paixões físicas etc -, comprometendo-se em colaborar com o outro.
Ver, então, no outro, uma pessoa que sofre não apenas a dor local – motivo de sua procura – mas muitas vezes a dor da alma, sofrimento material, pobreza de espírito, solidão e sentimento de não ser querido. E levá-lo a acreditar que há soluções, que há esperança.
Considerar sempre o paciente como prioridade absoluta durante o atendimento e permitir que ele perceba isso, mesmo que o tempo disponível seja menor que o ideal.
Tornar a anamnese não apenas um momento de colher dados, sinais e sintomas, mas sim fazer deste um lugar onde se vive a memória e cria-se um acontecimento que também faz história.
Anavera Heringer Lisboa, cirurgiã-dentista, clínica-geral, especialista em Saúde Pública pela Faculdade de Farmácia da UFMG