FALSO SELF: A PERSONALIDADE ARTIFICIAL E ADAPTADA, por Celso de Oliveira
A noção de Verdadeiro e Falso Self, familiar entre os psicanalistas, remete a uma das mais valiosas contribuições de Donald Woods Winnicott à psicanálise. Inglês de nascimento, fez sua passagem da Pediatria à Psicanálise quando atendia a crianças evacuadas e separadas dos pais durante a Segunda Guerra Mundial. Alta figura nos círculos mais elevados da psicanálise mundial, duas vezes Presidente da Sociedade Britânica de Psicanálise, homem que adorava dançar, desenhar, tocar piano e ouvir Beethoven e os Beatles. Original, intuitivo, surpreendente e inesperado.
Faleceu em 1971, deixando um acervo teórico invejável além de inúmeros casos clínicos centrados na observação e análise da díade mãe-bebê. Prefaciou sua autobiografia inspirado nos versos de T.S. Elliot:
“ Costing not less than everything;
What we call the beginning is often the end;
And to make an end is to make a beginning.
The end is where we start from.”
Winnicott celebrizou-se por investigar a fundo o desenvolvimento emocional primitivo da criança humana e o ritual amamentar, a partir da comunicação silenciosa entre uma mãe e seu bebê, que segundo ele é a matriz geracional de todas as outras comunicações entre os seres humanos.
Os gestos maternos que para o bebê são essencialmente estimulações sensoriais, tornam-se uma comunicação. A voz da mãe, o toque nos habituais procedimentos de higiene, a maneira como segura o bebê (holding), os olhares demorados entre os dois durante e após uma satisfatória mamada, função especular de alta significação para a díade, transformam-se numa sincronia de movimentos e de experiências de mutualidade fundamental. Linguagem que para ter sentido deve se tornar em primeiro lugar corporeidade metabolizada pela imagem psique-soma. “O Ego é, primeiro e acima de tudo, um ego corporal”. (Freud, 1923). Na década de 40, Winnicott surpreendeu seus colegas quando declarou:
“Não existe isto que se chama um bebê”, querendo significar que a dupla mãe-bebê está fusionada e fundida entre si, levando o bebê a não diferenciar o eu do não-eu. Ao olhar para o rosto da mãe o bebê está vendo a si mesmo.
Estamos falando da essência do narcisismo primário, lugar de abandono, caos impensável, de solidão e fragilidade ante o mundo interno e externo que se descortinam ante o lactante, diante dos quais se acha completamente desorganizado e desintegrado. Integração que precisa se desenvolver gradualmente em cada criança dentro de um ambiente facilitador. Não é apenas uma questão de neurofisiologia, desde que para este processo ter lugar deve haver antes condições que oportunizem e assegurem a continuidade de seu potencial herdado. Cada bebê é uma organização em marcha. Há nele uma centelha vital e ímpeto para a vida, algo que lhe é inato e o impele para frente, para seguir sendo (going on being), uma espontaneidade vazia de intrusões, plena de potencialidades emergentes que demandam um vir-a-ser orientado pelo seu potencial herdado, sem interrupções, sem descontinuidade, para que, quando adulto, se torne um indivíduo portador de um EU SOU estável, criativo, com uma imagem corporal inteira. Isso vai depender de uma maternagem satisfatória ou “mãe suficientemente boa” no dizer de Winnicott.
Aquela mãe ou substituta que permite que a criança use o seu corpo como veículo de comunicação, respondendo adequadamente aos sinais de seu desamparo naquele momento certo de suas privações.
Para preservar sua marcha e maneira de ser, resguardar sua singularidade, o bebê precisa ser reconhecido e respeitado no seu rítimo natural, protegido das invasões traumáticas ambientais (impingements) que o levam a se defender reagindo. Quando reage, está lutando para sobreviver, usando suas forças contra descontinuidade e interrupções no seu seguir sendo. Mães ansiosas, insensíveis, desatenciosas, hipocondríacas, maníacas e deprimidas, fracassam na manutenção das necessidades primárias do infante (do latim in-fans=sem fala).
Sendo o primeiro espelho da criança, o rosto da mãe, ao invés do rosto da mãe refletir o bebê, essas mães refletem a rigidez de suas próprias defesas.
Com o Verdadeiro Self encapsulado e oculto, interrompida então a sua marcha para seguir sendo, instaura-se “ipso facto” a personalidade falso self. O indivíduo distancia-se da expressão e contato com a realidade. Sua vida adulta seria vivida através de uma fachada, falsa, epidérmica e adaptada. O seu corpo produziria movimentos de ocultação e cresceria exatamente identificada com a mãe ou quem quer que no momento dominou o seu quarto.
A imitação seria sua especialidade, adaptada às injunções que sobre ele lhe foram impostas quando da fase extra-uterina. Passa a viver em reação a alguma coisa que não é legitimamente sua, perde a originalidade, volta-se para a bem de si mesmo de forma autocentrada. Vive um estado de não ser, age como ator, representa e alimenta-se de futilidades. No grupo social, é logorreico, envolvente, sedutor, porém indiferente às questões alheias e sociais. Encanta os demais por sua arte em dissimular e agradar. Em contato com esses indivíduos falso selves, tem-se a sensação de estar diante de alguém sob qualquer suspeita. São no entanto “normóticos” no dizer de C. Bollas: “A Normotic person is someone who is abnormaly normal”. A conseqüência disso é um sentimento de não existir, de não ter contornos.
A única defesa é o uso da máscara sem a qual fracassa no lidar com seus afetos, retirando-se num estado esquizo-afetivo para um mundo vazio de significados a procura do que lhe fora um dia negado pelo ambiente que já o aguardava antes mesmo de nascer. Ao confrontar situações limites deverá protege-la, manter silêncio, dissimular, mentir. E às vezes, recurso extremo, será obrigado a se exilar no território das patologias. Estudiosos da teoria Winnicottiana não descartam a possibilidade de alguns modelos sociais e certas escolhas profissionais exercerem sobre esses indivíduos uma atração irresistível. É o caso, por exemplo, dos que se fascinam pela carreira política onde, salvos exceções, favorecidos pelo clima antiético “bem sucedido”, se escondem nas malhas da cumplicidade e do corporativismo numa subjetividade dissimuladora notória no quadro de caracteropatia e corrupção que assistimos indefesos nesse Brasil de hoje.
Não fica de fora dessas observações o cenário religioso atual povoado por diferentes seitas, solo cada vez mais fértil aos que procuram se abrigar de suas dificuldades de relação com a vida, negando sentimentos por trás do biombo das palavras, verbais e não verbais, trejeitos e seduções “piedosamente” articuladas, na flagrante descaracterização do Evangelho de Cristo, sob os holofotes narcísicos de aglomerações humanas que lhes confere o gozo da onipotência tão desejada. Num tempo do desaparecimento da figura paterna, real e simbólica, acrescido da orfandade e desamparo que invadem o povo no presente cáos econômico e social, instaura-se, então, a violência do fazer do outro objeto de suas satisfações, e o que é pior, em nome de Deus.
Longe de rotular quem quer que seja de personalidade falso self, mesmo porque, em menor ou maior grau, temos todos nossas complicações nas relações de objeto, sabemos que o sonho do Eterno é vida em plenitude e libertação de nossas prisões de vida não vivida. Entretanto, ocorre que certos seguimentos religiosos fragmentados e competitivos que aí estão, ao invés de facilitarem o desenvolvimento das potencialidades humanas, onde as pessoas tenham oportunidade para descobrir e desenvolver o máximo suas possibilidades interiores, insistem num discurso mágico e monocórdio podendo induzir culpa e potencializar sentimentos persecutórios em indivíduos com predisposição para insanidades dissociativas.
Nesse sentido e na certeza de que a Igreja, comunidade de vida, precisa de ajuda psicoterapêutica em todos os seus níveis, a presença do psicólogo com formação clínica, tratado e suficientemente analisado nas nossas comunidades eclesiais, torna-se cada vez mais inadiável no resgate da saúde mental para que seus membros satisfaçam suas necessidades espirituais de forma aberta, criativa e sejam portadores de um vibrante sim à vida!.
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Celso Franco de Oliveira