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NO EXTREMO DA EXCLUSÃO SOCIAL, por Uriel Heckert

Artigos e Notícias

Moradores de rua e enfermos mentais
Dr. Uriel Heckert conduzindo sua oficina no III Forum Social Mundial
Nas últimas décadas, verificou-se mudança significativa no perfil da parcela da população que vive nas ruas dos centros urbanos.  Não se trata mais daqueles antigos mendigos que esmolavam pelas esquinas das cidades, sobejamente conhecidos dos circunstantes e amparados pela caridade pública.  Os novos desabrigados também não se restringem ao perfil do andarilho, que vagueia pelas estradas poeirentas.  O número daqueles que têm o espaço público como lugar de moradia não só aumentou, como passou a mostrar novas características: em sua maioria, são homens adultos, em idade produtiva, que não conseguem inserção no mercado de trabalho; ou são jovens distanciados de suas famílias, sem objetivos de vida definidos (1).  O fenômeno é reconhecido em todas as cidades de porte médio e grande, pelo menos no Ocidente.
Diversos fatores são apontados como corroborantes.  Entre eles, pode-se citar: a rápida urbanização, deslocando da zona rural pessoas mal qualificadas para mercados de trabalho cada vez mais exigentes; o desemprego que atinge todos os segmentos sociais; o afrouxamento e até inexistência dos vínculos familiares; a disseminação de costumes e hábitos de vida permissivos e desregrados; a disseminação e exposição precoce ao uso de álcool e outras substâncias.
O Brasil não escapa ao problema e lhe acrescenta agravantes próprios de tudo que caracteriza um país em desenvolvimento: planejamento público falho, recursos parcos e pouca eficiência nas políticas assistenciais (2).
Inúmeras pesquisas, realizadas principalmente nos países desenvolvidos, demonstraram alta prevalência de transtornos mentais entre esse contingente populacional (APA, 1984).  Não se pode perder de vista que a problemática da população de rua é eminentemente social, mas as dificuldades que as pessoas enfrentam ficam maiores quando há comprometimento significativo da saúde mental.  A pesquisa que realizei em  Juiz de Fora, MG, foi pioneira em nosso país e confirmou os dados da literatura internacional (3).
Por todo o mundo surgiram iniciativas buscando suprir atendimento em saúde mental.  Porém, logo percebeu-se a dificuldade que os moradores de rua têm para conseguir acesso aos serviços tradicionais.  As características da vida que levam já faz antever embaraços para comparecer limpos, bem comportados e pontuais aos atendimentos agendados.  Além disso, são gritantes os preconceitos e barreiras colocados pelos próprios profissionais (4).
A estratégia adotada tem sido oferecer programas específicos de saúde mental, articulados com as medidas de natureza social que visam oferecer atenção integral aos moradores de rua (5).  Tais programas caracterizam-se pela disposição de acolher e/ou buscar os indivíduos como e onde eles se encontram, atuando com mais flexibilidade e tolerância quanto às rotinas de trabalho e construindo parcerias diversificadas para superar a complexidade de cada situação.
Com freqüência, pergunto a mim mesmo por que me voltei para tal problemática.  Lembranças de infância remetem a personagens lendários que percorriam as ruas, a mercê da comiseração pública.  A sensibilidade às questões sociais vem da paixão pela figura ímpar de Jesus Cristo, transmitida pelo exemplo vivo de meus pais e aguçada por biografias de cristãos com trajetória marcante.  Mesmo assim, como é comum ao geral das pessoas, não me detinha em considerar as condições peculiares experimentadas por quem vive nas ruas.
Circunstâncias, então, ajudaram.  Eu estava em São Paulo, preparando-me para a seleção ao Doutorado.  Freqüentando o Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo, capacitei-me no novo método de investigação diagnóstica, que me deu o instrumento de trabalho.  E numa manhã, por “casualidade”, assisti a apresentação de filme sobre os moradores de rua  (6).  Resolvi, então, que deixaria minha amostra de clientes da classe média, radicalizando meu compromisso público.  Na noite seguinte, fui despertado de um salto, com o desenho do estudo já delineado.  A partir daí, com muito entusiasmo, busquei a bibliografia disponível, organizei o projeto acadêmico e lancei mãos à obra.  Eu creio que o Espírito Santo tem a ver com situações assim.
A pesquisa e a elaboração da tese puseram-me em contato com a realidade crua da vida nas ruas.  Terminado aquele compromisso, foi inevitável que tomasse iniciativas visando oferecer assistência às pessoas que conhecera.  Já em Juiz de Fora, juntamos recursos da Universidade Federal e da Associação Municipal de Apoio Comunitário, além de agregar entidades filantrópicas que já trabalham na assistência aos carentes.  A proposta que desenvolvemos está publicada (7) e prevê a constituição de equipe interdisciplinar de saúde mental com possibilidade de atendimento nos locais freqüentados pela população de rua, deslocando-se até instituições ou mesmo ao espaço público.
No momento, atuamos como um projeto piloto, com recursos limitados, mas que já atingiu mais de 70 pessoas.  Quando em seu funcionamento pleno, o Programa deverá responsabilizar-se pelos atendimentos básicos, articulando-se com outras instâncias assistenciais na busca dos melhores recursos para cada uma das situações encontradas.
Os moradores de rua, tomados quantitativamente em comparação ao total da população, podem não parecer expressivos.  Mas são representativos porque colocam em evidência os extremos a que a exclusão social pode levar.  Só por isso já deveriam merecer a atenção da sociedade e de seus governantes.  Além do mais, sabe-se que o modo como são tratadas as minorias, e entre essas aquelas mais desprovidas, é muito significativo: indica a seriedade com que os administradores dos serviços públicos e os próprios profissionais encaram o seu compromisso com a pessoa necessitada de ajuda.
Eu creio que vale muito todo esforço em busca da reabilitação e reintegração dos marginalizados da vida social.  Por mais que as carências e as condições precárias de existência tenham deformado a imagem pessoal, por mais que doenças e transtornos mentais possam encobrir a dignidade e liberdade individual, continuo esforçando-me por vislumbrar em cada um as possibilidades múltiplas do ser humano. E isso não advém de uma condição filogenetica-mente determinada ou culturalmente alcançada, mas sim da identidade única que cada um traz, como alguém criado à imagem e semelhança de Deus.

 

Propostas Práticas

 

1a.) Alfabetização de adultos com bolsa auxílio.
Ainda há na cidade do Rio de Janeiro adultos que não sabem ler e  nem escrever –  só responderam à pesquisa com o auxílio do pesquisador.
Estas pessoas, vítimas da violência político-econômica-social merecem receber o ensino gratuito além de uma bolsa de estudos de pelo menos um salário mínimo, pois se estivessem  na infância não estariam trabalhando e estudando ao mesmo tempo – esta seria uma forma do Estado reparar a violência que o seu próprio sistema cometeu contra estas  pessoas.

2a.) Garantia da não exposição das crianças, adolescentes e adultos a cenas de violência/sexo na mídia.
Embora no Estatuto da Criança e do Adolescente esteja prevista a proibição da exposição de crianças e adolescentes a cenas de violências na mídia, as televisões brasileiras, a cada segundo, transmitem cenas de violência/sexo tanto explícitas quanto subliminares, além dos filmes em cinemas, bem como na internet, teatro, outdoors, bancas de jornais, livrarias, etc. Na internet há um constante convite para a visita a sites pornográficos – pessoas de todas as idades podem  ficar curiosas e se viciarem nesta prática.
Os adultos são influenciados por tais cenas, mas, em especial, as crianças e os adolescentes. Pessoas expostas a cenas de violência podem ser estimuladas a cometerem  violências diversas, tanto verbais, quanto  físicas e sexuais.
A violência contra as mulheres tem aumentado assustadoramente. O incentivo ao  turismo no Rio de Janeiro, por exemplo,  sempre está acompanhado de cenas em que aparecem mulheres expondo o seu corpo como parte do convite ao “turismo” na cidade.
Não é incomum pessoas, mesmo de outros Estados brasileiros, associarem as mulheres do Rio de Janeiro à disponibilidade   para alguma interação sexual, especialmente em época de Carnaval.

3a.) Garantia ao direito de ajudar pessoas em sua orientação sexual, especialmente às que desejam deixar a homossexualidade, bem como aos dependentes químicos.
Estes dois grupos foram os que mais relataram ter sofrido violências na infância e/ou adolescência. É possível que  tais violências tenham  favorecido o desenvolvimento da orientação homossexual de muitas delas, bem como as que desenvolveram a dependência química.
É importante a garantia ao direito à não discriminação de pessoas que apresentam a orientação homossexual, bem como ao dependente químico, porém o direito de ajudar pessoas a deixarem a homossexualidade ainda não é reconhecido pelo poder público, o que é preconceito e discriminação, pois muitos desejam abandonar o comportamento homossexual e têm todo o direito de receberem a ajuda que desejam sem serem excluídos e discriminados por isso.
4a.) Desenvolver programas de apoio e orientação à familia.
A violência doméstica é uma triste realidade, porém os estudos apontam a violência no lar como um prolongamento da violência social, da violência política-econômica-social mundial, ou seja, uma construção social,  portanto  o  poder público precisa garantir a não culpabilização da família, mas sim, a sua proteção.

5a.) Treinamento de equipe multidis-ciplinar quanto à violência social/doméstica.
No curriculum escolar da formação profissional deverão ser obrigatórios os estudos sobre a violência social/familiar, especialmente dos profissionais da área de saúde e humanas.

6a.) Programas de  política anti-bullying  nas escolas de ensino fundamental e ensino médio.
As escolas deverão, obrigatoriamente,  adotar  a política anti-bullying, pois o bullying é  um conjunto de agressões  repetidas entre alunos, ou seja, praticadas pelos próprios  pares seja sob a forma de  violência verbal/ física/ sexual ou outra.
Há necessidade de intervenção em  situações de violência já existentes, bem como a realização de trabalhos preventivos.

7a.) Programas de prevenção quanto ao abuso sexual.
A pesquisa mostrou que homens e mulheres sofreram  abusos sexuais na infância e/ou adolescência. Esta violência está  entre as cinco violências mais apontadas em todo o grupo pesquisado. Encontra-se em primeiro lugar entre os profissionais de gênero feminino, comunidades rurais (também  gênero feminino) e pessoas que vivenciam/viven-ciaram a homossexualidade (tanto do gênero masculino quanto do feminino).
É necessária  a adoção de trabalhos preventivos, especialmente para crianças e adolescentes se defenderem de tais abusos em todos os espaços sociais em que estão inseridos, na família, escola, igrejas, clubes, e outros.
Realizar  trabalhos com os autores dos abusos faz-se necessário, pois se não trabalharmos os autores, os abusos poderão continuar.

8a.) Desenvolver estudos, criar  leis e orientação ao combate à violência verbal, que  foi a violência mais citada pelas pessoas do sexo masculino e feminino, além da discriminação.
Pessoas se auto-discriminam e discriminam umas às outras pela não aceitação das suas características individuais, bem como as do seu próximo.
Há necessidade de trabalhos visando a auto-estima, bem como o respeito às diferenças entre as pessoas.

9a.) Realizar um trabalho de conscientização das pessoas quanto às violências  sofridas – como se defenderem e/ou não repetirem as volências.
A todo instante pessoas sofrem violências em suas vidas – muitas parecem estar tão cauterizadas que não se dão conta das violências que costumam sofrer.
Parecem não ter muita consciência da possibilidade de se defenderem, e nem de repetirem,automaticamente, as mesmas ou outras violências que sofreram em suas relações, especialmente nas relações com as pessoas que lhe são mais próximas, como os familiares e amigos. 

 

Referências bibliográficas
1. ROSSI PH. The old homeless and the new homeless in historical pers-pective. American Journal of Psychology 1990; 45: 954-9.

2. VIEIRA MAC; BEZERRA EMR; ROSA CMM, org. População de rua: quem é, como vive, como é vista. São Paulo, Ed. Hucitec, 1992, 181p.

3. HECKERT U. Psiquiatria e população de rua – Epidemiologia, aspectos clínicos e propostas terapêuticas (Tese de doutorado). Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Departamento de Psiquiatria; 1998.

4. HUNTER JK. Barriers to providing health care to homeless persons: a survey of provider’s perceptions. Health Values: The Journal of Health Behavior, Education & Promotion, 1991; 15: 3-11.

5. BREAKEY WR. Mental health services for homeless people. In: ROBERTSON MJ; GREENBLATT M, eds. Homelessness: a national perspective. New York, Plenum Press, 1992, 101-7.

6. CHNAIDERMAN M. Dizem que sou louco (filme). São Paulo, 1994. Color. son. 16mm.

7.    HECKERT U, AMARAL AMM do, CUNHA RCS, RASO DC, SILVA  JMF. Programa de saúde mental para a população de rua – PRORUA. HU Revista 2001; 27(1,2,3): 305-8.

 

 
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Dr. Uriel Heckert, médico psiquiatra e
professor universitário em
Juiz de Fora, MG.

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