A consciência dos povos sobre o lugar das crianças está, até que enfim, evoluindo. Leis e acordos internacionais partem do princípio básico da dignidade e fragilidade da vida da criança que, portanto, necessita proteção especial. Organizações humanitárias de vários matizes filosóficos implantam trabalhos de promoção de status de bebês e crianças. As sociedades contemporâneas buscam superar eras de barbárie, violentação e assassinato de crianças. Mas não vamos nos esquecer que há um rastro de sangue e horror na história que chega aos nossos dias.Sacrifícios humanos, holocausto e graça.
As crianças nem sempre foram compreendidas como humanos plenos mas sim como coisas. Daí serem destituídas de quaisquer direitos. Sofriam despedaçamento lançadas do alto de rochas nos Andes, eram queimadas como oferenda dentro da imagem de Moloque, entre os amonitas. Eram escravizadas e prostituídas por exigência de algum deus, ou para rituais de fertilidade –É o que sabemos através de registros históricos e antropológicos.
Na Grécia clássica, matriz da cultura ocidental e tão louvada pela invenção da democracia (para 5% da população!), mulheres e crianças eram discriminados. Nem todas mulheres e crianças recebiam nomes. Platão em A República defende um ideal filosófico pragmático “….levarão os filhos dos homens de bem para o berço comum e os confiarão a certas amas…, mas se desfarão, como convém, em segredo, da prole dos homens inferiores e de todos aqueles que nascerem defeituosos, assim que ninguém saberá o que aconteceu com eles”.
Isto era muito praticado sem questões de consciência. Numa carta `a sua mulher Alis que se encontrava grávida, Oxirinco a instrui : “… se deres à luz a um menino, deixe-o viver; mas se for menina, enjeite-a …” – Papiros de Oxirinco, 744 in Jesus e as Crianças, Hans-Ruedi Weber, Ed. Sinodal
Fílon, filósofo judeu de Alexandria, analisava e criticava a prática de banquetes entre os renomados filósofos gregos que usavam sexualmente de jovens e louvavam a pederastia. Os judeus embora num marco patriarcal eram herdeiros de outra cosmovisão, centrada na Revelação que trata homens e mulheres como Imago Dei.
Esta cosmovisão bíblica assegurou para sempre uma orientação distintiva em relação ao paganismo. Davam nomes a todas crianças e mulheres. E não admitiam o aborto, o incesto, o homossexualismo e a redução de Deus a um ídolo. E experimentaram uma nova ordem do sagrado.
As Escrituras dizem que
“Deus pôs Abraão à prova e lhe diz: Toma teu filho, teu único filho, Isaque, a quem amas, e vai-te à terra de Moriá; oferece-o ali em holocausto, sobre um dos montes, que eu te mostrarei. Levantou-se, pois, Abraão de madrugada …e foi para o lugar que Deus lhe havia indicado” Isaque carregava a lenha, Abraão o fogo e o cutelo”. Isaque estranhou a ausência de um cordeiro para o sacrifício. Abraão apenas respondeu “Deus proverá para si, meu filho, o cordeiro para o holocausto; e seguiam ambos juntos. Chegaram ao local designado por Deus e ali Abraão edificou um altar, sobre ele dispôs a lenha , amarrou Isaque seu filho, e o deitou no altar, em cima da lenha; e, estendendo a mão, tomou o cutelo para imolar o filho. Mas do céu lhe bradou o Anjo do Senhor: Abraão! Abraão! Então lhe disse: Não estendas a mão sobre o rapaz, e nada lhe faças; pois agora sei que temes a Deus, porquanto não me negastes o filho, o teu único filho. Tendo Abraão erguido os olhos, viu atrás de si um cordeiro preso…tomou Abraão o carneiro e o ofereceu em holocausto, em lugar de seu filho” (Gn. 22:2-13).
Sacrifício sustado pelo Anjo do Senhor enquanto se consumava! Intervenção que transforma a relação dos humanos com Deus, autêntica mutação da experiência religiosa. Todo sacrifício humano, até então aceito como legitimado pelos deuses, deixou de ter qualquer justificativa. Um tenro cordeiro substitue a vida humana no holocausto. Símbolo fortíssimo do futuro sacrifício do Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo e que inclusive encerra o ciclo de sacrifícios de animais.
Adeus, crianças!
2002 D.C., Brasil. Em nossas ruas, de qualquer cidade, pedintes mirins disputam ou forçam a caridade das pessoas. Os pobres antigamente esmolavam; hoje quase exigem uma parte de alimentos, dinheiro, roupa. Nos semáforos, nos estacionamentos, nas calçadas estão mais ousados. Descobriram que a sociedade não faz gentilezas para ninguém. Muitos não conseguem conciliar os duros sofrimentos do cotidiano com a falada bondade de Deus. Na verdade se sentem esquecidos de Deus e dos homens! Mas não perdem, contudo, a abertura da alma para o sagrado. Entram em qualquer porta de qualquer templo que lhes acolham. Quem descobrem serem seus amigos, cuidadores solidários, quem lhes abre as portas para um lugar mais digno na sociedade?
Os sentimentos e o imaginário dos nossos marginalizados estão mudando. As ilusões consumistas e de ascenção social não resistem ao sofrimento diário, aos filhos morrendo sem comida, sem saúde e escola. Sabem que sem presente digno não terão futuro algum. São destruídos antes. Boa parcela dos excluídos está mais consciente das contradições sociais. Um certo senso de organização e politização começa a ganhar força. Estão deixando a passividade O rap guerreiros do morro canta isto, denunciando a violência da exclusão que leva meninas à prostituição e meninos ao tráfico e daí a morte. Não querem repetir a história de seus pais pedreiros salário-mínimo cantados pelo Chico Buarque em Pedro Pedreiro, nem se orgulham das lutas de suas mães empregadas domésticas ou operárias salário-ínfimo. Tampouco querem ser apologistas do crime e da violência. Querem sobreviver. Precisam de democracia econômica já!
Como morrem nossas crianças e adolescentes! O Faraó no tempo de Moisés e Herodes no tempo de Cristo foram mais caridosos. Só matavam. No Brasil o sistema degrada e mata. Nossa maquinaria política, jurídica e financeira se apropria dos bens coletivos e fomenta a desigualdade. Um exemplo é a disparidade de tratamento que nosso sistema legal perpetra a favor de juizes e políticos, com salários e aposentadorias 100 a 150 vezes o salário mínimo. Tudo dentro da “lei” dos direitos adquiridos (deles), como as capitanias hereditárias. E os bancos que mais lucram no mundo, onde estão? Para os poderosos tudo, com casas e carros blindados. Aos demais o constrangimento, a indigência, nos novos fornos de Moloque.
A Deus, nossas crianças!
Jesus está `a frente do tempo. Assim como surpreendia seus contemporâneos também nos surpreende em pleno século XXI com suas intervenções a favor de pessoas e não de sistemas. Anuncia a presença do Reino de Deus aos que se encontram encerrados em doenças e vítimas de preconceitos. Investe contra a ilusão religiosa e busca de privilégios. Chama-nos à renúncia pelo estilo da Cruz – a cultura do Reino de Deus (Mc.8,31-35). Viajemos um pouco a seu lado guiados pelo texto de Marcos.
Ele atravessa a região da Galileia e chega a Cafarnaum (Mc.9,33). Em casa, talvez sentado, inicia uma sessão de ensino. Havia presenciado na viagem uma discussão insólita travada entre seus discípulos sobre questões de poder. Jesus havia lhes compartilhado coisas tão pessoais, anunciando-lhes sua própria morte e eles cobiçando o lugar (ou anel) do poder. Dá prá acreditar? O Mestre olha-lhes de frente e pergunta-lhes: “De que vocês tratavam no caminho”? (Mc.9,33). Será que eu ouvi direito? Eles se calam, de vergonha! Boa vergonha. Em seguida em didático golpe de mestre, Jesus, que dá atenção para as pequenas coisas, “trazendo uma criança, colocou-a no meio deles e, tomando-a nos braços, disse-lhes: Qualquer que receber uma criança, tal como esta, em meu nome, a mim me recebe; e qualquer que a mim me receber, não recebe a mim, mas ao que me enviou” Mc.9-36,37.
Belo psicodrama! Mudança de cenário, de paradigmas, de prioridades! A criança colocada no centro e referência do próprio Cristo.
Continuemos a viagem com destino a Jerusalém, centro das contradições do poder, lugar de sua aula final. Contra o sectarismo ensina a tolerância ( Mc.9,38-41); sobre o divórcio não torna as coisas fáceis, diz o que é preciso e traz-nos de volta ao desejo de Deus – maridos e esposas desenvolvendo uma unidade de alma e corpo (Mc.10,2-12).
Trata do casamento e suas disfunções; tratar também nossas relações com as crianças.
Agora outra cena: parece que várias mulheres tinham ouvido as palavras de Jesus e evidentemente entenderam e gostaram. Mesmo que não as tenham ouvido, escutaram o Desejo de seus corações e buscam se aproximar de Jesus com seus filhos. Os discípulos atuam reflexamente segundo o velho script da cultura patriarcal.
Não sabem e não recebem as crianças. Fazem o cerco em torno de Jesus. As mulheres forçam esta defesa machista avançando com seus filhos, quem sabe até filhos e sobrinhos dos mesmos discípulos. Há um tumulto. Jesus atento aos acontecimentos, percebendo os discípulos lhes expulsando, toma-lhes a defesa e diz: “Deixai vir a mim os pequeninos, não os embaraceis, porque deles é o Reino de Deus” (Mc.10,13-16).
Fala delas tendo-as ao seu lado. Toma-lhes pelos braços, eram pequenas, algumas de colo, um
a a uma, e as abençoa. Alguém já imaginou que surpreendente festa aconteceu? Falta os artistas representarem este momento singelo, libertador, cheio de alegria. É assim que no Novo Testamento encontramos maior novidade justamente com Jesus em suas atitudes de defesa das crianças. Surpreendeu seus contemporâneos e lançou as bases de uma nova cultura. Já nas primeiras gerações de seus seguidores surgiu o Didaquê, cartilha doutrinária da igreja que defende até a vida intra-uterina como sagrada.
A Igreja de Cristo hoje igualmente deve dizer Sim aos excluídos e em particular às crianças, chamadas por Jesus à sua presença.
Muitas igrejas estão negligentes e indiferentes neste aspecto. Vivem abastadas e pregam uma espiritualidade alienada. A violência nas ruas e nas casas testemunha nosso pecado contra as crianças e adolescentes. Mas cabe registrar que inúmeros grupos, igrejas e ONGs encarnam essas exigências cristãs por uma ordem social justa e amorosa. No dia do juízo o Filho do Homem separará para a condenação eterna aqueles que ignoraram os que padeciam de fome, sede, nudez, migrações, enfermidades e todo tipo de privações. Também dirá “Vinde, benditos de meu Pai! Entrai na posse do reino que vos está preparado desde a fundação do mundo” aos que lhes foram próximos e solidários (Mt.25.31-46).
Jesus continua sua caminhada, nos encontrando em nossa humanidade essencial, nos sarando, nos salvando, nos socializando, nos atraindo para a cruz, ponte entre a cidade do homem e o Reino de Deus!
Ageu Heringer Lisboa, psicólogo
coordenador da SALUS – rede cristã de profissionais da saúde – www.salus.ws
consultor de ONG’s sociais. Membro do CPPC – Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos
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