O SOFRIMENTO PSÍQUICO NA SUBJETIVIDADE DO CAMPO P S I, por Rubens Ruprecht
Quando se pensa em sofrimento humano, especialmente no campo psi, surgem algumas questões, no mínimo, intrigantes quanto aos aspectos constitutivos de sua dinâmica. Muitas vezes tem-se a impressão de não haver uma correlação imediata e precisa do sofrimento informado em função da gravidade alegada, isto é, os argumentos informados no campo da subjetividade não parecem ter sustentação plena no campo da objetividade.
Esta também já tinha sido a experiência de Freud no campo da medicina e, em especial, nas explorações neurológicas da época. Embasado nos conceitos metodológicos iluministas, que determinavam conceitualmente e pragmaticamente as explorações no campo psi, a “verdade” nunca fora buscada com tanta objetividade, agora reduzida ao plano da consciência iluminista.
Suas experiências clínicas com neuróticos, entretanto, logo lhe mostrariam a relatividade desses pressupostos. Paulatinamente foi percebendo que a objetividade do relato factual nem sempre correspondia ao evento histórico narrado, isto é, os sujeitos modificavam suas histórias originais, permeando-as com suas fantasias e desejos, por vezes delirantes.
Essa nova perspectiva de análise levou Freud a reformular conceitos já amplamente difundidos nos meios acadêmicos iluministas, que concebiam as verdades como eventos estáticos e íntegros.
Ele observava que seus sujeitos em análise metamorfoseavam suas “verdades” em constantes novas versões interpretativas a partir da sua dinâmica psíquica, na qual os limites de suas percepções se diluíam, e o plano conhecido como consciência era insuficiente para contê-la.
Conforme Bezerra (1989), os limites temporais estáticos entre passado, presente e futuro são insuficientes para conter a dinâmica psíquica. A partir dessa perspectiva, o sujeito não está mais contido numa ação linear e permanente do passado infantil sobre o presente, no qual se produz o sofrimento.
Ao contrário, Freud percebia que os acontecimentos do passado eram reconstruídos no presente e podiam incorporar significados que não possuíam em sua origem. Assim, a clínica psicanalítica observava uma nova articulação do sujeito, na qual este falava do passado em nome do futuro, operando seu passado em função de sua perspectiva de um futuro desejado.
Para Freud, formulava-se aí uma nova noção de realidade psíquica, a noção de que a realidade psíquica não tem uma fonte única – a psique – que a constitui, mas era uma elaboração interpretativa da realidade histórica de cada sujeito singularizado e correspondia à produção de um saber inconsciente e atemporal.
É justamente essa realidade peculiar que constitui o desejo no sujeito, um desejo que não se satisfaz e sempre está em busca de uma satisfação absoluta idealizada, que possivelmente não encontrará.
Segundo Coelho Jr (In: Pacheco. et. al. 2000, p. 82-3) O conceito de realidade para Freud, teve diferentes sentidos no conjunto de sua obra. Entre eles o de realidadeinterna [psíquica], que se inter-relaciona constantemente e dinamicamente com a realidade externa [material], mantendo uma constante tensão, da qual se constitui a subjetividade singularizada.
Para uma compreensão mais abrangente desse conceito, esse autor propõe um novo termo que contemple essas duas dimensões, que poderia denominar-se realidade clínica: Tratando-se de
a) uma realidade que não é única nem tampouco homogênea. Cada situação clínica é uma nova realidade clínica.
b) As realidades clínicas não se repetem (…) não estão previamente estabelecidas, mas também não são somente construídas por analista e analisando.
c) Compõe-se, na verdade, de diferentes e múltiplas realidades (…) estão sempre em movimento e em transformação
d) o objetivo do trabalho analítico não seria atingir a verdade. Mesmo porque estamos o tempo todo misturados a afetos e representações, colocados diante de expressões verbais e não verbais, de posições objetivas e subjetivas (…) sempre em movimento, sempre em transformação. (…)
e) A realidade clínica constitui-se tanto a partir da presença da realidade psíquica, como da realidade material. Ao mesmo tempo, possibilita um deslizamento constante entre diferentes tipos de realidade [da psíquica à material] e também o contexto onde esta tensão pode ser analisada.
Essa realidade seria formada pela dinâmica da transferência, permeada por um imaginário expresso nos desejos e recriações desses desejos, em constante trânsito no vínculo terapêutico.
Por conta desse “deslizamento” entre os diversos segmentos de uma suposta realidade é que surgem as novas composições – fantasiosas, fantasmáticas ou não – que determinarão em grande parte o grau de sofrimento e elaboração terapêuticos.
Mas também fora do vínculo terapêutico ocorrem esses deslizamentos temporais e dimensionais, mediados pelos mecanismos de defesa, que “transformam” a realidade em mais aceitável, distorcendo, acrescentando elementos não presentes em sua origem, omitindo aspectos desabonadores ou traumáticos, até que o sujeito possa dispensá-los e enfrentar seus fantasmas com mais sobriedade e menor ansiedade persecutória.
Outrossim, aspectos da realidade podem ser previamente constituídos por elementos parcialmente inconscientes a determinados agentes da demanda psíquica, como nos jogos de poder e controle por supremacia autoritária, na qual acordos ou normas unilaterais são estabelecidos apenas por alguns dos agentes, levando a sofrimentos inconscientes nos atores sociais mais passivos.
Todos esses processos evidentemente não precisam estar necessariamente amparados numa realidade objetiva passível de verificação, até porque estados delirantes ou fantasias baseadas em desejos inconscientes, têm o mesmo potencial de causar sofrimento do que fatos concretos e objetivos. As tramas criadas pelos mecanismos de defesa diante de ameaças reais ou não são relativamente bem conhecidas no campo psi e distorções e recriações de uma suposta realidade vicejam na escuta terapêutica. A grande ênfase atual na subjetividade do sujeito singularizado tenta compreender isto com mais clareza.
Também no contexto da espiritualidade a demanda do sofrimento segue a via da subjetividade. Via de regra, sofrimentos que ainda não podem ser tolerados são revestidos (maquiados) por entidades negativas supostamente transcendentais (toda sorte de demônios), acrescidos de características próprias em função da sua demanda.
Sabemos que na tradição bíblica literária, especialmente no NT, foi incorporado este estilo, proveniente da cultura secular reinante. Entretanto, a pergunta hoje é, se devemos permanecer capturados neste modelo demonológico [sem entrar no mérito da questão] que reveste nosso sofrimento de entidades sobrenaturais ?
Por outro lado, ainda ressoa a questão: será que já podemos nos responsabilizar pelo nosso sofrimento, tratá-lo com toda a atenção e carinho que o mesmo está reclamando, elaborá-lo conscientemente ? Será que este grau de maturidade almejada é possível ? Como dimensionar a relação entre a dependência e a autonomia ? Devemos realmente prescindir do colo divino ?
Parece-me que o mito da maturidade, da elaboração psíquica sem rastros e resquícios neuróticos, tão proclamado pelas psicologias, ainda se inscreve no plano da razão iluminista, como uma possibilidade a ser conquistada com muita terapia e elaboração psíquicas. Entretanto, os limites e possibilidades reais de elaboração nem sempre são dimensionados adequadamente, e os fracassos terapêuticos nem sempre devidamente relacionados.
Se, então, no plano da espiritualidade, a dimensão transcendental oferece recursos terapêuticos similares aos conquistados na escuta clínica [e… por vezes mais amplos], com todas as limitações inerentes à metodologia utilizada, haveria realmente tanta diferença assim entre um vínculo transferencial com o/a terapeuta ou com uma divindade transcendental ? Respeitadas as diferenças, o colo divino não é um protótipo[1] para o colo humano e vice versa?
Se o sofrimento humano de fato é construído e atualizado pela mediação das defesas do ego, os pressupostos iluministas de uma suposta realidade objetiva são insuficientes para conter essa nova realidade. Por outro lado, tendo em vista os redimensionamentos que a subjetividade humana dinamiza, o plano da transcendência moldura uma estrutura tão efetiva quanto o da imanência, mediado pelo inter-jogo lúdico ou trágico do sofrimento. A qualidade objetiva ou subjetiva desses planos não é mais o debate em questão, mas a re-significação da vida – pressupondo a diminuição do sofrimento e o aumento do prazer de estar vivo – em que a dimensão transcendental é uma faceta da imanência projetada no divino. Se ainda precisamos deste recurso terapêutico em função da dificuldade de compreendermos determinados aspectos do nosso psiquismo, inclusive a demanda espiritual [na linguagem paulina, como “ver no espelho” – posteriormente ver face a face], então utilizemos o mesmo pela graça divina e com responsabilidade.
No plano concreto, poderia-se admitir então que, quando o ser humano se entrega ao colo divino, o mesmo também estaria liberando a si próprio para entender a sua dor, alterando sua dinâmica defensiva e redimensionando subjetivamente sua realidade, atribuindo-lhe novo significado. Não é isto o que também ocorre no vínculo transferencial do setting psicoterapêutico, um protótipo do vínculo transferencial com o divino e vice-versa ?
Finalmente, quem já está num estado de bem-aventurança tal que possa prescindir destes recursos humanos ? [.. espaço reservado para quem nele se encontra..] Aos seres humanos em sua finitude… que a graça de Deus abunde e nos inspire a continuar nossa caminhada.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BEZERRA, B. Jr. Subjetividade Moderna e o Campo da Psicanálise. In: BIRMAN, J. (Org).Freud 50 anos depois. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1989. p. 219-239.
PACHECO, R. A. et. al. Ciencia, pesquisa, representação e realidade em psicanálise. São Paulo: Educ: Casa do Psicólogo, 2000.
[1] Ludwig Feuerbach, no contexto da filosofia, já afirmava ser a religião uma forma alienada da essência humana, em que os atributos de Deus são, na verdade, os atributos dos homens, como uma projeção da própria existência humana. Freud retoma essa questão ao vincular, na criança, os caracteres humanos projetados no divino, especialmente aqueles presentes no campo educacional pedagógico da criança.