1º semestre 2005, Ano XVIII – nº 37
Um Outro Mundo Possível
A empinada ladeira ajuda na introspecção.
De alguma parte de meu interior,
as imagens começam a saltar
como pipocas na panela.
Saltam de textos e conferências,
de reuniões e Santas Ceias,
de festas e funerais,
e aderem sinistramente ao meu rosto.
Eu sou aquele cruzado que, nas portas de Jerusalém,
degola uma e outra vez os infiéis.
Um gnóstico,
que, iluminado com todo o conhecimento,
se sente puro.
Também o piedoso pregador,
conturbado ante as almas que escapam do inferno.
E um inquisidor incorruptível,
que observa como o fogo queima o herege.
E, às vezes, nas noites de insônia,
um medieval que ouve uma melodia gregoriana,
ocultando-se na abóbada de uma igreja.
Também socialista na juventude,
caminho ao banco conservador.
Ainda que também tenha sido o médico,
que sofre o paradoxo de viver
diante do extravasamento emocional da doença,
fui titubeante assistente
da paupérrima vila habitada por crianças desnutridas.
As estações da Via Crucis se sucedem.
Magicamente, deixo de ver,
para ver-me num espelho que me revela.
Que eu sou o personagem imperfeito
da história, da filosofia e da teologia,
da política e do clero.
O sol começa a esconder-se,
e a semelhança que fui adquirindo
de tudo aquilo que critiquei,
perturba-me.
Decido inclinar-me e confessar.
De que maneira minhas representações
do bom e do justo,
do correto e do puro,
do são e do verdadeiro,
do certo e do objetivo,
distanciaram-me do manancial da Graça?
As pedras pontiagudas
anunciam a proximidade da cruz.
Intuo um olhar que me abraça.
Sinto-o em meu corpo
e no palpitar do meu coração.
Suavemente, as obsessões começam a abandonar-me.
Subitamente, um deslumbramento impede-me de ver
em meio à intensidade da luz.
Um relâmpago pulveriza toda a projeção.
Começo a perceber-me presente ante uma Presença.
Nesse instante, evaporam-se minhas forças.
Estou prestes a cair,
tentarei fazê-lo de joelhos.
Carlos José Hernández
Psiquiatra Argentino e Membro Honorário do CPPC
E-mail: cjher@arnet.com.ar
(Tradução: Yara)
Este belo poema, Hernández escreveu a partir de conversas no nosso último Congresso. Até onde meu portunhol alcançou, ele me lembra de outro poema – apresentado na noite da espiritualidade pela Roseli – do Dietrich Bonhoeffer, em que este se pergunta “Quem sou eu?”, expondo a face heróica e a vergonhosa da mesma pessoa (ele próprio).
A conclusão em ambos chama para a presença de Deus e me faz lembrar daquele conceito tensionado pregado por Lutero: “simultaneamente justo e pecador”.
Gostaria de nos recomendar esse tipo de atitude e de expectativa no CPPC. Essa aceitação da triste realidade dos meus pecados, simultânea e continuamente com a (fé na) maravilhosa realidade do amor de Deus para nós, pecadores, é preciosa fonte de paz em meio às tensões da vida, podendo sempre admitir erros e imperfeições.
Ao mesmo tempo, essa “des-dramatização” dos erros e pecados torna bem mais fácil falar sobre eles e enfrentá-los, sempre sob o manto da paz com Deus, visto que não é mais uma questão de “vida ou morte” – já foi a questão de morte, precisamente na cruz do nosso Senhor.
Imagino que esse cultivo de uma transparência na Presença seja um “crescer na graça e no conhecimento de nosso Senhor”. Além de nos aproximar mais da realidade, pode melhorar nossa atitude para com críticas e “apontação de erros” (tanto para recebê-los quanto para fazê-los) e “apaziguar” os ânimos num sentido mais literal.
Deus colocou “um bando de pecadores” no CPPC.
E também nos fez “um grupo de santos” amados.
E também um bando de pecadores.
E também um grupo de santos amados.
E também…
Essa tensão vai persistir enquanto estivermos neste planeta, e é assim que avançamos e vamos tratando de nossos pecados e acertos. Por isso, não nos assustemos quando falarmos (ou ouvirmos) sobre nossos erros (que certamente aparecerão). Assim, justificados pela fé, vamos sendo usados para construir o Reino de Deus.
Sejamos, pois, pecadores e justos (posto que o somos), sempre perante o Senhor.
Karl Kepler
Psicólogo, Pastor e Presidente do CPPC
E-mail: presidencia@cppc.org.br
Temas abordados:
Psicocausos – O berrante
Espiritualidade, psiquê e cultura
A religiosidade encubada
O psicoterapeuta como construtor e guardião da alma
A psicanálise e o sagrado: uma articulação possível
Uma sexualidade sustentável
As confissões de Agostinho e a psicoterapia contemporânea
Vingança e religião
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