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LIMITES: PSICOLOGIA, IGREJA E ESPIRITUALIDADE, por Karl Kepler

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Dedico este texto para pessoas que, como eu, cresceram e se criaram no meio evangélico e hoje têm dúvidas sinceras sobre o que aprenderam nesse meio Também peço licença para me expressar de modo mais existencial: falo as coisas como a gente as sente, não necessariamente como elas são em si.

Muitas pessoas que conheço estão num dilema envolvendo sua fé; a contraparte pode ser a psicologia, ou a ciência, ou o dilema igreja-sociedade: cresceram ou se converteram há tempo numa igreja evangélica, aprenderam sobre Jesus Cristo, sobre a Bíblia, oração, participaram de grupos de jovens, etc. mas alguma hora chegaram a um ponto em que toda essa vida de igreja lhes pareceu restritiva demais, e muito limitada em termos de perspectiva. Esse ponto de confronto pode ter sido a Universidade, o curso de psicologia (ou filosofia, ou ciências sociais, história ou afins), ou o contato com “outra turma”. De repente “o mundo” que a gente tanto temia como um poderoso inimigo da nossa salvação, se mostra cheio de boa gente, de conhecimentos verdadeiros, capaz de resolver problemas que lá na Igreja não foram sequer levados em consideração.
Para não ser injusto com a igreja, devo rapidamente reconhecer que para a maioria das pessoas que a experimentam, ela significou – através de Jesus Cristo – a libertação de um modo de vida muito pior (“o mundo”), corrompido e corruptor sem igual, onde tudo o que é valorizado é vazio: poder, imagem, sexo, posses e prestígio. Para quem se afundou nessa sociedade, a igreja trouxe a libertação pela verdade que é Jesus Cristo, o evangelho. Mas para quem desde pequeno já tem sido protegido pela igreja dessa sociedade, ou para aquele que, junto com Jesus Cristo, acabou aceitando uma porção de “verdades” falsas e orientações neurotizantes, para esses até mesmo a fantástica salvação em Cristo pode ser motivo de crises e muitas dúvidas.

1. A primeira crise: os limites da igreja e dos pastores
À medida que a gente vai conhecendo mais a realidade de fora, vamos perdendo o medo, e percebemos que o mundo não é aquele “bicho-papão” que nos pintaram. Pelo contrário: é a igreja que acaba mudando de cara, quando percebemos que várias proibições e cobranças eram ignorantes ou absurdas. Vemos que a preocupação obsessiva com o comportamento sexual é descabida, aquele jeito “domingueiro” de se vestir e falar talvez pareça ridículo, as regras sobre controlar o modo de falar, sobre não beber ou não fumar idem; descobrimos que dançar é uma coisa muito boa, e o fim-de-semana pode ser aproveitado em muitas outras coisas interessantes, especialmente se temos uma boa turma de amigos. Então a gente entra numa primeira crise: a vida na igreja evangélica se parece com manter um cavalo dentro de um cercadinho de 4m x 4m: tem muita coisa que não cabe naquela experiência.
Fora da igreja também não é tudo um mar de rosas; na igreja o pastor nos cobrava na pregação de todos os domingos, e muitas vezes nossa consciência faz eco das cobranças. A tentação é grande de achar que “eu não dou mesmo pra coisa” e desistir. Além disso, nossa alma parece perceber que não conseguimos apagar da nossa existência temas extremamente sérios: a existência de Deus, o plano de salvação através da morte de Cristo, a autoridade da Bíblia, etc., o que aumenta um pouco mais a dose de culpa ou o medo da inadequação. Junte isso com a argumentação intelectual e de outras crenças que nos vêm, coisas como: criação ou evolução, os milagres da Bíblia, o contato com esoterismo, mapas astrais, budismo, e por outro lado a dura realidade econômica, política e social brasileira: não é de admirar que os irmãos prefiram ficar naquele cercadinho: a vida é extremamente complexa; temos temas de sobra com que se ocupar ou se desculpar.
Nesse momento, geralmente acabamos por tomar um outro rumo na vida, alguns rompendo radicalmente e saindo da igreja, outros (por causa da seriedade dos temas sobre Deus), ficando com medo de romper ou, ainda percebendo na igreja coisas pertinentes, tentando como que viver duas vidas (isso nem é tão difícil, porque nossas igrejas praticamente só se ocupam do domingo). Possivelmente é a hora em que, quem tiver oportunidade, envereda por uma psicoterapia, de certa forma “trocando de guru”: em lugar do pastor da igreja, um “processo de auto-conhecimento”, ou uma turma de amigos, ou mesmo um psicoterapeuta mais diretivo. Nessa nova forma “mais consciente” de viver dá para ficar muitos anos. A sensação é de antecipação da liberdade, um entusiasmo pelo novo (a “descoberta da sociedade humana”), uma vez que sabemos muito bem o que não queremos, o velho (a “sociedade evangélica”).

2. A segunda crise: Os limites da psicologia
Livre das pressões da igreja muitos arriscam uma separação, uma sexualidade mais plural, uma nova união, um novo curso ou empreendimento, enfim, muita coisa nova para experimentar. A terapia ou a faculdade abrem novos horizontes; os novos amigos substituem os velhos irmãos com vantagens (dá para ser mais autêntico, não precisamos ficar tentando nos controlar em nossa expressão), e a gente vira em maior ou menor grau um “ex-crente”. Alguns sepultaram sua fé e puseram uma pedra nisso tudo; outros se tornaram “cristãos bem mais abertos”, não conseguindo mais se encaixar em igreja nenhuma, não tendo a menor vontade de ler a Bíblia, mas não abrindo mão de crer no Deus que lá na igreja e na Bíblia conheceram. Ficam algum tempo à procura de alguma igreja alternativa, que na maioria das vezes não encontram.
Mas aí esse “novo estilo de vida” vai deixando de ser novidade. O novo casamento ganha ares de velho, a psicoterapia fica bem menos produtiva, o auto-conhecimento já virou rotina e não gera mais novidade, os novos amigos também têm seus grandes defeitos, o curso universitário foi terminado (ou não) e a gente fica desorientado em meio a tantas linhas divergentes, e lá pelas tantas a gente se percebe com um sentimento muito parecido com o que tinha dentro da igreja. O cavalo saiu do cercadinho de 4 x 4 para um terreno de 20 x 20; tem bem mais espaço, mas lá também tem um limite intransponível. Com uma diferença: o cercadinho ainda existe, mas você não quer voltar para lá, porque já o conhece muito bem. Às vezes a gente tenta “aparecer” lá na igreja, mas o convívio com aquelas mesmas pessoas com a mesma visão curta, as mesmas cobranças do pastor (talvez apenas um pouco modernizadas), as mesmas cobranças dos irmãos… não dá mesmo para retornar. A saída do cercadinho foi algo positivo, uma conquista da qual não queremos abrir mão. A vida humana na sociedade é real, e negá-la não é a saída. Só que ela também tem seus grandes problemas que mesmo uma boa psicoterapia não consegue resolver. E a perspectiva de ficar pagando uma outra pessoa para acompanhar e esclarecer minha caminhada por anos a fio é desanimadora: a vida não pode ser tão complexa assim, que não dê para um ser humano mediano vivê-la. Onde haverá uma saída?

3. A espiritualidade
Talvez seja mesmo função divina essa dos problemas fazerem a gente se lembrar de Deus. Começamos a buscar a “saída de cima”. Quem já está muito longe de Deus pode tender a seguir outras espiritualidades, misticismos, budismos, esoterismos e tais (e acaba se afundando cada vez mais). Quem busca algum tipo de volta a Deus às vezes pode experimentar um estilo de igreja diferente: se era evangélico tradicional, pode se atrair pelo pentecostalismo; se era pentecostal, pode se interessar pelas igrejas mais conservadoras (essa mudança de estilo pode garantir talvez mais um ano de “achar que está no caminho certo”). E sempre tem as “igrejas da moda”, que seguram por uns quatro anos um grande rebanho de insatisfeitos (com as igrejas que conheceram) porém temerosos (de romper com a instituição “igreja”).
Falar dos limites da espiritualidade me é mais difícil; não há como não ser pessoal, e para mim o caminho da espiritualidade ainda é novo. Por espiritualidade aqui quero dizer um relacionamento pessoal, sem intermediário, com o Deus vivo que inspirou a Bíblia e que tem interesse (amor) em influenciar nossa vida; um Deus manso e humilde de coração, que dá descanso para nossa alma, mas que também nos deixa passar por horríveis tribulações e sofrimentos; que nos ama muito, mas que prometeu deixar a revelação escancarada de seu amor para o futuro (mas espera que acreditemos nele agora); que atende orações, mas que não nos dá tudo o que pedimos.
É impressionante o quanto a nossa vida transformada por esse contato com Deus se aproxima daquelas coisas que os pastores da igreja tanto cobram, só que agora não nos sentimos cobrados: sentimo-nos convidados, seduzidos. Depois de uns quinze anos “na geladeira”, começou a me dar vontade de ler a Bíblia. E eu já estava há tempo longe daquelas igrejas que ficam cobrando a gente fazer “hora tranqüila” de Bíblia e oração (quando adolescente, dentro do cercadinho, fiz muita “hora tranqüila” e aquilo me fez mal), ou ficam cobrando a gente “se engajar no trabalho da igreja”, coisa que também já fiz bastante. Minha alma agora tem sede ( o filho pródigo diria “fome”) do Deus vivo. Então a espiritualidade, a busca de uma amizade pessoal com Deus, é um caminho que está me satisfazendo. Mas, repito, é por fora muito parecido com o estilo de vida que as igrejas tentam forjar em seus membros, mas por dentro é completamente diferente; espero um dia conseguir explicar bem essa diferença.
O fato é que a busca de uma igreja condizente com a espiritualidade é uma tarefa infeliz; buscando a orientação de Deus, perambulei por dois anos em igrejas diferentes, e mesmo hoje às vezes não sinto que essa busca tenha terminado. Sei de pessoas queridas que se reencontraram com Deus, mas não estão conseguindo encontrar uma igreja onde se sintam participantes. Que tristeza! As igrejas estão muito mais para “comunidade neurotizante” do que para “comunidade terapêutica”. E ao mesmo tempo, muitas pessoas que nela estão parecem se sentir perfeitamente integradas (não cabe aqui avaliar se é de modo alienado, enganado, legítimo, etc.) Tenho a impressão de que — via espiritualidade — a necessidade de igreja pode se reduzir para necessidade de um pequeno grupo, enriquecido com contatos extremamente diversificados, tipo Internet, telefone, congressos, workshops, mas um grupo de irmãos em Cristo. E de novo, para outras coisas, a igreja local em que cada um congrega poderá ser necessária. Ou seja, acho que muitos terão de conviver com essa insatisfação pelo resto da vida nesta terra.
Esse deve ser um dos limites da espiritualidade: Deus não nos “desencarna”; Jesus optou por não chamar as doze legiões de anjos para ajudá-lo. Por mais espiritualidade que cultivemos, é vontade de Deus que continuemos extremamente humanos, em relacionamentos humanos, na sociedade humana e contando com os recursos humanos. OK, Ele às vezes decide fazer milagres, às vezes atendendo a nosso pedido, mas está claro que por ora “nossa vida está oculta com Cristo no céu”. Ou seja, os limites da espiritualidade devem ser os limites da vida aqui na terra: pecado, dor, injustiça, doença e todas aquelas coisas que “não podem nos separar do amor de Deus” continuam existindo. Imagino que tenhamos então todos os limites de uma peregrinação numa terra estranha. E me parece ser uma caminhada um pouco mais solitária.
Daí que os problemas da alma, que a igreja e a psicoterapia procuravam resolver (e conseguiam só até certo ponto), podem muito bem continuar conosco, mas dentro de uma nova visão, uma nova companhia: como instrumentos para a glória do Deus vivo, ou como meios de receber e transmitir a graça de Deus (tal qual o espinho na carne de Paulo), aquela, “que é melhor que a vida”. Isso pode valer para igreja, casamento, vida sexual, turma de amigos, participação política e social, etc.
Então de certa forma a espiritualidade com Deus resgata algumas coisas boas que existiam no “cercadinho da igreja”, como a existência de Deus, a salvação em Cristo, a companhia do Espírito, e a Bíblia como palavra de Deus. E abre um novo caminho para a necessária vivência grupal, de termos pelo menos uma ou duas pessoas próximas que sentem e crêem mais ou menos do mesmo jeito (“onde dois ou três”…). Mas ela também preserva (ou, dá a possibilidade de preservar) aquele bom lado humano e social que a igreja tanto podava, o “coração de carne”, de modo que os exemplos de fé a serem seguidos agora não são mais “pastores perfeitos”, líderes vitoriosos ou pregadores gritando do alto dos púlpitos. Meus novos modelos são pessoas muito humanas, tão boas e tão más quanto eu, que estão tentando andar no caminho de Deus (como também eu estou). Perdemos a “inocência” de esperar a perfeição de nós mesmos. Muitos, tal como Paulo em Filipenses, cresceram na igreja de forma quase irrepreensível, praticamente não cometendo nenhum daqueles pecados que os irmãos tanto reprovam (especialmente adultério), mas já perceberam que isso não vale porcaria nenhuma (“esterco”), que eles são tão pecadores quanto os que adulteraram, e assim “ganharam a Cristo”. A espiritualidade – o relacionamento com Cristo – nos liberta de cobranças, de leis e também de modismos mundanos, ao mesmo tempo que nos mantém bastante “presos”, pelo afeto, a Deus. Começam a fazer sentido textos como “misericórdia quero, e não sacrifícios”, “o fruto do Espírito é… longanimidade, mansidão”. E a convivência do joio com o trigo dentro de nós e por toda a nossa vida nesta terra é finalmente aceita, junto com a salvação dada de graça por aquele que ama pecadores. Esse relacionamento reatado, com um Deus que não está mais insatisfeito comigo, dá uma paz e uma saúde que a maioria das igrejas não permite acontecer, e que nenhuma psicoterapia por si só poderia alcançar.

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Karl Kepler Pastor e Psicólogo

 

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